O walshiano Pedro Florêncio apresentou em público, no Cinema Ideal, Un couple (Um Casal, 2022) em dia da sua estreia comercial. O conteúdo dessa apresentação mais, como é claro, o filme propriamente dito provocaram no congénere walshiano Luís Mendonça uma vontade grande de iniciar uma troca de missivas – o próprio texto do filme também se baseia numa intensa exchange de cartas entre Lev e Sophie Tolstói. A conversa desenrolou-se à distância, para mais, durante uma viagem ao norte da Europa levada a cabo pelo autor de Esculpindo o Espaço: O Cinema de Frederick Wiseman. A carta era o medium mais do que justo para se encararem questões difíceis, nomeadamente a natureza documental desta dita ficção wisemaniana e o seu lugar na obra recente do nonagenário.
Allô, allô,
Depois da sessão de Un couple e da apresentação que fizeste, ocorreu-me mandar-te um e-mail para partilhar contigo algumas impressões que o filme me suscitou – e que, já agora, a tua própria apresentação propiciou, à maneira de uma, para usar uma palavra que usaste, “contaminação” muito bem-vinda.
A primeira dessas boas contaminações que só as melhores apresentações podem gerar foi mesmo o ter-me feito pensar sobre o lugar do documentário face a um objecto como este. Será talvez surpreendente para muitos – eu próprio não esperava encontrar um filme que apresentasse tal conjunto de traços ou características – verificar que Un couple é uma obra, ao mesmo tempo, extremamente modelada pelo seu texto ou textos (de autoria partilhada do casal Tolstói), mas também é um documento extraordinário, muito duro até certo ponto, sobre a vida de um casal, tão particular e tão universal como este ou qualquer outro, tal como uma actriz o performatiza, o anima ou agita numa paisagem natural que subtilmente se insinua num co-protagonismo algo inesperado. Penso mesmo que há qualquer coisa de um efeito de “coro grego” na maneira como Wiseman “corta” para o enrolar das ondas, faz suceder um conjunto de planos com teias de aranha (cada vez mais densas, mas sem pistas sobre a presença do “bicho”) ou “dramatiza” o enredar da vegetação que se prende ao vestido da mulher-protagonista, Nathalie Boutefeu, que “faz” de Sophie, mas que também “faz” de Lev.
Confidenciei-te que o bloco inicial, em que a mulher aparece no topo da falésia perante o mar agitado, me fez pensar em Man of Aran (O Homem de Aran, 1934) de Robert J. Flaherty. É a partir daí, desse ponto alto e vertiginoso, que outro elemento, o “agente do meio”, é convocado (summoned): o texto de origem, os diários e as cartas trocadas pelo casal para a produção de uma distância necessária mediante a qual se possa pensar – e respirar – nos intervalos de uma relação de extrema e por vezes saturante convivência. É este o outro aspecto que partilho já contigo para saber também se ressoa em ti: o facto de Wiseman ser tradicionalmente visto como um cineasta do espaço público, nos antípodas de um cineasta do íntimo e tão-pouco dos sentimentos (não muito flahertiano, nesse sentido). Contudo, ofereceu-nos este filme muito vivo (quase impressionista) feito com uma actriz, com e numa paisagem, com e através de um conjunto de textos com mais de cem anos que falam de assuntos do coração. Descobriu ele esse espaço do íntimo aqui? Que relação podemos estabelecer com os seus célebres documentários “das ou nas instituições”? O que é que ele oferece sobre si mesmo, que não podíamos encontrar nos seus outros títulos? Mas como podemos, apesar de tudo, desenhar a teia “entre-filmes”, sobretudo em relação aos seus mais recentes documentários? E a relação com a literatura ou “a escrita literária” na obra de Wiseman, podemos e devemos pensá-la, mais do que nunca agora? E como fica a tal relação difícil com as relações humanas, em particular qual o lugar da mulher nessa terrível “equação societal” que é o casamento (e não será essa, enfim, “a” instituição de Un couple?)?
Mais uma interrogação (não é para responderes a tudo, mas para eu próprio pensar, como quem o faz “em voz alta”, enquanto te escrevo): e qual o papel da palavra e da auscultação aqui? É que importa sempre recordar que é Wiseman quem se ocupa da captação do som, como inegociável “princípio escultórico” do seu cinema, operando o microfone para, e cito-te, “tactear o espaço”, ao passo que John Davey fica com a imagem.
Desculpa o vendaval de interrogações… Aliás, nem é justo iniciar uma conversa sobre um filme como este desta maneira, já que, para minha surpresa, deve ser das obras mais fáceis e “directas” – visando, como uma flecha, o coração que, parafraseio mal e depressa Sophie, “chora todas as suas lágrimas” – deste nosso “mestre Yoda” do documentário.
Um abraço,
Luís Mendonça
Sveiki (directamente da Letónia), Luís!
Respondo-te com alguns dias de atraso, o que não fará justiça à tua reflexão a quente, com tantas e valiosas observações-interrogações sobre este filme (e não só), apenas algumas horas (!) após o veres. Desculpa por isso. Antes de mais, citando o nosso mestre, faço um “aviso à navegação”: ainda não tive oportunidade de rever o filme, o que significa que vou falar de memória, portanto demasiado preso à impressão com que fiquei desde a sessão no Doclisboa de 2022, onde o vi, e que foi muito forte.
Começo pelo fim: quando te interrogas sobre o papel da palavra e da auscultação, estás naturalmente a tocar num ponto fulcral de todo o cinema do Wiseman, isto é, não apenas a convocar uma chave de leitura para interpretar textualmente os seus filmes, mas uma pista de compreensão do seu modo de fazer, da sua poética, pelo que essa é uma óptima porta de entrada nesta discussão. Embora ele não tenha feito a captação de som nem aqui, no Un couple, nem no La dernière lettre (2002), a verdade é que estes dois filmes “fora do baralho” revelam de forma muito lacónica aquilo em que se baseia a poética wisemaniana, a saber, numa muito particular capacidade de saber escutar (saber acolher) o que lhe chega e, a partir daí, da matéria pura e dura, trabalhar (esculpir) uma série de temas (leitmotifs) que, quando montados, exigem o mesmo nível de atenção (leia-se, de auscultação) da nossa parte – é por isso que num filme de Wiseman se deve mais falar de audiência e menos de espectadores. E o que chegou ao Wiseman neste filme, muito mais que uma série de textos sobre a “instituição matrimonial”, foram uma série de questões que esses textos levantam e que ele, como disse, demorou (tal como nos seus “documentários”) cerca de oito meses a “montar” – sendo fundamental considerar o próprio cenário como um texto entre outro textos “adaptados”, ou seja, o espaço como uma matéria que ele soube auscultar e, consequentemente, “textualizar” de forma muito precisa, mas a isso já lá irei.
De facto, tal como tentei dizer nessa minha apresentação, o Wiseman faz filmes como quem joga ao quarto escuro – aquele maravilhoso (e mui erótico) jogo de infância em que íamos mapeando o espaço e os corpos por apalpadelas. E digo “filmes” e não documentários porque, de um ponto de vista da criação, o que mais me impressionou neste filme foi o facto de ser um filme muito vívido, muito ágil, com um ritmo muito veloz, algo que penso que ele tem vindo a apurar desde o Boxing Gym (2010), não apenas por uma questão de estilo mas de substância, e que tem de ver com o facto de lhe interessar cada vez mais dramatizar a relação entre arte e natureza, ou entre a prática artística e o mundo “natural” – sim, estou a dizer que esse Tema (assim mesmo, com “T” grande) já é conscientemente trabalhado no Boxing Gym (basta ir ver os primeiros e últimos planos do filme, autênticas pinturas românticas, para se perceber o que estou a dizer). Ora, o que o Wiseman aqui escuta – ou melhor, ausculta – são os dilemas de uma mulher, não apenas enquanto esposa ou mãe, mas sobretudo, parece-me, enquanto artista.
O que nos leva, é claro, ao tratamento fulcral do espaço e da paisagem. A forma como ele filma a natureza, com imagens belíssimas mas sem qualquer sentido de embelezamento, é fundamental para dar forma ao grande Tema – ou não estaríamos a falar de um filme que referencia quase explicitamente pinturas de tradição romântica, como as de um Friedrich ou de um Cole, nas quais a tensão entre o humano e o mundo, entre o interior e o exterior, entre o subjectivo e o objectivo, é o verdadeiro Tema. Em Un couple, o “debate” também gira em torno desse centro de gravidade, ou desse palco em que a arte, como na filosofia romântica, é vista como a possibilidade extrair da natureza a sua força vital e oculta. Nesse sentido, é absolutamente certeiro que convoques o Flaherty, mas não um Flaherty qualquer, pois o Man of Aran também é uma dessas pinturas em que o grande Tema (de novo, com “T” grande) é o diálogo tenso entre o Humano e a Natureza (só que o que em Flaherty é da ordem da oposição, em Wiseman é da ordem de uma dialéctica permanente). Noutro sentido ainda, voltando à filmografia wisemaniana (aqui talvez tentando responder à tua questão sobre como “desenhar a teia entre-filmes)”, tanto o que o Ricardo viu no Crazy Horse (2011), por via das suas cenas de abertura e fecho, como o que a Susana apontou no Menus-Plaisirs: Le Troisgros (2023), ao identificar os cozinheiros como “escultores”, é, parece-me, na muche: nesses filmes como noutros mais recentes, há um debate em que o próprio Wiseman, tendo-se em imodesta mas justíssima conta, se coloca ao lado dos grandes artistas da humanidade: por exemplo, Caravaggio ou Glenn Gould, mais do que as referências a Beckett no final de Welfare (1975) ou a Melville em Belfast, Maine (1999), são verdadeiramente personagens entre personagens no final de National Gallery (2014) e Ex Libris (2017), respectivamente. A meu ver, esse Tema (o artista e a sua circunstância, ou o lugar da arte no mundo) perpassa toda a obra de Wiseman, mas é em Boxing Gym – não por acaso, um filme que vem logo depois de La Danse (A Dança – Le Ballet de l’Opéra de Paris, 2009), e não por acaso após um périplo por uma série de instituições “culturais” – que ele começa a escavar bem fundo essa pedra e força a entrada no panteão em que estão muito bem embalsamados um Flaherty, um Murnau, um Welles, um Oliveira ou uma Akerman, ali num “corredor do cinema” que ladeia com os dos outros grandes artistas da humanidade.
Fora isso, há muitas outras questões que me interessam discutir demoradamente neste filme, nomeadamente porque me interessa desmontar uma aparente (apenas aparente) oposição entre o íntimo e o público, ou entre a ficção e o documentário, ou mais ainda, já que tanto tenho lido isso desde a estreia do filme em Veneza há dois anos, entre a sua série de “documentários institucionais” e estes exercícios “menores” de “literatura filmada” ou “teatro filmado” que são Un couple e La dernière lettre.
Mas termino com uma resposta a uma das outras questões que levantaste, porque é das mais relevantes de todas, e porque assim também termino em jeito de provocação ao tocar num dos poucos soft spots – talvez lhe possamos mesmo chamar um beef – entre nós: a meu ver, em todos os filmes do Wiseman há a construção de um “efeito de coro grego”, tal como o disseste. Em bom rigor, e qual paradoxo, Un couple e La dernière lettre são os filmes que, por serem mais despojados e minimais, tornam isso mais evidente: Nathalie Boutefeu e Catherine Samie não falam apenas por Sophie Tolstói ou por Anna Semyonovna; em muitos momentos, falam por todo um povo. Se, em La dernière lettre, Samie/Semyonovna fala por um povo perseguido e à beira do extermínio, em Un couple, Boutefeu/Tolstói fala em nome de uma comunidade de artistas subalternizados e relegados para o anonimato. Mas eis a minha provocação: se esse “coro grego” aparece muitas e muitas vezes ao longo da obra wisemaniana, então os seus casos-limite são também os mais problemáticos ao nível da ética documental. Falo do coro de Titicut Follies (1967), no qual a loucura se apossa de todos os corpos (prisioneiros e guardas) de igual modo, e do coro final de Monrovia, Indiana (2018), em que um lamento bem demorado e lacrimoso se apossa de uma comunidade que pressente estar próxima do fim. Será o transbordamento desse limite, nesses dois casos, um comprovativo de que o Wiseman não é – nunca foi – um documentarista, tal como o próprio o diz?
Ardievu e até já!
Pedro Florêncio
Aloha!
Vindo do Hawai!
Not!
Bem, tu trazes a esta exchange wisemaniana um olhar de águia privilegiado. E daí te ter enviado logo, logo aquele primeiro e-mail, disparando e fazendo perguntas depois, quer dizer, sem pensar muito, porque era obrigatório reservar esta nossa conversa, sobretudo depois da tua apresentação de Un couple no Cinema Ideal. Desde já, interessa-me essa grande montagem que acabas por propor entre filmes do Wiseman. Percebi, pelo que me contaste, que a mulher de Wiseman, que dá nome à sua produtora, Zipporah, terá falecido há pouco tempo. E foi aí que comecei a juntar as peças, nomeadamente ligando este Un couple (óbvia relação!) à obra seguinte, já tipicamente documental, numa abordagem “fly-on-the-wall”, Menus-plaisirs – Les Troisgros (2023), em relação à qual havias sugerido, em conversa, um dos double bills mais audazes que ouvi em muito tempo: com nada menos do que Ran (Ran – Os Senhores da Guerra, 1985) de Akira Kurosawa.
É aí, não só em Un couple mas entre esta ficção epistolar e o documentário degustativo que se lhe segue, que surge uma espécie de tema escondido na eventual recta final da obra wisemaniana: a família. O íntimo parece, então, irromper no espaço institucional (a sua filmografia é já uma “instituição de instituições” no campo do cinema documental) para “fazer e dizer das suas”. Confesso que, entretanto, estou sob o efeito de um filme encantador chamado La passion de Dodin Bouffant (Sabor da Vida, 2023), produção francesa do vietnamita Tran Anh Hung estreada recentemente e que junta à mesa o retrato romântico e sentimental de um marido e de uma mulher (“pondo a colher” numa relação passada off screen, agora revivida entre os actores on screen, Juliette Binoche e Benoît Magimel) e uma espécie de ode à arte gastronómica. No entanto, o “casal” de Wiseman, os Tolstói, é bem mais áspero do que o do filme de Tran Anh Hung. Também me gerou – e a ti sei que também foi assim – “mixed feelings” o retrato da relação entre pai e filhos no cativante Menus-plaisirs.
Não se pode dizer que Wiseman esteja muito simplesmente a despedir-se deste mundo enviando cartas de amor e amizade. Noto até um certo desencanto no retrato que faz dessa “instituição família” e, neste Un couple, o olhar é igualmente ácido em relação ao microcosmos matrimonial. No entanto, acho interessante que seja ela, a mulher, a condutora da acção. Eu dizia-te algo após o filme que repito agora: esta é uma espécie de Staroye i novoye (Linha Geral , 1929) de Wiseman. O americano descobriu a sua figura-síntese ideal, para a instituição que pretende escalpelizar, quer dizer, a família ou o casamento, e trata-se, como no filme de Eisenstein, de uma mulher. Acho que é um ponto para reflectirmos: o lugar da mulher ou das mulheres no seu cinema, antes mesmo de pensarmos no lugar dos protagonistas ou das personagens nos seus documentários. Por ora, sabemos uma coisa: quando faz a dita ficção, Wiseman quer filmá-las a elas. E elidir a presença masculina. Curiosamente, em Menu-Plaisirs, o principal triângulo dramático (e empresarial) é masculino: o pai-patriarca e os seus dois filhos-discípulos (daí a tua saborosa proposta de acompanhamento com Ran).
Bem, estou “a esticar-me” para lá da tua última carta… Mas se calhar não estou, porque, em certa medida, era interessante poder ver nestes filmes o prenúncio do grande volte-face wisemaniano, que seria percebermos que, afinal, o teatro tem actores, para dar a volta à fórmula-slogan de Robert Drew relativa ao cinema directo (“teatro sem actores”). E até tem um sublime e subtil director que dirige, antes de mais, por via do som – do vento, do cantar dos pássaros e da palavra cindida pela une vie de um casal e performatizada pelo corpo uno (“1 + 1 = 1”) de uma mulher.
Abraço havaiano!
LM
Koyaanisqatsi, Luís!
(é a música que pus de fundo para te escrever, por isso serve como um Olá!)
Pois é, desculpa se me deixei levar demais pelo prazer do intertexto, afastando-me do exercício de corpo-a-corpo que o Un couple nos merece. Se o fiz, no entanto, foi somente porque acho mesmo que uma das proezas deste filme é a de condensar muitas das grandes questões wisemanianas, e isso já é dizer muito sobre um filme que tem sido falado como uma excepção à regra, um “filme menor”, ou como mais um “corpo estranho” numa filmografia só muito superficialmente homogénea. Aliás, quanto mais falo do filme, mais mudo de ideias em relação a esse double bill que propus (Ran + Menus-plaisirs), o qual tinha sobretudo em vista um pano de fundo shakespeariano, e mais me convenço que o melhor par seria propor, tal como disseste, o “óbvio” (mas, na verdade, bastante obtuso) Un couple + Menus-plaisirs. É que este último, a meu ver, para além de se juntar aos maiores opus do Wiseman, é sem dúvida uma das peças-chave para o pensar o seu universo (ou melhor, o multiverso) em retrospectiva – a começar, é claro, pela questão sensível da “família”.
Mas antes de ir a essa questão, deixa-me pegar na tua sugestão de pensarmos o lugar da mulher no cinema do Wiseman, e dizer que também aí há um Lado A/Lado B nesses dois últimos filmes que me leva a insistir no tema da Arte vs. “Natureza” (já explico as aspas), justamente por achar que nos ajuda a pensar a figura feminina (da arte). Un couple é, num sentido muito preciso, o avesso de Menus-plaisirs, a começar pelo facto de Sophie Tolstói ser o negativo da figura do Pai de Menus-plaisirs, uma espécie de Rei Lear obcecado com a sobrevivência activa do seu legado, ou melhor, do seu Reino, do qual nem a sua filha (esqueceste-te de mencionar essa personagem-chave, muito subtilmente elidida!) também não escapa. Ora, o mundo natural de Un couple não é apenas uma metáfora da violência nas relações humanas, é também uma figuração do mundo sociocultural que define as condições de possibilidade da vida de Sophie Tolstói. Tudo aquilo de que Sophie fala, se bem me lembro, performatiza uma negação feminina da célebre frase de Ortega y Gasset: “O homem é o homem e a sua circunstância”. De certo modo, Un couple (e La dernière lettre também, mas por outras razões) é muito mais “documental” do que todos os restantes filmes de Wiseman, justamente por (quase só) se limitar a mostrar essa mulher e a sua liberdade diante das suas condições de (im)possibilidade. [Agora, de repente, lembrei-me de outro filme muuuuito menos óbvio de Wiseman que faria um belo par com Un couple , justamente por ter como “falsa” protagonista uma mulher – não me lembro do nome dela, mas é esta senhora – que persiste em remar contra a maré: falo de Public Housing (1997), outro opus wisemaniano, este sobre a persistência da democracia – tema wisemaniano que nos levaria para outros filmes… damn, isto não tem fim! – que, tal como a arte, exige muita resiliência e criatividade]. O mundo “Natural” de Un couple é a figuração liminar de uma Instituição maior chamada Vida (nela cabem todas as outras, a começar pela Família), muito bela e muito terrível.
É impossível reagir ao teu óptimo apelo para pensar o lugar da mulher no cinema de Wisseman sem também referir outro filme revisto recentemente na Cinemateca e sobre o qual falámos: Domestic Violence (2001). O que mais me impressionou nesse visionamento (corrijo: audiovisionamento) foi a forma implacável de como só em sala me apercebi do ambiente monotemático e claustrofóbico que o Wiseman cria: ao longo de mais de três horas, nem no interior de uma casa de abrigo para mulheres há escapatória dessa prisão chamada Casamento, o único assunto de conversa do início ao fim. E, quando ‘saímos’, ou é para espreitar brevemente os espaços exteriores do abrigo, sempre tristes e vazios, ou para vermos polícias impotentes perante a lógica da dominação masculina. Sei que é mais um desvio, mas necessário: ter revisto Domestic Violence depois de ter visto Un couple foi o que me ajudou a ver as paisagens do mar e da natureza de Un couple como uma figuração do muro que rodeia a protagonista. E é uma decisão de montagem (leia-se, de escrita) muito forte, enfim, que a única saída possível de Sophie, na última cena de Un couple, seja justamente a de uma recolha num espaço interior (e o seu corpo, um lápis e uma folha à luz de uma singela vela), que é justamente o lugar de fuga dos grandes artistas, neste caso de uma grande escritora.
Concordo: há um lado de Linha Geral em Un couple justamente pelas razões que evocas, sem dúvida, embora o lugar da mulher na obra do Wiseman seja já algo muito trabalhado, muitas vezes de forma “contra-pontual” – Essene (1972), Meat (1976) ou Missile (1988) são muito relevantes a esse respeito, pela forma como a delicadeza feminina aparece em “negócios” de homens – e outras vezes de forma central – a estetização/mercantilização do corpo feminino em Model (1981) ou Crazy Horse (2011), por exemplo. Já a família é um tema que está presente desde High School (1968), depois muito acentuado em Juvenile Court (1973) e Canal Zone (1977), ou ainda em Deaf (1986) e Blind (1987), e com ponto alto na cena final do já referido Monrovia, Indiana. Aliás, no outro dia fiquei estarrecido com a maneira como o Menus-plaisirs me permitiu ver que a Família é um dos leitmotifs principais da obra-prima que é Belfast, Maine! Mas também concordo: nestes últimos dois filmes, estamos perante muito mais que uma simples despedida ou dimensão autobiográfica dissimulada. A priorização do tema da Família nos últimos dois filmes leva-me a pensar que estamos a testemunhar o sprint final (esperemos que não) da obra de um grande artista que, à semelhança de um Beckett ou de um Cézanne, já só procura (porque já só sabe como) criar com os elementos mínimos essenciais – e, talvez por isso mesmo, vejamos agora melhor que nunca os seus “actores”, não porque sejam destacados com esse propósito, mas porque o resto está tão depurado que a performatividade humana ganha outro relevo.
Ah, e se tu viste o Sabor da Vida (que não conhecia), eu revi o Oslo, 31. august (Oslo, 31 de Agosto, 2011)… e que murro no estômago, desta vez ainda mais fundo. De facto, já dizia o Tolstói: “cada família infeliz é infeliz à sua maneira”….
Abraço Philip Glassiano (mesmo a tempo do fim desta maravilha)!
Pedro
Aloha (ainda do Hawai of the mind!)!
“Koyanisqatsi” significa, na língua hopi, precisamente uma vida que perdeu a sua harmonia – mas ouve-me é esta versão extended oferecida pela Santíssima World Wide Web. Não há formas geométricas perfeitas para conseguirmos encapsular “toda” uma obra, ainda que, devo dizer-te, ofereceste aí, nessa missiva, pistas importantíssimas em resposta ao meu repto: cherchez la femme no universo wisemaniano. Onde está a Zipporah (o novo “Wally” da exegese wisemaniana, que, no teu caso, não tem fim, é circular e sempre em queda, como a música do Glass) nos seus filmes?
Acho que a Natureza é, de facto, uma espécie de muro ou murro. Como aqueles contra ao qual atiramos a bola, num jogo de squash. É isso que a câmara de Wiseman descobre na relação, afinal, a dois, entre Sophie e o mundo que a rodeia – literalmente ela batalha com ele, nomeadamente quando fica com galhos presos na saia e depois há a já referida colecção de teias… Ela também diz a certa altura, citando-se numa das suas cartas, que precisa de respirar. É como se Wiseman a enviasse para este lugar, onde tudo é ar, e se dissolve no ar, para desabafar. E, subitamente (não acontece connosco às vezes?), sente-se cercada pelos seus próprios pensamentos e queixumes. O amor é tramado: nem ali, naquele Éden verdejante, consegue, de facto, respirar. E o marido está por todo o lado, reencarnado na muralha de animais, água e vegetação que a câmara de Wiseman eleva. Lev acerca-se e cerca Sophie.
Se percebi bem, o filme é uma tentativa de direito de resposta da mulher face às faltas e “abusos” do marido, o que talvez me faça, também eu, regressar ao intenso e outrossim claustrofóbico Domestic Violence (a sua parte I). Claro que não estamos a falar do mesmo tipo de relação, como é evidente, mas o centro que acolhe mulheres abusadas pelos respectivos maridos, mostrado e “descarnado” no filme, é um puro espaço de escuta, em que se torna evidente o altíssimo grau de desprotecção e fragilidade com que inúmeras mulheres levam as suas vidas numa sociedade não tão distante da nossa.
Queria falar de distâncias, mais uma vez, a este propósito. Não é espantosa a história do casal Tolstói e este seu dispositivo de distanciamento no coração da instituição matrimonial? Falo das cartas que escrevem entre si, vivendo, contudo, um com o outro, num regime de intensa proximidade, misturando os affaires do coração com a “empresa” da literatura. Esse é o outro lugar aqui, em Un couple: o da escrita. É o refúgio primeiro, palco para o actor principal deste documentário: a palavra. É aí que a purga e a disputa acontecem, numa primeira instância. Está tudo na acção da palavra, mas, claro, e se calhar ao contrário de Straub-Huillet, Wiseman e a sua actriz, sua cúmplice neste projecto, quiseram performatizá-la frente à “Mãe Natureza”. Como duas mulheres em luta, num pingue-pongue ou num squash virtual, para saberem, enfim, de que nos vale o amor se ele é (sempre?) uma forma de aprisionamento.
Saudações hopis e letãs,
LM
Hei hei, Luís
(desta vez do aeroporto de Helsínquia, em trânsito e de regresso a casa!)
(Man, a versão extended do “Koyanisqatsi” é maravilhosa, nunca tinha ouvido. É uma interpretação bem mais justa da desintegração do mundo, porque muito mais lenta e, como tal, sublime, de perder de vista. É essa, aliás, a nossa condição ecológica face à actual sexta extinção em massa: nem o nosso “cine-olho” consegue perceber a velocidade a que as coisas se estão a desintegrar, e daí estarmos destinados a falhar todos os prazos no combate climático.)
Olha, não me lembrava de todo desses pormenores da “batalha” de Sophie com a natureza – sendo o caso da saia que fica presa, aliás, um dos quais o Wiseman tem falado em entrevistas em resposta a perguntas sobre o lugar do improviso neste filme. E é um óptimo exemplo de como o que à primeira vista possa parecer uma pequena curiosidade num filme seu de “ficção”, na verdade, é uma prova do seu métier: “Nada em excesso, nada que falte.”, citando o Bresson. Ou seja, não há nada que ele não aproveite das filmagens que não tenha relação com o design do Todo, nem mesmo o mais inusitado gesto. Tudo está meticulosamente harmonizado de acordo com os temas que se vão desenvolvendo em espiral até ao fim do filme, aliás como em qualquer filme seu.
Ao convocares o “dispositivo de distanciamento” de Un couple, acho que chegámos à etapa mais importante desta conversa. Que distância é essa nos filmes de Wiseman e como é que ele a cria? O grande fascínio dos filmes de Wiseman passa justamente pela criação de um sentimento paradoxal: por um lado, há uma aparente imersão na narrativa, um efeito de fluidez possibilitado por uma montagem da transparência muito sofisticada e que está no epicentro dos equívocos mais banais sobre a noção de “cinema observacional”. Esse é o sentimento que funciona como um arrastamento musical, uma espécie de “lava” que escorre, escorre, e nós levados por ela – e daí a importância dos “cut aways” de que o realizador já falou várias vezes, planos de pormenor que dão muito jeito sacar na filmagem para, na montagem, intercalando-se com os planos de “cinema directo”, poderem criar a tal ilusão de continuidade. Mas, em segundo lugar, essa continuidade é aqui e acolá subtilmente interrompida, deliberadamente descontinuada, normalmente através daquilo a chamo de “paisagens intervalares”, a que correspondem os planos mais gerais e afastados dos espaços. Mais do que pausas, esses momentos são a transparência da montagem, a sua evidenciação. Habitualmente, tais planos têm uma função de recuo que nos “obriga” a respirar (já lá irei) e, eventualmente, a pensar.
Em Un couple, há uma grande novidade em relação a toda filmografia de Wiseman no que respeita a essas “paisagens intervalares”: pela primeira vez, elas são as paisagens do exterior e, simultaneamente, os momentos em que Sophie olha para a câmara – acrescentaria o espaço inicial e final, no qual ela está recolhida no (seu) interior – e revela uma paisagem da alma. Esse olhar – esse recolhimento – não é, portanto, uma mera quebra da quarta parede (é aqui que os Straub não são de todo chamados para este conversa), pois é um dos intervalos wisemanianos a funcionar no seu “dispositivo de distanciamento”.
Isto é muito importante porque nos põe a nós, espectadores, muito próximos do centro da experiência, isto é, nós somos parte da experiência. Não somos meramente envolvidos por uma realidade virtual; somos puxados para o filme, mas o nosso corpo continua a ser o nosso corpo, isto é, a situação do nosso corpo é que nos obriga a ter de definir a nossa própria distância no interior do filme, dentro de uma muito ampla distância de “observação” que nos é providenciada. É a magia do cinema (de Wiseman): estamos sempre dentro e fora ao mesmo tempo; é um cinema simultaneamente lúdico e reflexivo, um equilíbrio ideal entre a antropologia (“o que eu faço é ciência natural”, chegou ele a dizer nas primeiras entrevistas da sua carreira) e poesia.
As imagens pensam tanto quando nos fazem (obrigam-nos) a pensar. Mas também nos dizem qualquer coisa, que é o mesmo que dizer que nos convidam a falar. É aqui que o filme se torna importante de um ponto de vista político, até de um ponto de vista marxista-feminista, se quiseres. Quando Spivak perguntava se “pode o subalterno falar?”, a resposta era negativa justamente porque ao subalterno faltam os meios para saber articular a sua fala – meios, esses, estratégica e deliberadamente retirados por quem domina e gere a linguagem. Ora, Sophie não é subalterna porque sabe e pode falar (e lembras-te do quanto o Wiseman deixa as mulheres de Domestic Violence 1 falar, não lembras?). É essa a sua arte: falando (leia-se, escrevendo), ela responde ao “mur(r)o” da Natureza que a rodeia. De algum modo, Un couple é o momento “cine-punho” na obra de Wiseman, o seu filme mais eisensteiniano, o que é muito significativo numa obra que é essencialmente vertoviana (um cinema do intervalo).
Eis a minha aposta em Un couple: Wiseman encontrou na vidência de Sophie (de Zipporah?) a sua própria mundivisão enquanto cineasta. E este filme é a visão (a ‘mostração’) dessa vidência, dessa capacidade de ver o mundo nessa distância dupla, tensa e oscilante, em que uma paisagem exterior é produzida de acordo com uma tonalidade afectiva interior. Estamos na terra pátria do monólogo interior – mais uma vez, Eisenstein e não Vertov.
Por fim (e desculpa alongar-me, mas sabes bem o quanto isto mexe comigo), penso que a questão da respiração tem que ver também com a questão da escuta (de Wiseman). Sophie é o espectador-criador wisemaniano por excelência porque não é indiferente ao espaço (leia-se, ao filme) que a rodeia. É uma respiração conjunta – uma conspiração – entre personagens e espaços que perpassa todo o seu cinema e que neste filme se torna evidente com a relação de Sophie e o ar livre para onde, tal como dizes, ela sente necessidade de se deslocar para respirar. Como se os seus pensamentos, só aí, pudessem ser uma leitura-escrita do mundo. E, à medida que essa leitura-escrita progride, ela mesma passa a tomar consciência de que o mundo que a rodeia é um produto da sua percepção – tal como em Domestic Violence 1, cujo mundo (espaço) que Wiseman esculpe é, apesar de toda a facticidade, um mundo construído cinematograficamente, um mundo imaginado. Que Sophie termine o filme serena (não confundir com “conformada”) face à violência dessa realidade (da imagem), é muito significativo.
Isto leva-me a crer que, em Un couple, não há uma luta entre duas mulheres, mas justamente entre uma mulher e, se quiseres, uma Natureza ambígua, muito contraditória, porque é patriarcal e falocêntrica (o tal acercamento do Lev), mas, simultaneamente, sublime e harmoniosa, um mundo indiferente à nossa passagem que, se o soubermos ver-escutar, nos integra na ordem natural das coisas. Isto significa que esse mundo percebido, apesar de traduzir a experiência de enclausuramento “matrimonial” em quem Sophie vive, qual prisão existencial, é na verdade uma imagem, que, lá está, lhe (e nos) permite ganhar distância da sua (e nossa) situação. “Art always stands at a distance from reality” – com esta certeira frase do Arthur Danto estou inteiramente de acordo e uso-a como remate ao meu raciocínio.
Eis a libertação da arte de que Un couple nos fala – uma expiração (uma devolução do ar) que só pode começar com uma inspiração. Uma conspiração com o mundo (ou, como os românticos a entendiam, com a natureza). É a lição de Carpenter com os óculos de They Live (Eles Vivem, 1988) e é lição do cinema de Wiseman: tudo está em relação (tensa, dialéctica), mas é preciso o cinema (o de alguns cineastas, muito poucos) para conseguirmos ver isso. Querem filmes mais políticos do que isto?
Despeço-me, bem a propósito, com o melhor souvenir que trouxe de Riga: um memorial do Eisenstein (inscrito na casa em que nasceu) em promoção dupla de -50%. Aproveita o desconto – e, já agora, também todo o cinema de Wiseman que ainda está para vir, apesar do fim do mundo.
Bless!
Pedro