Mal amado e raramente programado, Chinese Box (1997) de Wayne Wang é um artefacto singular que evoca a atmosfera da transferência de soberania de Hong Kong em 1997. Um filme pessoal e global que vale recuperar a vários níveis.

À primeira vista, Chinese Box é um filme com três superestrelas: Jeremy Irons, Gong Li, e Maggie Cheung. Irons é John, um jornalista britânico residente em Hong Kong há duas décadas que, quando o território se prepara para a handover à República Popular da China em 1997, descobre que sofre de leucemia e confronta a sua relação amorosa com Vivian, uma bar hostess da China continental que anseia por uma relação assumida com um homem de negócios local (Michael Hui) com quem tem um affair. Junta-se a este trio Jean (Maggie Cheung), uma jovem marginal que fascina John (um pouco como o fotógrafo de Kongbu fenzi [The Terrorizers, 1986] de Edward Yang) e cuja história trágica de amor adolescente com um britânico branco oferece uma possível metáfora para a violência colonial.
Vidas-tipo, amores-condenados, deixas poéticas sobre a mudança que destabiliza. À primeira vista, as narrativas cruzadas de Chinese Box podem parecer perigosamente clichés. Foi certamente assim que o filme foi recebido pelos críticos em Hong Kong quando se estreou. A recepção – no mínimo tépida, no máximo gélida – talvez tenha ditado a fraca projecção do película, que não terá sequer estreado comercialmente no Reino Unido. No entanto, este é um filme que tem tantas camadas como as caixas chinesas que lhe dão título. Urge, pois, ir além das aparências.
Chinese Box é um filme de autor. Comecemos então pelo autor. Nascido em Hong Kong em 1949 numa família que deixara a China continental, o seu pai deu-lhe o nome de Wayne em homenagem a John Wayne. É quase como se a cinefilia fizesse parte da vida de Wayne Wang desde o berço, e essa cinefilia é descortinável em Chinese Box. Os seus verdes anos em Hong Kong foram igualmente marcantes – o cosmopolitismo e as contradições da colónia britânica da sua infância são parte do que tenta evocar em Chinese Box. Como Edward Yang, Wang deixou a Ásia para estudar nos Estados Unidos e, ao contrário de Yang, a sua filmografia é largamente produzida desse lado do Pacífico, pese embora um pouco conhecido regresso a Hong Kong onde trabalhou para televisão.
Como cineasta, Wayne Wang é sobretudo associado a histórias Asian-American, e é-o desde a sua aclamada longa de estreia, o muito independente e extraordinário Chan in Missing (1982), filmado na Chinatown de São Francisco. Embora Hong Kong tenha figurado brevemente numa obra dos anos 1980 (Life is Cheap… but Toilet Paper is Expensive [1989]), o seu único trabalho para cinema filmado e centrado exclusivamente no território é Chinese Box.
Wayne Wang permanece, acima de tudo, um cineasta independente, contendo a sua obra vários exemplos de experimentação técnica e a nível da distribuição, como The Princess of Nebraska e A Thousand Years of Good Prayers (ambos de 2007). Contudo, também flirtou com o mainstream, com resultados muito bons (veja-se The Joy Luck Club [1993]) e menos conseguidos (Made in Manhattan [2001]).
Outra das características da sua filmografia é a importância das cidades, o seu pulsar, os seus urbanitas. Seja São Francisco de Chan is Missing ou a Nova Iorque de boa parte dos seus filmes (de Dim Sum: A Little Bit of Heart [1985] ao díptico Smoke e Blue in the Face [Fumo e Fumo Azul, ambos de 1995] onde colaborou com Paul Auster).
Estas duas dimensões – a experimentação e o urbano – são fundações cruciais em Chinese Box. Insistimos também em duas outras características que urge recuperar: a sua dimensão profundamente pessoal e o carácter transnacional da equipa e do que é evocado. Neste último ponto, note-se que o filme é uma co-produção franco-japonesa-americana, com argumento co-escrito pelo americano Paul Theroux e pelo francês Jean-Claude Carrière, música original do neo-zelandês Graeme Revell, e direcção de fotografia do esloveno Vilko Filač (colaborador de Emir Kusturica) e contributos do australiano Christopher Doyle (colaborador de Wong Kar-Wai). O elenco e a banda sonora incluem actores e artistas de diferentes nacionalidades e idiomas. Trata-se do filme mais global da obra de Wayne Wang. É também o mais pessoal dos seus filmes.
Trata-se do filme mais global da obra de Wayne Wang. É também o mais pessoal dos seus filmes.
Em entrevistas aquando da produção do filme, Wayne Wang enfatizou o quanto Chinese Box era um projecto pessoal, a sua “carta de amor a Hong Kong”, a sua tentativa de captar o território onde nasceu e cresceu e que estava prestes a viver uma mudança profunda. Filmado imediatamente antes, durante, e depois da handover, o filme testemunha o período de transição enquanto este se desenrolava. Wang combina ficção com elementos de documentário, incluindo imagens do território supostamente obtidas por uma câmara portátil que a personagem de Irons utiliza pelas ruas, gravando o pulsar da cidade no ano de todos os perigos e de todas as ansiedades e expectativas. A junção de todas estas imagens – as ensaiadas e as raw – tornam Chinese Box um híbrido fascinante – como se forma e sujeito se fundissem. Vemos essa sobreposição literalmente quando John projecta no seu apartamento as imagens que Jean captou para ele (subvertendo com as suas histórias de veracidade duvidosa os desejos de captura e conhecimento de John).

O registo do período de transição não é, contudo, sempre factualmente correcto – e isso é propositado. Há “notícias” de acontecimentos que nunca ocorreram, mas que lá estão para captar a miríade de sentimentos contraditórios dos muitos e diversos habitantes de Hong Kong. De expectativa a medo, de esperança a nostalgia, de incredulidade a entusiasmo, e muitos eteceteras. A pluralidade de visões reflectida na pluralidade de formas de representação, a polifonia de vozes sugerida pelas diferentes línguas faladas e cantadas no filme. Jeremy Irons fingiu ser jornalista na press room real da noite da cerimónia de transferência e a equipa de Wayne Wang percorreu diferentes pontos da cidade para captar o momento tão múltiplo como os diferentes feixes de luz de um fogo-de-artifício.
A cinefilia está lá também. Gong Li reflectindo Marlene Dietrich (como Maggie Cheung/Ruang Lingyu de Actress/Centre Stage [1991, de Stanley Kwan] reflecindo outra Dietrich) em A Foreign Affair (A Sua Melhor Missão, 1948) de Billy Wilder. Berlim e Hong Kong, cidades refeitas pela Guerra Fria, e as suas mulheres perdidas que, afinal, são mulheres que se acham a si próprias e sobrevivem pela sua iniciativa apesar das circunstâncias contra elas (algo, aliás, aplicável tanto à personagem de Gong Li como à de Maggie Cheung em Chinese Box).

Chinese Box é um filme de ritmos dissonantes, conscientemente fragmentado, e caleidoscopicamente intenso. Pode parecer algo a dada altura, mas logo se abre a novas possibilidades. Como o lugar e o tempo que regista, é um filme sobre a fugacidade de experiências, princípios de incerteza e pertenças instáveis continuamente em construção.