1988. Os anos oitenta andavam por aí para ainda formarem cinéfilos pouco interessados em “experiências de cinema” de quatro ou cinco horas, e mais interessados num bom filme com diálogos do caraças. As mulheres reinventavam o ideal feminino do pre-code (quiçá com menos liberdade). A economia construía heróis que apelavam à ganância como virtude. Continua a ser uma década com tanto de estranho quanto de irresistível.
“Women are of the earth, realistic, dominated by physical facts.” A frase de Charlie Chaplin em Monsieur Verdoux (O Barba Azul, 1947) nunca soaria tão apropriada quanto nesta teia de conflitos hierárquicos no escritório e no quarto chamada Working Girl (Um Mulher de Sucesso, 1988). As mulheres da década muniram-se de todas as armas para traçarem o caminho do sucesso: unindo-se contra um inimigo comum, o chefe, em Nine to Five (Das 9 às 5, 1980) vestindo-se de homem que se veste de mulher, em Victor/Victoria (1982), ou até mesmo sendo uma mulher que era um homem, em Tootsie (Tootsie – Quando Ele Era Ela, 1982). Diferentes manuais de instruções para o empoderamento.
“You can bend the rules plenty once you get to the top, but not while you’re trying to get there. And if you’re someone like me, you can’t get there without bending the rules.”
No caso de Tess McGill (Melanie Griffith), esse caminho é feito de forma solitária, ela contra o mundo. As portas fecham-se porque ela não corresponde ao modelo do executivo de sucesso: a roupa, o penteado, a fala, a formação. Num filme que fala, acima de tudo, de classe e de classes, Tess acaba por compreender que, se criar a fachada “certa”, talvez alguém veja finalmente a sua inteligência (dando um certo twist à frase de Coco Chanel que é citada). Se em Katherine Parker (Sigourney Weaver), a sua chefe, tudo é calme, luxe et volupté (embora escondendo a sua baixeza) e segurança de si própria (“And I am, after all, me.”), Tess tem o tal “real fire in your belly” de que fala Oren Trask (Philip Bosco), uma vontade enorme de chegar ao topo e uma irascibilidade que a leva igualmente a queimar oportunidades. A antítese do modus operandi de Katherine, que se livra de um colega inconveniente com subtileza, porque “today’s junior prick, tomorrow’s senior partner.”
O universo feminino (aqui não há outro) que Mike Nichols cria a partir do argumento de Kevin Wade é feito de mulheres duras (a começar pela estátua da liberdade nos créditos iniciais), umas vestidas de forma extravagante, embarcando no último fôlego da moda flashy da década de oitenta, outras vestindo da forma que uma mulher acha que um homem se vestiria se fosse mulher, em tons neutros, fundindo-se na multidão. Daí Tess provocar tamanho impacto quando, impreparada para as lides sociais ao mais alto nível, decide usar o “tal” vestido de veludo preto para um cocktail de final de tarde, em que todas as mulheres vestem variações do mesmo tailleur cinzento, cabelo escuro apanhado, óculos, talvez ousando umas pérolas. E é esse vestido, aquele cabelo loiro solto, aquele cruzar de pernas e o efeito do Valium de dosagem mal medida que despertam a curiosidade de Jack Trainer (Harrison Ford), muito rápido e eficiente nos seus avanços (uma atitude que contrasta com a sua atitude um pouco titubeante quando se trata de negócios). “I have a head for business and a body for sin. Is there anything wrong with that?” Claro que não. Assim como também não há mal nas gotas de Magie Noire, o frasco surripiado no toucador de Katherine (apesar de esta mais tarde revelar que o perfume favorito de Jack é Shalimar), o mesmo Magie Noire que levava Pedro Oliveira a inebriadamente seguir o rasto de Ana Zanatti em O Lugar do Morto (1984).
Os diálogos de Working Girl tocam todas as futilidades que o sexo masculino tende a identificar como temas de conversa femininos – a roupa, os adereços, os perfumes, a maquilhagem e, claro, os homens. Mas são os homens quem sai mal na fotografia, invariavelmente trengos ou trastes, sendo o próprio Jack Trainer a assobiar If I only had a brain enquanto regressa ao leito, depois de sucumbir a Tess [a música que o espantalho cantava em The Wizard of Oz (O Feiticeiro de Oz, 1939)]. Jack é talvez a mais benévola das personagens masculinas do filme, mas não deixa de ser totalmente controlado pelas mulheres que o rodeiam, Tess e Katherine, e por vezes mesmo “assoberbado” pelo contingente feminino, com um público de secretárias que aplaudem, do outro lado do vidro, o “espectáculo” da troca de camisa. Isto não significa que exista aqui uma irmandade feminina, que se afirme unitariamente no seu poder. Não, elas sabem ser viperinas, capazes de tudo para vencer. Mas também sabem ter os seus remoques de solidariedade, como sucede com as colegas de Tess que fazem uma colecta para financiar uma bem necessária piela. E, claro, a personagem de Joan Cusack, Cyn, amiga indefectível de Tess, que na tradição do cinema clássico americano vai dispensando a sua sabedoria salpicada de algum sarcasmo, qual Thelma Ritter ou Eve Arden.
Se a mulher mais impiedosa é, sem dúvida, Katherine, as convidadas da festa de casamento da filha de Trask não são propriamente dóceis, portando-se de forma muito pouco dignificante e mostrando que o subir no escalão de rendimentos não equivale a uma subida na elegância. A festa de casamento é uma súmula de tudo o que existe de mais piroso, desde a decoração (“paradise with little palm trees”), à música (a versão ilha tropical de St. Thomas de Sonny Rollins), às roupas, ao comportamento. Os ultra-ricos da época ainda não tinham chegado ao grotesco de Triangle of Sadness (Triângulo da Tristeza, 2022) ou The Palace (O Hotel Palace, 2023), mas já sabiam ser um quadro de mau-gosto. E valham os frascos de Private Collection disponibilizados às convidadas no powder room, para um retoque de perfume, para garantir que ainda há uma réstia de sofisticação que é preservada, numa era dominada pelos aromas opulentos (os detractores diriam nauseantes) de Obsession, Poison ou Giorgio Beverly Hills (perfumes que Katharine Parker nunca usaria).
A pouca ortodoxa abordagem a Oren Trask durante a festa de casamento da sua filha revela ainda que Jack talvez não seja tão diferente de Tess, alinhando rapidamente na dissimulação e vibrando com a vitória final. É este o jogo que é capaz de entusiasmar Jack, que até aqui parecia apenas arrastado para a tarefa, um pouco acobardado, mais interessado na rapariga do que no negócio. É nesta cena que a afinidade existente entre os dois fica definitivamente selada – parceiros no crime. A rapariga e o negócio fundem-se.
Tess é uma descendente directa da Eve de All About Eve (Eva, 1950), disposta a tudo para vencer. Acaba por vingar e por se vingar.
Numa das suas críticas para o jornal O Independente, João Bénard da Costa afirmava, a propósito de Working Girl, que esta não era a história da Cinderela, mas sim a história de The Wizard of Oz. Efectivamente, não é difícil imaginar Tess como Dorothy, a estrada de tijolo amarela feita ferry boat, o reino de Oz feito Financial District de Manhattan, as torres do World Trade Center como castelo, Oren Trask como Feiticeiro de Oz (note-se, aliás, como Trask faz uso de “truques de magia” que lhe permitem sabe do teor da conversa dos seus subalternos com Tess e Jack – “he knows everything”). E se Dorothy tinha os seus ruby sleepers, Tess tem as suas sapatilhas brancas. Aliás, Working Girl é quase buñueliano na desmesurada atenção que é dada aos pés, em sapatilhas, em saltos altos, em botas de esqui e até mesmo no pé que Tess levanta ligeiramente quando beija Jack pela primeira vez.
“You know where you can bury your hatchet? Now get your bony ass outta my sight!”
Há filmes que quase existem pelo momento em que a personagem principal se sente vigada. E nós com ela. É uma sensação mais forte do que um mero final feliz ou de que o deslindar de um whodunit. É o momento em que Julia Roberts regressa à loja e confronta a empregada que não queria atendê-la, em Pretty Woman (Um Sonho de Mulher, 1990). E é o momento em que Oren Trask manda Sigourney Weaver desaparecer da frente dele com o seu bony ass. É a apoteose de todas as secretárias (ou assistentes, se assim preferirem) desconsideradas pelos chefes e prontas para se afirmarem como alguém que faz mais do que ir buscar chá e café – “me?”.
Tess é uma descendente directa da Eve de All About Eve (Eva, 1950), disposta a tudo para vencer. Acaba por vingar e por se vingar. O que significa que à espreita estará também uma Phoebe, muito provavelmente a nova secretária de Tess, apanhada no gabinete da chefe em amena cavaqueira ao telefone, pés levantados, como se fosse apanhada com a capa de Eve e o prémio Sarah Siddons nas mãos. E a história continua.
Voltando ao Verdoux de Chaplin: “business is a ruthless business, my dear”.