Why are today’s movies so depressing, confusing, preachy – and interminably long and boring?
Joan Collins, Daily Mail, 03.02.2023
Algures entre os anos de 1967 e 1968, John Gregory Dunne acompanhou o funcionamento de um grande estúdio de Hollywood, a 20th Century Fox, resultando as notas desse trabalho de campo num livro chamado The Studio. No seu livro, Dunne relata a dada altura a visita do realizador Henry Koster a Richard Zanuck. Koster, acompanhado de um produtor e de três agentes da William Morris, vai colocando uma série de projectos à consideração do produtor da Fox. Toda a cena se desenrola como um momento desconfortável de um filme sobre Hollywood – um agente que ressona, outro que se perde a olhar para as unhas, até ao pormenor do lenço a que Koster recorre para secar o suor da testa a cada reacção negativa de Zanuck a uma nova ideia de projecto apresentada. O próprio Dunne confessa, na introdução, as suas reticências em incluir este episódio no livro, talvez por parecer demasiado degradante (“Jesus!” é tudo o que Zanuck consegue dizer depois de Koster abandonar o seu gabinete), mas o episódio mostra como a ficção que Hollywood inventa sobre si mesma pode estar bem próxima da realidade. Na verdade, o nome de Henry Koster só ficará nos anais do cinema por duas razões: por ter lançado Deanna Durbin (o que não é feito pequeno, pois foram os filmes com Deanna Durbin que, à época, salvaram a Universal) e por ter sido o realizador de The Robe (A Túnica, 1953), o primeiro filme em CinemaScope.

Talvez o encanto de The Rage of Paris (Uma Francesinha em Nova Iorque, 1938) nada tenha que ver com o talento de Henry Koster, talvez tudo fique a dever-se aos truques de ilusionismo da Darrieux, ao bigodinho do Douglas Fairbanks Jr. ou às pernas de rã à la Cortillon. Ou talvez sejam os encantos próprios de uma boa screwball comedy – miúdas com pouco dinheiro, mas com “recursos”, um misto de inteligência e de sorte (daquela sorte que pode implicar levar com um casaco de peles Kolinsky na cabeça ou pisar os óculos na cara de um milionário), homens com muito dinheiro e pouca clarividência, character actors que vão dispensando tiradas sarcásticas, daquelas que apetece apontar num bloco de notas.
Mas as dificuldades de discurso de Nicole apenas contribuem para o seu encanto, porque nada há de mais chique do que um sotaque importado de Paris, lucrando o filme largamente com este accent e com as piadas que com ele são feitas.
Em The Rage of Paris a personagem que tem o encargo de nos proporcionar estas tiradas inspiradas é Gloria (Helen Broderick), a protectora de Nicole (Danielle Darrieux), a quem ela oferece abrigo e conselhos quando é vítima de uma senhoria sem coração. Gloria, uma parente próxima de algumas personagens de Thelma Ritter ou de Eve Arden, dispõe de um capital que foi acumulando ao longo dos anos e do qual, chegada à idade madura, é tempo de retirar dividendos. Esse capital é feito de uma certa sabedoria feminina, todo um conhecimento analítico e estatístico sobre o lugar da mulher na sociedade americana. Segundo Gloria, são estas mulheres quem, verdadeiramente, têm o poder, porque é nas suas mãos que está o dinheiro americano, já que os homens facilmente trocam uma mulher “eficiente” por uma mulher bem vestida, bem penteada, bem perfumada, que lhes deixe o estômago carecido de uma boa dose de bicarbonato de sódio. Nicole não é menos do que qualquer daquelas mulheres que dançam no salão do Savoy Grand, ela só precisa que alguém invista nela, no “projecto Nicole”, de modo que ela possa proporcionar aos seus investidores um bom retorno. Quando Nicole se mostra ferida por ter sido acusada de desonestidade (recorrendo, afinal, àquelas que são as armas de qualquer mulher), Gloria é pronta em oferecer mais um dos seus ensinamentos, dizendo-lhe que o batom que tem nos lábios ou o rouge que tem nas maçãs do rosto são igualmente desonestos. E o que dizer da desonestidade de uma mulher gorda espremida numa cinta? Gloria joga na equipa da Lorelei Lee de Gentlemen Prefer Blondes (Os Homens Preferem as Loiras, 1953) – “Don’t you know that a man being rich is like a girl being pretty? You wouldn’t marry a girl just because she’s pretty, but my goodness, doesn’t it help?”

Este intercâmbio de beleza e de dinheiro, que se constituem como diferentes formas de poder, assenta num manual que todos conhecem – almoço num dia, jantar no outro, uma ida às corridas, o convite para a ópera, a entrada no camarote da família que sela a concretização do pacto matrimonial. O status fixa-se em grande medida através de uma forma de vestir, sendo este um código que todos partilham e reconhecem, um status que não resulta da diferença entre umas sapatilhas de 50 euros e umas de 5000 euros, mas da diferença entre um sobretudo de vicunha e um sobretudo de lã merino.
O modo de vestir e a qualidade da feitura e dos materiais funcionam como chave simples e eficaz de acesso ao beau monde. Guy de Maupassant, o mestre destas coisas inefáveis, sabia que tudo dizia da ascensão social de Georges Duroy no subir desta escada: “Et Georges Duroy monta l’escalier. Il était un peu gêné, intimidé, mal à l’aise. Il portait un habit pour la première fois de sa vie, et l’ensemble de sa toilette l’inquiétait. Il la sentait défectueuse en tout, par les bottines non vernies mais assez fines cependant, car il avait la coquetterie du pied, par la chemise de quatre francs cinquante achetée le matin même au Louvre, et dont le plastron trop mince ce cassait déjà. Ses autres chemises, celles de tous les jours, ayant des avaries plus ou moins graves, il n’avait pu utiliser même la moins abîmée.”
É verdade que George Bernard Shaw nos ensinou que a linguagem é um factor de classe decisivo, mesmo quando os vestidos são Worth e Schiaparelli, e mesmo que o Professor Higgins proclame “And I treat a duchess as if she was a flower girl!”. Mas as dificuldades de discurso de Nicole apenas contribuem para o seu encanto, porque nada há de mais chique do que um sotaque importado de Paris, lucrando o filme largamente com este accent e com as piadas que com ele são feitas. Enfim, ser modelo acaba por não ser, neste ponto, muito diferente de ser uma estrela do cinema mudo – como refere Nicole perante as reservas do director da agência de modelos resultantes do facto de ela ser francesa, o sotaque não se nota muito nas fotografias. E, afinal, Nicole vai navegando pela língua inglesa estoicamente, com um ou outro “I can too kit”, começando por chamar os homens (americanos) de “cochons” e acabando a segurar a língua quando Jim (Douglas Fairbanks Jr.) explica que “a hog is a very big pig”.

Se Nicole lança mão das desonestidades próprias de uma mulher, Jim não é mais inocente na sua cruzada em defesa do amigo Bill Duncan (Louis Hayward). Ele persiste nesse jogo ainda que Bill se mostre muito pouco interessado na possibilidade de estar a ser enganado, indo bem para lá daquilo que ainda poderia ser entendido como uma genuína preocupação pela felicidade do amigo e contrariando as constantes advertências do seu criado pessoal, Rigley (Charles Coleman). Aliás, como Jim confessa no final, “I’m pretty bad myself”. Esta sua desonestidade, de que ele próprio não parece estar consciente, é prontamente desmascarada pelo caseiro (Harry Davenport, o character actor por excelência), que vê imediatamente aquilo que Jim e Nicole tardam em perceber – o facto de funcionarem como um casal, com as suas provocações e picardias próprias, num duelo que vai tomando uma carga sexual cada vez maior, porque a duplicidade do comportamento de Nicole vai conhecendo intervalos cada vez mais curtos, entre a doçura e o escárnio, exasperando (excitando?) Jim. Há um lado criança que é comum a ambos, que se revela em Nicole num pedir de pequeno-almoço simultaneamente lânguido e pueril (e que termina numa brincadeira que aparenta ser uma espontaneidade da própria Darrieux), e em Jim num espreitar maroto e insistente enquanto Nicole se despe, ainda que seja só por via da sua fotografia.

Nicole acaba ainda por mostrar que Gloria não é a única guardiã das grandes verdade femininas. Num dos seus momentos de total honestidade, Nicole explica a Jim que o facto de uma rapariga procurar “casar bem” é algo que faz perfeito sentido na natural ordem das coisas:
“You know, when a girl gets engaged, her mother doesn’t say, I’m happy because Alphonse is so handsome. But she says, I’m happy because Alphonse has such a wonderful job at the gas company. […] And this is very sensible. Because when the children come, it’s nice for them to have everything.”
Enquanto Gloria e Nicole demonstram um grande desprendimento quanto a questões monetárias (o desprendimento próprio de quem é muito rico ou de quem é muito pobre), Mike (Mischa Auer) vive num constante contar de tostões característico de quem tem um pequeno pecúlio e alguns sonhos. Ironicamente, o objectivo que justificou todo o esquema montando por Gloria, Mike e Nicole, obter os 2.000 dólares adicionais para o restaurante de Mike, acaba por não passar de um pormenor para alguém com uma fortuna tão avultada quanto a de Bill Duncan. Quando Mike se queixa a Bill por ter sido mais uma vítima de Nicole, os seus prejuízos são arredondados de 3.000 para 5.000 dólares num piscar de olho, sem que isso seja significativo.
Também num piscar de olho de 70 minutos acontece The Rage of Paris. Se tudo começou com Nicole em roupa interior num desses escritórios da década de trinta com decoração tão sofisticada que mais parecem a suite presidencial de um hotel de cinco estrelas, tudo termina na cabine de um transatlântico, com Jim a despir-se em frente a uma Nicole severamente abotoada e com o fiel Rigley a tentar apressar o casamento.
E continuamos sem saber ao certo o que sucedeu ao primo zarolho de Rigley.
