Esta é a história de Dieter Dengler, um imigrante alemão transformado em piloto do exército americano, cujo avião é abatido sobre o Vietname na sua primeira missão, e que se tornará o único prisioneiro de guerra americano a conseguir escapar do cativeiro. Esta é também a história a que Herzog regressará mais tarde com Rescue Dawn (Espírito Indomável, 2006), numa procura recorrente nos seus filmes pela essência da natureza humana. A voz que ouvimos no início poderia pertencer a Herzog, dado o seu carácter descritivo e, ao mesmo tempo, reflectivo, num tom pausado mas absorto nas possibilidades existenciais da história, como é típico nas suas narrações. No entanto, pelo menos no início deste documentário, Herzog cede o espaço ao próprio Dieter para este contar a sua história.
Dieter é uma pessoa fascinante e Herzog sabe aproveitar todo o seu potencial cénico enquanto aquele revela pormenores da sua vida. Numa das primeiras cenas, vemos Dieter a chegar a casa: primeiro, abre e fecha várias vezes a porta de casa, para depois de entrar, voltar a abrir e fechar o mesmo número de vezes a porta. Sentindo necessidade em explicar este comportamento obsessivo, Dieter proclama que, depois do seu tempo em cativeiro, é ainda um privilégio poder abrir e fechar portas quando quer. É um momento que serve para preparar uma imersão no método que Herzog vai utilizar durante o filme: isto foi algo que ele observou Dieter fazer durante o processo preliminar de preparação para o filme, e que lhe pediu para repetir em frente à câmara. É um momento encenado, que Herzog defende como inevitável, para chegar a uma verdade com maior impacto, para atingir o que define de êxtase da verdade. Mas para além da encenação, assim que vemos o interior da casa de Dieter reparamos nos vários quadros de portas semiabertas pendurados nas paredes – e com este pormenor ao qual Herzog forneceu contexto, percebemos melhor a importância de ver a tal realidade interior, do seu efeito.
O filme levanta várias questões, sendo que uma delas passa necessariamente pela motivação e escolha de Herzog em levar Dieter de volta à selva onde esteve cativo. É indicativo dos sacrifícios que Herzog evoca como fundamentais para encontrar a narrativa central ao tema que filma. Para Herzog, as difíceis condições de filmagem são inseparáveis da história, imprescindíveis para alcançar a verdade nas imagens – algo que já por demais tinha demonstrado em A Aguirre, der Zorn Gottes (Aguirre, o Aventureiro, 1972) ou Fitzcarraldo (1982). Mas este regresso deixa também uma impressão em relação à personalidade de Dieter, disposto a retornar à selva, para voltar ao sítio a que regressa todos os dias na sua cabeça. A admiração que Herzog tem por Dieter transparece ao longo do filme. Ao visitar a vila onde Dieter cresceu – e onde este viu pela primeira vez um avião – os paralelos entre os dois tornam-se visíveis. O ambiente pós-guerra na Alemanha de pobreza extrema e a dura educação que Dieter conheceu, são familiares a Herzog, que é apenas quatro anos mais novo que Dieter. A paixão e perseverança de Dieter em perseguir cegamente o seu sonho encontram paralelo na paixão de Herzog pelo cinema, na intensidade com que procura novas imagens. Herzog observa Dieter não só com admiração, mas como se considerasse, por vezes, que podia ser ele próprio a perseguir aqueles sonhos de voar, tivessem as circunstâncias sido diferentes, poderia ter sido aquele piloto que agora entrevista.
As cenas na selva são as de maior impacto visual, expresso pelos detalhes vívidos com que Dieter recorda o que aconteceu. O realismo destas sequências é acentuado pelo facto de Herzog contratar extras para fazerem o papel dos guerrilheiros vietcong que torturam Dieter e pelas recriações de alguns desses episódios – este chega a dizer, no meio de uma cena em que é arrastado pela selva algemado: “oh oh, this feels a little bit too close to home”. A comparação com Rescue Dawn é inevitável. Herzog afirma que existiu desde o início a intenção de filmar as duas formas da mesma história, mas só obteve financiamento para o segundo filme anos mais tarde. As recriações de Dieter, repletas de comentário pessoal, dão lugar ao minimalismo das acções, e o desespero toma corpo nos actores de Rescue Dawn. Se em Little Dieter Needs to Fly (1997), Herzog conta a história através de palavras e de silêncios de Dieter, em Rescue Dawn são as acções e inacções de Christian Bale que contam a história. Aliás, no filme posterior, o que sobressai em relação ao documentário é a encarnação dos outros prisioneiros descritos por Dieter, que existem no primeiro apenas nas suas palavras, acentuando o seu desaparecimento.
É por isso mais emotiva a cena em que Dieter passa horas sentado em frente ao rio Mekong, que era suposto ser o seu caminho para a salvação. Enquanto relata os momentos finais da vida do seu amigo de fuga emociona-se, e o tempo que fica em silêncio é revelado pelo escurecimento gradual da paisagem atrás de si. Herzog filma esta história como se se tratasse do mito de Sísifo, em que Dieter por mais que tente, não consegue escapar ao que lhe aconteceu, não consegue deixar de perseguir fantasmas do passado, tal como Herzog, que não consegue parar de filmar esta história, de ir à procura dos fantasmas para filmar. No fim, o que fica é a vontade insuperável e a história incrível da vida de Dieter, e isso é o que acontece sempre com Herzog, por mais artifícios que use: a história é sempre o mais importante.
Little Dieter Needs to Fly será exibido dia 11 de Abril (quinta-feira) pelas 22h no Porto, pela associação milímetro, no Cinema Passos Manuel.