O meu primeiro encontro com o filme da minha vida foi através das palavras de uma outra pessoa. Muitas vezes, as paixões que acabam por surgir quase inesperadamente nos nossos dias surgem um pouco dessa forma: algo de que ouvimos falar por outra pessoa e que recriamos na nossa imaginação, até que a sua história perdure e nos acompanhe como um fantasma, regressando e desaparecendo sem que decidamos por que razão, por que motivo. E aí sentimos, então, que talvez nos apaixonámos.
Esse conto começava com uma ida a uma sessão de um cine-clube lisboeta (na minha memória desse conto, um cine-clube católico), em que se aguardava a presença de Luís de Pina, futuro director da Cinemateca, para apresentar o filme dessa noite. À hora do seu início, a sala já se encontrava composta mas as luzes ainda estavam acesas. O convidado ainda não tinha chegado. Os espectadores, sentados, aguardam pacientemente pela sua chegada. Cinco minutos, dez minutos, quinze minutos. Gera-se alguma impaciência, aguardam-se explicações. Algo terá certamente acontecido. Quase meia-hora depois do início, Luís de Pina chega, pensativo, com um ar atordoado. Eis que se dirige ao público: “Peço desculpa pelo meu atraso, mas acabei de ver um filme que não é um filme. Ainda não sei bem o que é. Sei que é algo que está para além do cinema, algo que nunca tinha visto antes.” Os espectadores perderam uma apresentação à sessão que tinham escolhido e ganharam o discurso de alguém que, confiante ainda na sua fé (na vida, no cinema), colocava tudo o que conhecia em causa. É talvez esse o sentimento mais arrebatador que possamos sentir – quando vemos algo que nos faz questionar tudo, mas que reforça ainda o poder da nossa fé, das nossas crenças, dos nossos desejos. Luís de Pina talvez ainda não o soubesse – atrevo-me a dizer – mas estava apaixonado. E esse filme era 8 1/2 (Fellini Oito e Meio, 1963) de Federico Fellini.
Depois de ouvir a história, vi o filme repetidas vezes. As primeiras acompanhado, as seguintes sozinho. Não sabia ainda o que me prendia exactamente ao filme, pois não parecia ser um objecto uno e identificável a olho nu, não era algo a que nos poderíamos agarrar. O filme ia para além do que era palpável, vivia da sua própria imaginação e dos apelos que convocava ao mistério da sua própria vida. 8 1/2 pairava em espírito e em sentimentos até se confundir – sentia-o eu dessa forma – com os meus próprios desejos, as minhas próprias interrogações. – Eminenza, io non sono felice. – Perché dovrebbe essere felice? Il suo compito non è questo. Chi le ha detto che si viene al mondo per essere felici? 8 1/2, filme sem filme, título sem título, apelava a um sentimento profundíssimo: a união – mais do que isso, a confusão – entre a vida e o cinema, entre o quotidiano e a criação, entre o caminho que se percorreu na nossa vida e a angústia de não saber para onde se vai. Aos vinte anos, jovem cinéfilo, era como se já vivesse com esse sentimento que convive com um fim, com a morte, mas o cinema – a tela que convoca os fantasmas – chamava-me para aquilo que a vida tinha. Entre um e outro, Guido e Federico, a imaginação e a realidade, a infância revivida e a inocência que não se recupera mais, 8 1/2 parecia convocar todas as formas diferentes da nossa existência, finitas e infinitas.
Dez anos depois, revejo o filme pela enésima vez. Tocou-me percorrer o seu caminho e redescobrir, depois dos passos feitos nesse tempo, uma nova claridade sobre as suas personagens e dilemas. As mulheres que rodeiam Guido não são meras fantasias de um homem, são um pouco aquilo que existe ou que projectamos em cada mulher. A agitação que o rodeia à volta da sua nova criação não é tanto um peso que o mata, mas talvez o maior artifício da vida, a sua mais vazia dose de ficção. Os erros e o falhanço que Guido/Fellini admite em 8 1/2, o falhanço de não saber fazer um filme, não saber viver, não saber amar, não são defeitos irremediáveis – são partes inerentes aos próprios gestos de se fazer um filme, de fazer uma vida, de saber amar. As memórias e imagens dos que morreram, e que lhe surgem à frente dos olhos entre os vivos que estão a seu lado, não são ficções que desviam a sua atenção – são imagens vivas com que dormimos e respiramos no sonho (e nunca se viram sonhos como em 8 1/2, sonhos que estão, de facto, ao nível da vida).
A claridade final com que Guido renasce tem a ver com esses mesmos passos que fazemos, talvez durante esses dez anos: a aceitação do que somos e do que fizemos. Aceitar – uma chave para a vida e para o espelho que a reflecte (o cinema). E que para lá dessa porta, está aquilo que lhe dá a razão de ser: criar. Assim Guido abre a cortina e deixa entrar todas as suas personagens – vivas ou imaginadas – no círculo da sua dança, final eufórico, triste e alegre, profundo e celebrativo.
Passados dez anos, rever 8 1/2 já não foi mergulhar na confusão apaixonante como que Guido vivia, mas sentir a percepção que ganhámos do que une e separa os nossos desejos, a nossa fé, a nossa angústia e felicidade. Nunca numa solução definitiva (pois Guido começa a filmar o filme, não o termina), mas consciente de que ela não existe. Ou como escreveu Paul Nizan: “J’avais vingt ans. Je ne laisserai personne dire que c’est le plus bel âge de la vie”. Tinha vinte anos, não deixarei ninguém dizer que é a mais bela idade da vida. Ciao Guidone, a vida é uma festa.