Pela potência de metamorfose proteica de seu trabalho, pela diversidade de suas invenções e ambições, Eloy de la Iglesia foi o Hitchcock do pobre: da periferia do estúdio artesanal e madrileño de sua obra, ele nos deu gialli lumpens e cruéis (La semana del asesino [1972]), gialli fantasistas e decadentistas (Una gota de sangre para morir amando [1973]), gialli paranoicos e divertidos (El techo de cristal [1971], Miedo a salir de noche [1980]), filmes políticos malaisés e de mal estar social ( El diputado [1978], Colegas [1982], Juego de amor prohibido [1975]), a adaptação da adaptação de Jack Clayton do clássico fantasmático infans de Henry James em Otra vuelta de tuerca (1985), embarcou com garra e impiedade na onda oitentista do cine quinqui, foi queer avant la lettre, perverso, sentimental, apocalíptico e integrado… Los placeres ocultos, se não é de seus melhores filmes, é aquele onde se cristalizaram algumas das tendências mais determinantes de sua obra (o mood e a tematização queer, o mood e a tematização quinqui, o apanágio da Diferença, o realismo e o amaneiramento).

Como o Janus romano, Eduardo é um outsider, mas de dupla face: ele usa todas as máscaras do establishment para, a seu bel prazer, abandonar os grilhões da alta burguesia que é o seu locus primeiro de tráfego (é diretor de banco) para percorrer os cenários e abordar os tipos do lumpenproletariado suburbano de Madrid, a que frequenta sobretudo para conhecer rapazes atraentes. O primeiro Eduardo (rico, filho de mãe católica) tem uma família cindida pelo conservadorismo do primo que se opõe ao anti-franquismo da prima, que o acusa num insert casual à hora do jantar de cometer tortura: essa oposição política e ideológica entre reacionários hardcore e outsiders drogados e que fazem sexo é uma das chaves estruturais ou leitmotifs de grande parte da obra de Eloy. Ele nos é apresentado de maneira funcional, mas sobretudo esquemática, quase ternamente behavorista, com esta panorâmica para baixo com que Eloy nos introduz numa cama que é também uma câmara mortuária, com o crucifixo no topo e a mãe ao telefone, falando com seu filho preferido, uma vez que castrado (a mesma só vai lhe revelar que sabe tudo no leito de morte) – esta é a parte mais frágil do filme, um organograma apenas para constar na elaboração do contexto diegético da ficção, porque a Eloy não interessam os tipos e décores impolutos da alta burguesia, mas a miscigenação, o meio do meio da paixão, aquele em que se encontram, se sujam e se libertam aqueles que a luta de classes e de desejo condenou à separação que nenhuma revolução jamais vai redimir. São os go between das calles semi-obscuras, os empregos de meia pataca, as boates de palco enfumaçado, os pequenos comércios necessários ao vício, os lugares de passagem e de encontro (em geral suburbanos, lumpen, empobrecidos, aqueles em que el caballo, ou heroína segundo a gíria de Madrid, reina num pretérito imperfeito de fantasma, como ontem o haxixe para os românticos: drogados ou bêbados os personagens, os limiares e as separações entre classes e modus vivendi de amar e sobreviver são ultrapassados ou anulados), onde tudo é permitido num súbito déclic erógeno que tantas vezes pode acabar em morte, nesta vida intempestiva teleguiada pelo Acaso e por um Eros machucado pelo recalque franquista.
Los placeres ocultos é talvez o filme de Eloy menos cru, menos cruelmente tático, porque aqui ainda há lugar para o imaginário enlevado de Eduardo, que vê o rapaz (armadilhas da sublimação) sob a máscara tripla do amigo, do efebo e do prostituto.
Postei como ilustração deste texto o momento em que Eduardo finalmente se aproxima somaticamente de Miguel, a quem ama: mas não é a mão de Eduardo que roça a epiderme de seda e suor coagulado do rapaz, e sim a câmera; o noli me tangere do Cristo ressuscitado aqui se inverte, e exige, ao menos segundo a pulsão escópica da câmera, a consumação do interdito. Quando o homem está paralisado pelo seu preconceito de classe ou seu medo, a câmera realiza o Eros, pois o platonismo inexiste no cinema materialista de Eloy de la Iglesia: tudo deve necessariamente se encarnar num corpo infiel, tabernáculo paroxístico e impuro numa arte que lida com extremos, que só pode admitir o amor sob o signo da atração terrorista, do apelo hiper sensorial, do nec plus ultra da paixão somática; os perigos catastróficos da overdose, as consequências desfuncionais do aborto mal feito, os acidentes terríficos de percurso são previsíveis percalços negros num cinema que paga o preço alto da aposta, não mais de Pascal, e sim (talvez) do perverso Octave Mirbeau, sendo que agora tudo se passa no meio incendiário, não mais da alta burguesia (esta é apenas uma das faces da moeda, aquele que introduz o personagem rico que vai decair de classe e de status, por intercessão da droga mais intensiva da obra de Eloy: a paixão sexual, que o pico na veia supurada emula, de maneira figurativamente lancinante), e sim dos terrenos baldios por onde trafegam putas, cafetões, michés e traficantes num no man’s land lumpen, parte maldita do espaço-tempo da vida nas cidades hodiernas.
O contracampo seguinte – a mão que enfim acaricia o queixo do adormecido, cindindo o véu de Maia do Desejo com um golpe de signo e de cena sub-reptício, subtraindo-nos a carne adorada para uma melhor jouissance do protagonista – inaugura o segundo Eduardo, aquele que mais interessa ao cinema de Eloy: um cinema do médium obscuro da paixão, segundo o tipo (michés, donas de casa ressentidas, traficantes de corpos e de droga) e os cenários suburbanos adequados à figuração do Desejo. Lacan dizia-nos que a linguagem é um corpo; sutil, mas um corpo; quando, em uma sequência de desvelamento mais adiante, Miguel, irritado com a aproximação excessiva da mão tateante de Eduardo, chama-o de bicha (“Sai daqui, maricón!”), tudo parece desabar sob o influxo desta palavra, senão ofensiva em si, certamente agora sim por efeito do tom atrabiliário. Até então o corpo de Miguel, protegido pelo platonismo do toque no rapaz anestesiado, retesava-se num limbo de Distância, de platonismo escópico, de entrevisão enviesada, enfim de Infinitude; quando é chamado de bicha, Eduardo decai sob os olhos de Miguel e do espectador, ainda embalado pela latência do desejo unilateral, e voltam a retomar seus direitos os papéis daquele jogo de gato e rato sobredeterminado pela condição social e política, pela lógica da presa e da rapina. Miguel, pelo menos diante de nós, se desnuda e arremete, feroz, mas Eduardo continua idealizando-o num lugar ocupado pelo close enlevado, que progressivamente vai sendo correspondido por contracampos de close up no rapaz, closes que pouco a pouco perdem a fidelidade amical e dão lugar ao ressentimento crapuloso, como no acmé da cena escandalosa no banco, ao final, num lugar fiel ubiquamente ocupado pelo filho, pelo amigo e pelo amante, pelo menos em seu imaginário apaixonado.
Los placeres ocultos é talvez o filme de Eloy menos cru, menos cruelmente tático (lembro aqui aos leitores da origem da palavra crueldade: a carne crua e ensanguentada do animal abatido), porque aqui ainda há lugar para o imaginário enlevado de Eduardo, que vê o rapaz (armadilhas da sublimação) sob a máscara tripla do amigo, do efebo e do prostituto; o close no rosto encovado e cheio de rugas precoces de Simon Andréu vai da refiguração do sublime, quando fascinado descobre o rapaz diante da vitrine de motos, à desfiguração da bicha espancada pelo homem que preferiu bater-lhe e roubar o dinheiro do que lhe permitir gozar, como vemos na cena do espancamento com a garrafada na cabeça: tudo continua a girar, para a ruína e sob o signo da predação, em torno do personagem, mas ele parece cego para o óbulo de sua paixão, cego para tudo o que não seja o abaulado e alvo corpo de Miguel, talvez o corpo indeme de febre de João na peça de Wilde.

Ferenczi, discípulo de Freud que se debruçou sobre o narcisismo, falava-nos da identificação com o opressor, pois (em minhas palavras; não tenho o livro à mão) o oprimido prefere o poder da passividade ao se acumpliciar com o gládio do opressor do que combatê-lo e permanecer um passivo, passivo reativo: é tudo o que podemos ter, segundo a lógica do Eros que ama aquele que o mata. Certamente o filme não possui ou retroalimenta um nexo sado-masoquista, como por exemplo em Fassbinder e Schmid, pois isto talvez exigiria um trabalho retórico mais sofisticado sob a perspectiva das metáforas (uso de espelhos convexos, por exemplo, para masturbar bilateralmente o narcisismo das pequenas diferenças) que é estranho ao elementar dos filmes behavoristas desta fase de Eloy, que abandonara o maneirismo “dos pobres” de El techo de cristal e Una gota de sangre para morir amando em nome de um realismo infra estrutural que prepararia a fase quinqui, fase esta que começava a amadurecer seu veneno gênero “ilusões perdidas” balzaquianas em Los placeres ocultos.
Em vistas ao que virá, é um filme experimental, pois se situa no meio do caminho: entre o amaneiramento dos pobres da primeira fase, mas sobretudo já imantado pelo pós-realismo e expressionismo colorido de filmes populares do início dos 80, como Colegas ou Navajeros (1980); afetivamente, é seu filme mais desolador, porque só conhece para o amor o ersatz do dinheiro e da difamação: a dupla formada por Charo López e o seu amante de cabelos encaracolados vai arrasar publicamente a persona de Eduardo, e segundo a concatenação pós-edipiana que tem na aparência e na exterioridade a chave da essência do indivíduo (corrente à qual certamente poderíamos aliar o cinema, sobretudo mais tardio, de Eloy), vai destruir a sua alma, a máscara que se empenhou uma vida inteira em construir para ver devastada por um miché adorado; este sempre foi o preço a pagar pela paixão: o desnudamento metódico e sistemático de tudo aquilo que um dia fomos, em nome desta mefistofélica e inefável descoberta.
Los placeres ocultos passa amanhã, dia 27 (sábado), na Cinemateca Portuguesa, às 17h00, em double bill com Les amis (1971) de Gérard Blain, no âmbito do ciclo “Malamor/Tainted Love: Realizadores Convidados: João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata”.