Have you forgotten yet?
Look up, and swear by the green of the spring that you’ll never forget.
Siegfried Sassoon, Aftermath, Março 1919
O movimento de Benediction (2021) é descendente, daquilo que começa absorto e atmosférico, misturado com os sons e prazeres dos movimentos da vida, ao trauma que prende (acorrenta aliás) personagem, filme e espectador ao solo dali para a frente. O olhar parte do azul-marinho do céu, típico das noites mais estreladas, e só pára no asfalto molhado e reluzente da chuva que cai, repleto de homens com os seus sobretudos e chapéus altos que entram dentro de um teatro na Londres do início do séc. XX, em antecipação do ballet russo de Igor Stravinsky. No centro da plateia, dois irmãos. Ambos irão lutar na Primeira Grande Guerra, mas só um regressará. E, de repente, a cadência doce mas sombria de uma voz como que nos assalta: “The audience pricks an intelectual ear. Stravinsky quite the concert of the ear.”, anunciando o filme na forma de um sussurro falado que discorre como mel. Eis parte de um poema de Siegfried Sassoon, um dos mais célebres poetas e escritores ingleses, contudo perdido no esquecimento, que descreveu ao longo do seu corpo de trabalho a dor incansável que não se consegue desprender de um intelectual como ele que se fez soldado e viu a humanidade extinguir-se para sempre nos interesses políticos de uma longa guerra onde milhões morreram em vão. A voz do actor escocês Jack Lowden, aqui no auge da sua ternura, afinado para um inglês aristocrático repete: “The audience pricks an intelectual ear.” e zarpamos. A cortina do teatro sobe e abre-se, literalmente, ao arquivo fílmico de guerra e aos gritos de lamentação dos soldados caídos.

É raro encontrar um filme que, tão suave e terno no seu nervo, de perto e de longe, se prove tão dominante.
Porque se trata do autor britânico Terence Davies, é fácil depreender desde logo que este não será tanto um filme biográfico sobre Sassoon, mas uma redução à sua essência na forma da memória atormentada do poeta e tenente, que por causa da sua posição social, privilégio e reputação, conseguiu esquivar-se ao conselho de guerra, depois da sua controversa declaração anti-guerra – “Uma Declaração de um Soldado” – impressa em 1917 e lida em voz alta na Câmara dos Comuns, afastando-o da vida militar com apenas um prognóstico de doença nervosa e um período de hospitalização na Escócia. Davies começa logo por esse momento definidor da sua vida e do mundo que nunca até ali tinha sido alvo de tal rebeldia e respeito pela condição humana do soldado. É imediato o esplendor e a graça com que o autor o recebe, mais até do que tinha feito antes com a poetisa Emily Dickinson em A Quiet Passion (2016). O que se segue passa pela descrição dos amores e desamores de um homem homossexual no conservadorismo de uma sociedade onde existir enquanto tal seria uma infracção penal (“our shadow life”, como nos conta o filme).
Também porque se trata de Terence Davies, que usou o cinema enquanto instrumento autobiográfico, espelho de auto-expressão, tendo-se focado nos últimos anos de trabalho em trazer para primeiro plano as histórias íntimas de poetas abandonados, é notável a admiração de Davies pelo seu sujeito que ultrapassa o encantamento artístico. Desde muito cedo, algures entre a iluminação amarela torrada dos muitos interiores de madeira escura e encerada por onde Lowden se move, um paralelismo sucede entre os dois homens, especialmente no que diz respeito à exposição das suas vidas escondidas, e à relação que ambos nutriam (ou no caso de Sassoon, viriam a ter) entre a homossexualidade e a igreja católica. Davies cresceu no seio de uma família de classe trabalhadora em Liverpool envolto na rigidez mental dos tempos, e foi um católico devoto até aos 22 anos – a culpa religiosa nunca o abandonou. Sassoon converte-se ao catolicismo quando atinge uma certa idade e sente a necessidade de acreditar em algo mais do que ele mesmo, algo mais do que as piores coisas que os humanos são capazes de comandar e fazer uns aos outros.
Um filme enformado pelo choro sufocado, que subsiste numa dimensão cintilante distanciada da nossa e para a qual descemos se assim quisermos, cena atrás de cena, neblina cerrada fora.
Não só por tudo isto, mas também, o facto de que Benediction nunca teve distribuição nacional (como a maior parte dos filmes do realizador) nem direito a uma sessão póstuma quando Davies nos deixou o ano passado com 77 anos, é chocante e sintomático de um problema na indústria. Mas neste caso, é ainda pior porque responde indirectamente aos maiores agoiros de Davies e da repressão da raiva que o acompanhava: de que o seu trabalho nunca seria reconhecido, de que ele nunca seria reconhecido. Exactamente como a personagem de um Sassoon que sobreviveu à guerra e à sociedade e vive agora a sua velhice alienado de tudo e todos (interpretado por Peter Capaldi) confessa ao próprio filho: “Gostava de ter sido reconhecido de alguma forma significante pelo meu trabalho”. O discreto e indirecto (na forma como activa a alquimia da poesia visual), e por isso resplandecente, trabalho de Davies sempre se sentiu atraído pela aproximação e desconstrução da biografia. A forma como faz uso do seu método para falar de Sassoon é a forma como um poeta visual se aproxima para falar de um conterrâneo que nunca encontrou e sabe que nunca encontrará paz interior: através dos seus olhos, ou seja nas palavras declamadas de Lowden, veremos a guerra, mas também a esperança, e por conseguinte veremos o verdadeiro Sassoon.


Forço a ideia da declamação, em gesto de gráfico visual, porque é raro encontrar um filme que, tão suave e terno no seu nervo, de perto e de longe, se prove tão dominante. Numa estrutura que toca apenas nos eventos-chave da vida do poeta – quando este é baleado ou o seu curto casamento com uma mulher e mãe do seu único filho-, viaja entre presente e passado usando arquivo da altura da guerra como a cola que une e agrega o jovem ao velho Siegfried, por vezes até através de inesperados dissolves prolongados, planos que relembram a vitalidade do subtexto emocional presente, um instrumento muito Sirkiano que dá cor ao que é invisível perante a frieza do mecanismo cinemático. Não corre em Benediction o intuito de contar a história da vida de alguém (como é que isso se faz afinal?) e muito menos de precisá-la no tempo e espaço. Como espectadores, entramos na neblina de um estado de ser. Em tom, ritmo e disposição, provoca o mesmo animismo a esbarrar no fantasmagórico que Davies tinha capturado na adaptação para o ecrã da peça de 1952 The Deep Blue Sea (O Profundo Mar Azul, 2011), quando Hester (Rachel Weisz), que planeia o suicídio, pára em frente a um comboio em movimento, lágrimas nos olhos, corpo que ocupa o espaço que desafia a vida da morte. Mas onde esta figuração é específica e pontiaguda em The Deep Blue Sea, em Benediction encontra-se espalhada. E mais acentuada perante o declamar da palavra. Tudo o que de um corpo ressoa e a um ouvido chega queima, ou usando mais uma vez palavras de Davies, “perfura o coração”. Nada mais verdadeiro do que o que Bilge Ebiri escreveu para a Vulture sobre o filme de 2011, este não é um “filme pronunciado ou vistoso. Abre-te a ele, contudo, e poderá destruir-te.”
O mesmo poderá ser dito de Benediction, filme enformado pelo choro sufocado, que subsiste numa dimensão cintilante distanciada da nossa e para a qual descemos se assim quisermos, cena atrás de cena, neblina cerrada fora. Paralelamente ao que acontece à sua personagem principal, o filme nunca esquece e, por mais que lhe doa, nunca quer esquecer. Pois é essa a âncora que devia pesar. Que devia sobreviver a tudo. Esquece-se, no entanto, no seu segundo grande acto, da obra de Sassoon. Está demasiado focado em pintar a experiência queer durante o pós-guerra via relações prematuras e conversas espirituosas (o melhor ténis intelectual). Mas a última sequência faz a devida reparação. E não só produz um dos momentos mais belos do cinema britânico como é um claro gesto de despedida de Davies à sua própria obra, e ao espectador que o leu, ouviu e conheceu. Comboio em movimento da memória, como se ele já soubesse o que vinha ao seu encontro. Para a eternidade ficará sentado num banco de jardim, por baixo daquele céu azul-marinho, cara que olha em frente sem ver, molhada pelo sal das suas lágrimas, prometendo a si mesmo nunca esquecer e pedindo-nos o mesmo.

