No cinema, sequências que representam outras formas de espectáculo, desde óperas setecentistas a combates de boxe, tendem a ser cativantes, entre outras razões, porque permitem aos filmes, através do estabelecimento de similitudes e contrastes, reflectir a respeito da sua natureza enquanto encenação. Materialists (O Match Perfeito, 2025), de Celine Song, apresenta um episódio que se enquadra nesta tradição. Lucy (Dakota Johnson), uma casamenteira de profissão, leva o namorado multimilionário, que conheceu recentemente, a ver uma peça protagonizada pelo ex-namorado que tem vergonha de ser um actor falhado, com menos tostões nos bolsos do que colegas de casa, que participa ocasionalmente em espectáculos off-Broadway – quão off-Broadway? Digamos que a sala de espectáculo é a cave de um edifício devoluto e que os actores estão habituados a fazer os ensaios diante dos sem-abrigo que por ali pernoitam, provavelmente também eles actores que apostaram numa licenciatura em artes performativas.
O tom da cena é ligeiro, até mesmo paródico. O espaço propício à humidade em que o espectáculo é encenado, a mise-en-scène desprovida de pormenor, o texto árido e as interpretações anímicas – todos estes elementos se afiguram caricaturalmente sem arte. Portanto, nesta cena os artistas são o objecto do escárnio, em particular o ex-namorado da protagonista, John (Chris Evans), que em palco fala com a naturalidade de um assistente virtual inteligente, como uma Siri que não recebe actualizações há dez anos.
Uma vez terminada a peça, o triângulo amoroso reúne-se e troca impressões, no que é uma das cenas mais divertidas do filme, que rareia em momentos espirituosos. Forçado pela circunstância a dizer algo a respeito da peça, Harry (Pedro Pascal), o namorado ricaço que acompanha o mundo do teatro com a mesma atenção que John segue a bolsa de valores, diz, sem jeito mas também sem maldade, que a peça foi interessante, exactamente o género de comentário que irrita os artistas.
A interpretação empedernida de John na peça dentro do filme afigura-se menos má se tivermos como termo de comparação o desempenho do elenco de Materialists: Chris Evans sente-se desprotegido num papel em que tem de usar roupas de civil e Dakota Johnson e Pedro Pascal optam, durante grande parte da acção, por falar como se estivessem a narrar um vídeo de ASMR.
Os elogios protocolares de Lucy e Harry são o culminar de uma cena com graus de auto-reflexividade inadvertidos. Em causa não está tanto a questão a que aludi, e que tem que ver com a representação de outras artes do espectáculo poder estabelecer paralelos esclarecedores com o cinema. Na realidade, esta sequência tem um carácter auto-reflexivo porque a peça canhestra, que vemos no palco off-Broadway, espelha a dramaturgia desastrada patente no resto do filme. Ou seja, a parte do filme que se leva a sério é, ironicamente, tão pobre quanto o drama parodiado nesta cena. Os diálogos da peça dentro do filme são apenas um pouco mais inertes que algumas porções do argumento assinado por Celine Song. De igual modo, a interpretação empedernida de John na peça afigura-se menos má se tivermos como termo de comparação o desempenho do elenco de Materialists. Chris Evans sente-se desprotegido num papel em que tem de usar roupas de civil e Dakota Johnson e Pedro Pascal optam, durante grande parte da acção, por falar como se estivessem a narrar um vídeo de ASMR. A espaços, passava-me pela cabeça a possibilidade de Johnson correr as unhas de gel no microfone da equipa de som.
Façamos um zoom out, mudemos de lentes e passemos ao próximo plano, uma panorâmica. Uma perspectiva mais distante permite-nos reconhecer que Materialists deteriora-se à medida que progride, o que pode parecer impossível, porquanto o prólogo paleolítico, que idealiza o começo da instituição do casamento, é descabido. Porém, depois de ultrapassado esse episódio de antropologia de algibeira, o filme consegue gerar alguma energia a partir da exposição narrativa. As sequências que dão a ver a protagonista em acção no seu trabalho, que consiste em emparelhar solteirões em busca de um relacionamento amoroso, são pontuadas por uma ou outra observação divertida e o arranjo dos planos transparece cuidado com o que é dramatizado. À semelhança do episódio do teatro, o cinismo de Song é razoavelmente bem empregue quando o propósito é jocoso e os alvos são fáceis – neste caso, os nova-iorquinos ricos que contratam cupidos profissionais para encontrarem alguém com as qualidades físicas, temperamentais e monetárias que justifiquem o preço de uma boda e de dançar “Sweet Caroline”, de Neil Diamond, num hotel de luxo à frente de garçons a recibos verdes.
A premissa, de contornos austenianos, adivinha-se rapidamente: a casamenteira que pensa ter encontrado uma fórmula para o match perfeito toma consciência de que, afinal, não sabe a menor coisa acerca de relacionamentos e do amor. Materialists descamba quando Lucy, inevitavelmente, deixa de acreditar que o que se sente por outra pessoa pode ser diagramado e tornado previsível através do cálculo de uma dúzia de variáveis que podem ser encontradas na nota biográfica de um curriculum vitae. Digo que descamba porque ao invés de contrapesar com um romantismo convicto o cinismo anedótico que reduz os afectos a uma lógica algorítmica de mercado, Materialists redobra os discursos desanimados acerca do espírito negocial dos relacionamentos, imprimindo-lhes, desta feita, um tom dramaticamente inane. Falta a Materialists uma crença irredutível num amor deslumbrado e, acima de tudo, uma crença no género cinematográfico em que inicialmente se insinua, antes de o apostatar: a comédia romântica. Song almeja a profundidade, mas fica imediatamente sem pé quando procura convencer-nos de que o dating, como diz a protagonista, não é matéria para brincadeiras.
★☆☆☆☆
