Nos últimos anos, acompanhar o desenvolvimento da filmografia de Steven Soderbergh tem sido frustrante porque para o fazer tem bastado ficar sentado no sofá a aguardar que os seus filmes estreiem nas plataformas de streaming. Na fase posterior a The Knick (2014-2015), uma série televisiva que obrigou o cineasta a interromper o ritmo de realizar um a dois filmes anualmente, apenas Logan Lucky (2017) e Magic Mike: Last Dance (2023) estrearam nas salas de cinema. Porém, entre ambos contabilizam-se uma dúzia de outros filmes que estrearam directamente na Netflix e na HBO Max. As obras desse período destacam-se pelo baixo orçamento – Unsane (2018) e High Flying Bird (2019), por exemplo, foram filmados com um iPhone – e pela mediocridade. Nenhum dos filmes desta temporada pelo streaming carece totalmente de interesse, seja pelas experiências formais feitas com câmaras digitais e lentes anamórficas, seja pelas aproximações ao cinema de género, como se verificou com No Sudden Move (2021) e Kimi (2022). Ainda assim, independentemente das suas qualidades, a sensação com que se ficava a cada novo título era a de que Soderbergh estava a dedicar-se a peixe miúdo.
O regresso de Soderbergh ao cinema de estúdio deu-se com Magic Mike: Last Dance. Contudo, de maneira a não poluir este texto, vamos ignorar esse filme, o terceiro de uma trilogia que Soderbergh criou e depois enterrou, uma obra que troca os corpos oleados dos strippers a dançarem ao som de remixes por enredos advocatórios. Passemos, então, directamente para os primeiros meses de 2025, altura em que estrearam quase consecutivamente Presence (2024) e Black Bag (2025), ambos assinados por David Koepp, argumentista com o qual Soderbergh colaborou recentemente em Kimi.
Em termos de escala de produção, Presence segue a linha dos projectos do realizador para o streaming, dado que é um filme-recreio de baixo orçamento que tem como principal objectivo pôr em prática uma experiência formal enquanto dialoga com os códigos do cinema de género, neste caso o horror gótico, que, em Presence, encontra expressão em signos como o fantasma, a casa assombrada, o arrivismo social e o espelho de nitrato de prata. Rodado num único cenário em onze dias e em colaboração com um elenco reduzido, o despojamento de meios verifica-se também ao nível narrativo, conforme se nota pelo tratamento da porção da intriga que atenta nas aflições jurídicas de Rebekah Payne (Lucy Liu) – esse ponto do enredo assombra o ambiente conjugal e familiar dos Payne somente através da sugestão, sem ser necessário expor pormenores.
Quando Chloe confessa sentir-se observada por uma presença, não é claro se ela se está a referir ao fantasma intra-diegético ou ao espectador-fantasma que a partir da sala de cinema a vê sair do banho ou fazer sexo.
O motor da acção é o teen drama da filha mais nova, Chloe Payne (Callina Liang), uma rapariga introvertida e mediúnica que pressente a existência de uma presença fantasmática na casa para a qual a família se mudou. Por razões de economia textual, irei poupar o leitor aos detalhes da trama, que progride através da acumulação de breves episódios que retratam o desmoronamento da família Payne a partir da perspectiva do espectro que assombra a casa. Remeto os detalhes da intriga para a margem porque a narração é mais relevante que a narrativa, tanto que a atenção do espectador se concentra mais no dispositivo formal, isto é, nos planos-sequência na primeira pessoa, do que nos acontecimentos. O facto de o enunciado imagético partir do ponto de vista do fantasma faz dele o protagonista. Não o vemos, mas sentimo-lo. A sua presença manifesta-se por via de uma câmara somática que responde aos movimentos do fantasma, que segue as diferentes personagens pela casa com relativo desprendimento. O paradoxo é que ao adoptar a perspectiva do espectro a câmara está a somatizar um corpo inexistente.
O espectador vê através do lugar do morto, ele próprio um espectador não-participativo (pelo menos durante a maior parte da acção) dos eventos que se desenrolam na casa. A adopção do ponto de vista do fantasma que observa os Payne salienta a nossa posição enquanto espectadores ao tornar sensível a estranheza do hábito cinematográfico de aceder a uma outra realidade a partir de uma posição que permite que nos mantenhamos invisíveis. Nessa conformidade, a experiência de ver o filme é auto-reflexiva, porquanto estamos conscientes da nossa presença na sala. Quando Chloe confessa sentir-se observada por uma presença, não é claro se ela se está a referir ao fantasma intra-diegético ou ao espectador-fantasma que a partir da sala de cinema a vê sair do banho ou fazer sexo. Além disso, o filme questiona os limites do agenciamento do espectador de cinema face às imagens que vê, uma vez que o fantasma que protagoniza a acção procura emancipar-se do seu papel enquanto observador e intervir sobre a realidade.
Do mesmo modo que destaco a maneira como o dispositivo formal do filme problematiza temas paradigmáticos respeitantes à posição do espectador de cinema e à sua relação com as imagens em movimento, não ignoro que Presence seja, na sua essência, um exercício de género incapaz de causar calafrios. Soderbergh não potencializa o poder horrorífico de vigiar e de ser vigiado, assim como tem dificuldade em dar nuance à presença do espectro que, durante a maioria da acção, se limita a observar exposição narrativa. Desse ponto de vista, o seu último filme, o recém-estreado Black Bag, equilibra melhor a qualidade teórica do texto fílmico, que também medita sobre as imagens em movimento, com os prazeres associados ao género do thriller de espionagem.
Ao contrário de Presence, que é uma produção independente cujos direitos de distribuição foram adquiridos pela Neon depois da sua estreia em Sundance, Black Bag é um filme de estúdio de orçamento médio-elevado, o que não significa que Soderbergh e Koepp sejam menos económicos com os meios à disposição. Com pouco mais de noventa minutos, este thriller não se perde com efeitos inúteis e elaborações que poderiam retirar-lhe inteligibilidade, pelo que se sente que o filme é imbuído do pragmatismo dos seus protagonistas, George Woodhouse (Michael Fassbender) e Kathryn St. Jean (Cate Blanchett), um casal que trabalha para um serviço de inteligência secreta britânico.
Embora Black Bag preconize que os relacionamentos amorosos (e não só) subsistem de mentiras, traições, manipulações e da construção de máscaras, no cerne do filme encontra-se um elogio senão à honestidade, pelo menos ao compromisso com a pessoa amada.
Na primeira cena de Black Bag, que começa com um plano-sequência reminiscente daquele com que Presence principia, George Woodhouse é informado por um colega da agência de que há razões para acreditar que Severus, uma arma cibernética desenvolvida pelo serviço de inteligência, foi roubada por um agente infiltrado. Entre os cinco suspeitos está a mulher do protagonista, sendo que os outros quatro também podem ser divididos em casais que gostam de misturar o trabalho e o prazer: Freddie Smalls (Tom Burke) e Clarissa Dubose (Marisa Abela), e Zoe Vaughn (Naomi Harris) e James Strokes (Regé Jean-Page). George tem uma semana para descobrir o(s) traidor(es) e, como tal, a narrativa está estruturada em sete blocos correspondentes a cada um dos dias da semana.
O primeiro passo de George para apanhar o infiltrado consiste em marcar um jantar social em sua casa com todos os envolvidos, o que acentua a promiscuidade entre a vida pessoal e laboral. As personagens não só ignoram que deviam evitar socializar fora do local de trabalho, devido ao risco de partilharem informações sensíveis, como se dá o caso de todas estarem amorosa ou sexualmente envolvidas com pelo menos um dos colegas. De acordo com Clarissa, a mais nova do grupo, é impossível os agentes se relacionarem com os civis devido ao nível de secretismo que o trabalho exige – contudo, namorar com um colega é igualmente danoso porque a profissão obriga-os a desconfiar do parceiro e a ter como pedra angular da relação o encobrimento e a mentira.
A vocação de George é, precisamente, desvendar mentiras e mentirosos. Ele é caracterizado como um polígrafo de carne e osso, um homem cerebral, daqueles que jamais esboça um sorriso e aparenta desconhecer a espontaneidade e a descontracção. Aliás, esta é já uma personagem-tipo para Michael Fassbender. Dir-se-ia que George Woodhouse é um cruzamento entre David, de Prometheus (2012) e Alien: Covenant (2017), de Ridley Scott, e o assassino anónimo de The Killer (2023), de David Fincher. Fassbender desempenha bem este género de papéis sociopáticos – porém, existe algum grau de previsibilidade na forma como o actor manifesta o calculismo das personagens por via da inexpressividade. Felizmente, o rosto empedernido de George não é o único traço que o define – o seu amor por Kathryn, a confiança inquebrantável que deposita na mulher e o alcance dos seus esforços para a proteger quebram a apatia da personagem. Quanto ao episódio do jantar, a discussão à mesa ganha contornos histriónicos devido a uma substância que George utiliza para drogar os convidados. A dramaturgia é maquinal e pouco elegante, mas cumpre o propósito de expor informação e caracterizar os suspeitos de maneira que o espectador, como o anfitrião, possa fazer as suas deduções.
Black Bag ganha tracção com o retrato dos dias seguintes. Com George à cabeça, as acções das personagens são colocadas em paralelo, ocultando e revelando informação criteriosamente ao espectador. Um dos instrumentos que George e, consequentemente, o filme utiliza para extrair dados sobre os movimentos dos suspeitos é a imagem em movimento. O protagonista socorre-se de imagens de satélite, de câmaras de vigilância, de drones e até mesmo de um polígrafo para se acercar da verdade. O acesso a estas imagens operativas define algumas das sequências principais de Black Bag, como a cena em que George, em conluio com Clarissa, vigia a mulher através da perspectiva omnividente de um satélite. Destaca-se também a sequência em que os suspeitos, à excepção de Kathryn, são interrogados por George, que monitoriza as respostas dos colegas com um polígrafo, que transforma a verdade e a mentira em gráficos transmitidos num ecrã de computador.
A verdade vem à superfície no seguimento de George e Kathryn dizerem um ao outro os contornos das operações que têm desenvolvido, no que constitui um acto de fé no seu casamento, porquanto o outro pode ser o traidor. Unidos com o objectivo de descobrir quem roubou Severus e tentou semear discórdia entre ambos, Kathryn e George são uma dupla irrefreável, motivada menos pelo instinto de sobrevivência de quem é acossado ou por ambições arrivistas dentro da agência de inteligência e mais pela determinação de demonstrar que o seu amor não é um risco profissional, mas uma valência. Embora preconize que os relacionamentos amorosos (e não só) subsistem de mentiras, traições, manipulações e da construção de máscaras, no cerne do filme encontra-se um elogio senão à honestidade, pelo menos ao compromisso com a pessoa amada.
Black Bag consolida, assim, o retorno de Soderbergh às salas e ao cinema de estúdio, assim como marca o regresso do realizador ao thriller operacional, género de que tem conhecimento processual e em que continua a atestar destreza resultante da simplicidade.
Presence, ★★☆☆☆
Black Bag, ★★★☆☆