Ryusuke Hamaguchi viveu um período recente de prolífera criação artística, chegando a ter, em 2021, dois filmes muito diferentes a estrear nos cinemas, ele que tinha vindo a trabalhar nos últimos anos em filmes longos, como Happî awâ (Happy Hour: Hora Feliz, 2015). Mas como o próprio admite, os dois anos seguintes seriam dedicados a pensar neste novo filme, passando mesmo o primeiro ano em branco, enquanto pensava em diferentes ideias e formas para Aku wa sonzai shinai (Evil Does Not Exist – O Mal Não Está Aqui, 2023). A génese do filme acaba por ser inusitada, já que parte de um convite (da compositora Eiko Ishibashi) para criar imagens para acompanhar uma música original, que não recorresse a imagens abstratas como é hábito nestas “encomendas”, mas que usasse o seu estilo fortemente narrativo, imaginando algo para a música que recebeu. Perante um impasse inicial, Hamaguchi desloca-se ao sítio onde a música foi idealizada e gravada, um estúdio numa zona rural próxima de Tóquio, e ao deambular por esse local, acabaria por chegar à narrativa de O Mal Não Está Aqui.
Esta referência à origem do filme serve apenas para sublinhar uma diferença entre os filmes anteriores de Hamaguchi, que pareciam mais improvisados, mais dependentes de longas cenas de diálogo que avançavam a narrativa através de pequenas revelações das personagens. Em contraste, este filme é dotado de uma estrutura narrativa muito rigorosa e fixa, que é também presente na própria estrutura das sequências e que passa depois para a escolha dos próprios planos – Hamaguchi aproxima-se aqui, através de um formalismo de observador distante, do estilo clínico e quase cínico com que Michael Haneke por vezes filma a realidade.
Dentro desta abordagem de Hamaguchi é notável a importância simbólica de certas imagens, que ganham aqui uma dimensão quase metafórica, uma distinção importante também em relação aos seus filmes anteriores, que viviam muito mais da continuidade e linearidade na vida das suas personagens: estou a pensar nas longas sequências de diálogo em Happy Hour (o seminário), os ensaios com os actores em Drive My Car ou as viagens de carro, ou até o encontro entre as duas mulheres em Gûzen to sôzô (Roda da Fortuna e da Fantasia, 2021), este muito mais próximo dos filmes dominados pelos diálogos de Hong Sang-soo.
Esta cena evoca as qualidades da inocência e pureza da criança, mas também da natureza intacta, como que conjugando as duas vertentes apresentadas: a natureza e a humanidade num estado imaculado (a tal ideia de que o mal não existe, ou que não está aqui).
Ao mesmo tempo, em paralelo à dimensão simbólica das imagens do quotidiano desta aldeia que é retratada e da sua vida pacata, os gestos do dia-a-dia ganham protagonismo, formando um casulo de isolamento pela sua solenidade e seriedade. Encontramos também, na aproximação à natureza e aos elementos naturais que é apresentada em O Mal Não Está Aqui, uma ideia de uma forma de inocência e pureza, das qualidades associadas à natureza. Esse paradoxo, entre a artificialidade de uma abordagem muito estruturada e quase metafísica, e a simplicidade da vida assim apresentada, vai estar no centro do filme e do nosso envolvimento com o drama que lentamente se vai desenvolvendo.
A primeira sequência do filme é indicativa do que tenho vindo a descrever: um longo plano em movimento pelo meio das árvores de um bosque, com a câmara apontada para o céu, que cria um efeito hipnótico que nos engolfa na calma da natureza, é também revelado como sendo o ponto de vista de uma criança, a percorrer esses bosques. Esta cena evoca as qualidades da inocência e pureza da criança, mas também da natureza intacta, como que conjugando as duas vertentes apresentadas: a natureza e a humanidade num estado imaculado (a tal ideia de que o mal não existe, ou que não está aqui). Aos poucos, através de longas sequências, muitas vezes de plano fixo, quase sempre distantes, o filme estabelece o quotidiano deste local e do seu protagonista: a recolher água de um rio, a rachar a lenha que mais tarde servirá para aquecer a água, etc. São sequências que se repetem ao longo do filme, estabelecendo quase uma existência hermética nesta aldeia em relação ao que se passa no mundo exterior e nas cidades que a rodeiam.
Porém, esta calma que parece impenetrável será posta em causa por um factor de contaminação externa: um projecto da instalação de um resort de glamping ameaça perturbar vários elementos desta localidade, desde a sua pacatez invadida por turistas até à contaminação da fonte de água e da fauna local, que inclui um caminho natural de passagem de veados. Apesar das preocupações levantadas pelos habitantes numa sessão de esclarecimento (filmada com um detalhe minucioso, que deixa pressentir a tensão existente em cada palavra), que são ouvidas mas logo ignoradas (como sendo até simplórias), percebemos através de uma reunião dos gestores do projecto (de uma forma bastante cínica), que este irá sempre avançar, independentemente da perturbação que possa causar: o importante é vender uma ideia de comunhão com a natureza e eco-sustentabilidade, apropriando-se da natureza pacífica do local ao mesmo tempo que a perturba, como uma infecção que vai destruindo o seu anfitrião, no caminho imparável do progresso económico.
Perante esta hipótese cínica do capitalismo que apenas pensa no curto prazo, ignorando que o próprio projecto irá ameaçar a sustentabilidade da tranquilidade rural que procura vender (uma metáfora para as alterações climáticas), um dos momentos chaves do filme é a humanização dos dois agentes dessa mudança, um homem e uma mulher encarregues de convencer a população local a aceitarem a implantação do projecto. Através de uma viagem de carro e de um longo diálogo, estes dois revelam-se eles próprios frágeis e repletos de dúvidas, instrumentos nas mãos de um esquema que não os considera, como não considera as preocupações de perturbar um ecossistema pré-existente. Os dois referem como esta sua “missão” está longe do que querem fazer com a sua vida, e um deles, o homem, confessa até que não se importava de ir morar para a aldeia e adoptar o seu modo de vida rural, agindo como uma espécie de intermediário entre os dois mundos.
É exactamente neste último acto do filme que os dois elementos externos procuram inteirar-se da vida nesta aldeia como forma de criar empatia com as suas preocupações, em que eles próprios, guiados pelo nosso protagonista, acabam por repetir alguns dos gestos do quotidiano que vimos até aí, como o recolher da água ou o rachar da lenha. Desta forma, com esta presença, o equilíbrio deste local, e por consequência do filme, parece ameaçado. Neste momento final, Hamaguchi filma de forma empolgante o deflagrar de toda a tensão que até aí foi mantida nas entrelinhas e segurada pela aparente tranquilidade, em que o mistério (a filha do protagonista que tarda em aparecer depois de regressar sozinha da escola a pé) parece assumir contornos reais e sair para a superfície. É a vez do filme intervir directamente e romper com a calma até aí, interromper qualquer neutralidade observacional – há aqui também algo sobre a criação artística e o impasse que Hamaguchi se encontrou ao trabalhar neste filme. Num desfecho inesperado [que evoca outro momento da filmografia de Haneke, em Caché (Nada a Esconder, 2005)], espécie de golpe arrojado através de um ou dois planos, que coloca em causa todo o filme até aí, este é um número de equilíbrio que Hamaguchi, a operar num registo diferente do habitual, executa de forma magistral, como uma estalada para acordar alguém desmaiado, devolvendo o filme à sua ordem natural, de equilíbrio entre o artificial e o natural, entre a tranquilidade e a violência, entre a intensidade e a contemplação, entre o mistério e a naturalidade da vida. O que trará o futuro fica por mostrar, mas a luta pela sobrevivência e os gestos impulsivos de resistência de um animal ferido ficam a ecoar, como os tiros dos caçadores que ouvimos ao longo do filme, como uma música que não sai da cabeça.
★★★★☆