O director da CIA, Kittridge (Henry Czerny), entra numa sala de crise e distribui, a um grupo de homens grisalhos de cenho carregado, dossiers que descrevem as actividades desenvolvidas por Ethan Hunt (Tom Cruise) e a sua equipa ao longo de trinta anos. A leitura dos relatórios dá origem a uma sequência de imagens dos filmes anteriores da saga – os rastros das outras missões tomam conta da tela num espasmo epiléptico, com cada plano a suceder rapidamente a um outro. Este é um dos episódios de Mission Impossible: The Final Reckoning (Missão Impossível: O Ajuste de Contas Final, 2025), de Christopher McQuarrie, que reporta para o passado da série cinematográfica com uma nostalgia mitificante.
Note-se que não é o legado da saga ou o estatuto de Hunt enquanto herói de acção que são exaltados – os encómios são dedicados à iconicidade de Tom Cruise enquanto estrela. É a bravura e destreza do actor, conhecido por fazer os stunts por sua conta e risco, que é louvada. Assim, a montagem que reúne excertos da saga desempenha uma função próxima à do in memoriam, na medida em que presta um tributo glorificante aos feitos acrobáticos de Cruise ao serviço do cinema. Se o actor tivesse pela frente mais trinta anos de piruetas que desafiam os limites do corpo, então esta sequência não existiria. Cruise pode não ter a intenção de se reformar, mas está consciente de que a sua fotogenia está a transformar-se e pensa no modo como deseja que esta seja enquadrada e lembrada. Os últimos filmes de Cruise já denotavam uma gestão da sua imagem que reconhecia o envelhecimento do actor, mas este capítulo, talvez por encerrar um projecto com décadas, tem uma qualidade auto-reflexiva particularmente enfática.
Hunt deixou de ser um agente ardiloso capaz de resolver missões cabeludas e passou a ser caracterizado como O escolhido, uma figura messiânica que tem a seu encargo salvar todos, os vivos e os que ainda estão por vir.
Um dos cavalheiros que passa em revista o relatório de Hunt diz-se surpreendido por descobrir que foi um espião da CIA que orquestrou o golpe ao cofre de alta-segurança da sede da agência de inteligência, nos anos noventa. A referência tem como objectivo recordar uma das cenas mais icónicas da série, pertencente a Mission Impossible (Missão Impossível, 1996), de Brian de Palma. Porém, a alusão acaba por esclarecer, embora inadvertidamente, um dos problemas de The Final Reckoning. Conforme o oficial que lê o dossier aponta, o assalto ao cofre relacionou-se com o roubo de uma lista que continha a identidade dos agentes secretos da CIA localizados na Europa. Em causa estava a vida de centenas de operacionais e, consequentemente, a defesa dos interesses norte-americanos em território internacional.
Por contraste, os últimos dois capítulos da saga comportam a possível destruição da humanidade, ora vítima de um apocalipse nuclear engendrado por uma entidade de inteligência artificial, ora escrava de um tirano que tem ao seu dispor uma arma omnisciente. A saga agigantou-se e isso criou um problema de escala evidente nos dois filmes que aparentemente a encerram. Hunt deixou de ser um agente ardiloso capaz de resolver missões cabeludas e passou a ser caracterizado como O escolhido, uma figura messiânica que tem a seu encargo salvar todos, os vivos e os que ainda estão por vir. É através do seu sofrimento, que para o agente não passa de mera dor, que a humanidade tem uma réstia de esperança de se redimir. O messianismo em torno de Hunt é reforçado quando este morre e ressuscita, porque somente uma ressurreição o poderia legitimar enquanto soberano do destino da Entidade, também designada de anti-Deus, um sistema de inteligência artificial que ameaça o ser humano.
A escala da missão é super-heróica e, contudo, os primeiros noventa minutos são desprovidos de thrills – até a sequência de abertura, que nos outros filmes costuma dar o mote para o resto da acção, é desapontante, tanto que quando o tema musical da série se faz ouvir, as notas soam desapossadas da energia que têm noutros capítulos da saga. O espectador que chegue uma hora e meia atrasado não tem nada a temer porque somente perdeu os briefings das personagens, que comentam, sem cessar, como a provação de Hunt é tremenda e que a humanidade enfrenta um perigo iminente.
Todavia, o único perigo incorrido foi o de aborrecer o espectador com exposição narrativa, por vezes tão intricada que é praticamente ininteligível, e algaraviada tecnológica que visa, sem sucesso, dar um verniz de verosimilhança a eventos improváveis. O mundo está prestes a ruir ao som de uma sinfonia de ogivas nucleares, mas o batimento cardíaco do espectador permanece sereno porque o filme não é suficientemente ágil a estabelecer o que importa e para o qual tem aptidões: a elaboração de números de acção espantosos. Cruise e companhia preocupam-se excessivamente com o atar das pontas soltas naturalmente deixadas pelos filmes anteriores da saga e descuram o essencial.
Por isso, The Final Reckoning apresenta apenas duas sequências de acção dignas de nota, conquanto tenha, por exemplo, mais uma hora de duração que o capítulo assinado por Brian De Palma. Ambas as cenas a que me refiro, a do mergulho ao submarino naufragado e a do planejacking, são protagonizadas exclusivamente por Cruise, um dado que demonstra como o elenco secundário, apesar de vasto, serve, sobretudo, para debitar informação. O número do submarino é um exercício de suspense que se assemelha, curiosamente, ao do assalto ao cofre de alta-segurança encenado no primeiro filme da série. De novo, Hunt traça um movimento descendente por via de condutas e câmaras claustrofóbicas até ao que é, na sua essência, um cofre onde está alojado o código-fonte da Entidade. Naturalmente, a missão é feita uma vez mais em contra-relógio – desta feita não é a chegada anunciada do agente da CIA que vigia o cofre que marca o compasso do golpe, mas a queda do submarino para uma zona mais profunda da bacia oceânica.
Por sua vez, a luta aérea de Hunt e Gabriel pelos desfiladeiros de uma reserva natural sul-africana é um delírio de movimento que posiciona o protagonista em todas as partes do biplano. Em pleno voo, Hunt faz uma vistoria às asas, às escoras interplanares, à cauda, ao trem de aterragem, junto à hélice e, por fim, ao cockpit da aeronave. A sequência é bem-elaborada de um ponto de vista cinematográfico (a montagem e a relação da câmara com o voo dos aviões e o movimento da personagem são exactos), mas o verdadeiro espectáculo em cena é o corpo de Tom Cruise, como este se contorce e se distende, como este parece estar prestes a ceder às forças gravitacionais, porém consegue tirar partido delas. Este número de acção é suficientemente impressionante para merecer um lugar numa futura montagem in memoriam de Cruise (voto na selecção de um plano das bochechas do actor a ondularem contra o vento como as de um bulldog fora da janela de um carro em movimento). No entanto, é insuficiente para resgatar um filme que se enreda numa intriga elefantíaca que faz de becos sem saída a sua avenida principal.
★★☆☆☆

 
         
         
    
                 
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
             
            