Prisoners (Raptadas, 2013) é um caso sintomático daquilo que é um moderno filme de prestígio, e aqui há que entender dois significados na expressão: filme de prestígio no sentido que oferece aos seus participantes – por osmose – qualidades admiráveis que ele carrega, mas também filme de prestígio onde nos referimos às suas capacidades ilusórias. Aliás, as qualidades prestigiantes de Prisoners resultam, essas sim, de um encanto enganoso dos sentidos cuja orquestração revela um longo e cuidado trabalho de prestidigitação.
Explico-me. O filme que agora se estreia é particularmente impecável, não escorrega uma vez que seja, não deixa uma ponta por atar, não perde tempo nem acompanha ritmos ao contra-tempo – numa palavra diria perfeito. E, de facto, é impossível apontar o que quer que seja ao filme de Denis Villeneuve, a não ser esse pormenor nada despiciendo de que este não é um filme de Denis Villeneuve. Explico-me outra vez. Prisoners é o resultado de um trabalho de apuramento dos estúdios (que o produziram) que vêm refinando o seus produtos de modo a que nada possa cair fora do baralho e que o resultado seja imaculado. Essa fórmula será tão obscura como as derivativas da bolsa de valores, mas é relativamente fácil e intuitivo perceber quais são os ingredientes fundamentais e os procedimentos básicos para a preparação de tal receita. Vamos a eles.
Uma dose generosa de actores famosos. Aqui podemos incluir, em iguais partes, um actor fora do seu registo habitual (Hugh Jackman – tanto overacting que até chega a emocionar) de modo a oferecer um forte aroma a isco oscariano, e um actor já bem instalado mas com necessidade de aclamação global (Jake Gyllenhaal). Pode, e deve, adicionar – em doses maciças – raspas de fortes actores secundários (Viola Davis, Terrence Howard) e o sumo de dois grandes actores em papéis menores (Melissa Leo – arrepiante – e Paul Dano – arrepiador). Como ingrediente principal, descasque e prepare um argumento bem maduro – ele é a estrela do prato, por isso não o desvirtue e dê-lhe a máxima relevância em todo o processo – de preferência de um autor pouco conhecido (o quase estreante Aaron Guzikowski) mas que revele notas de aprofundado desenvolvimento de sabores (leia-se personagens) – de notar que o “tema” é importante e o filme de crianças raptadas acerta sempre o alvo, veja-se a obra de estreia do realizador (oscarizado) Ben Affleck (talvez o seu melhor filme) que se sustinha quase unicamente num bom argumento e num vasto leque de actores consagrados ou prestes a sê-lo. Envolva bem.
Agora, para a preparação. Com a ajuda de uma batedeira competente e profissional [Denis Villeneuve mostra-se um exemplar tarefeiro depois de ter surgido aos olhos do mundo, e dos espectadores portugueses também, com Incendies (Incendies – A Mulher que Canta, 2010) – nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro pelo Canadá], misture tudo com cuidado. Vá adicionando, colher a colher, a competência técnica dos profissionais envolvidos (à cabeça o enormíssimo Roger Deakins que já conta com 10 nomeações para os senhores dourados e prepara-se para outra e o gigante Joel Cox, montador de quase todos os filmes de Clint Eastwood). Quanto à banda sonora, pode e deve ser de um desconhecido, novato em Hollywood.
A grande diferença entre os vários filmes que este esquema de fórmula pode oferecer prende-se com o robot de cozinha que se usa. Evidentemente, Prisoners foi elaborado numa Bimby de última geração com programas específicos para os diferentes efeitos pretendidos (aqui escolheu-se o programa “filme negro moral”), enquanto que, por exemplo, em The Butler (O Mordomo, 2013) – que segue quase à risca a descrição anterior [(Forest Whitaker, Oprah Winfrey + John Cusack, Robin Williams + Vanessa Redgrave, Jane Fonda) / (Lee Daniels + Danny Strong + Rodrigo Leão)] -, é evidente, pela mistura, que as qualidades do envolvimento das pás são da inferior Yämmy do Continente (que, tendo um único programa, teve que ser batido na versão “épico social do século XX americano”).
Há, no entanto, qualquer truque na confecção que não sei identificar e que eleva o filme de Denis Villeneuve (ah, perdão, o filme não é dele) acima dos seus parceiros formulaicos, um je ne sais quoi (o gosto por labirintos e serpentes ou a cara completamente inchada de Dano) que dá a entender que se calhar Villeneuve tem mais preponderância do que seria expectável – o esclarecimento desta desconfiança será feito com Enemy (2013), a antecipada adaptação de O Homem Duplicado de José Saramago, cuja realização é de Villeneuve e onde o protagonismo é de novo dado a Jake Gyllenhaal.