So we go inside and we gravely read the stones
All those people, all those lives
Where are they now?
With-a loves and hates and passions just like mine
They were born, and then they lived
And then they died
Seems so unfair, I want to cry
The Smiths, “Cemetery Gates”
Desde 3 de Outubro que estou para escrever sobre L’Insoumis (O Indomável, 1964), filme inserido num ciclo dedicado a Alain Delon na Cinemateca Portuguesa, que teve a primeira passagem nesse dia. Fui à sessão e saí da sala com uma vontade enorme de dizer muitas coisas sobre o que tinha acabado de ver. Mas entretanto passaram-se 25 dias.
Acontece-me frequentemente ter uma ideia para escrever um texto (seja sobre um filme, um livro ou um tema corriqueiro qualquer), e não atacar logo o computador ou um bloco de notas para deixar, pelo menos, um primeiro esboço para limar mais tarde. Não respondendo a essa urgência de escrita, ela acaba por esmorecer e, em muitos casos, morrer totalmente – aí, até nem a meia dúzia de notas apressadamente guardadas no telemóvel me dizem alguma coisa. Leio-as como se estivesse a contemplar uma escrita em código elaborada por um cliché de espião.
Por alguma razão o cineasta terá dito que não considerava este um filme político. Hoje, parece-nos evidente porquê: o contexto da história, para um espectador de 2025, acaba por ser pouco mais do que uma nota de rodapé.
Mas com este filme, algo foi diferente: apesar de já ter passado um tempo considerável, nem a vontade de escrever sobre L’Insoumis morreu de forma inequívoca, nem a minha memória do que vi se desvaneceu peremptoriamente. Talvez porque alguns filmes só têm o efeito necessário num espectador (sendo cada experiência pessoalíssima, com a qual talvez mais ninguém se consiga identificar) quando a distância temporal vai crescendo. Entretanto já vi vários filmes depois deste, e talvez me tenha já esquecido, com mais força, de alguns deles. Mas as imagens desta obra de Alain Cavalier não me abandonaram.

Em 2025, ler sobre L’Insoumis, que nos separa por 59 anos, é depararmo-nos com a controvérsia que gerou a sua produção e estreia. A censura exigiu cortes, Alain Delon não guardou boas memórias da rodagem, e o resultado final acabou por ser proibido em território francês durante algum tempo. Isto porque a narrativa leva-nos ao tempo da guerra pela independência da Argélia (uma legenda que se segue à primeira sequência diz-nos que estamos em 1961), e no seu centro temos um homem (Delon) que vai para a legião francesa… mas que depois decide fugir. Este é, portanto, um filme protagonizado por um desertor. O conflito só terminara dois anos antes da estreia. Pode-se deduzir que olhar para um passado tão recente não caiu bem à sociedade francesa, e que a personagem ambígua de Delon, que cai no goto dos espectadores, não tenha ajudado à apreciação do conjunto, levando a uma censura apertada (comum a filmes seus contemporâneos que abordaram a guerra). E não nos esqueçamos que, como acontece em todas as guerras, as feridas que ficam abertas podem demorar anos, por vezes décadas, a sarar (podia falar aqui da relação do nosso país com a guerra colonial, mas terá de ficar para outras núpcias).
Se bem que tenha cativado Alain Cavalier e também o actor-protagonista (que acumula aqui a função de produtor, que não raras vezes assumiu ao longo da sua carreira) abordar as contradições daquele tempo, parece que L’Insoumis se vai interessando muito mais por aquele homem do que pelas suas circunstâncias. Por alguma razão o cineasta terá dito que não considerava este um filme político. Hoje, parece-nos evidente porquê: o contexto da história, para um espectador de 2025, acaba por ser pouco mais do que uma nota de rodapé. Sim, é o motor para o rumo dos acontecimentos e para a clandestinidade de Thomas Vlassenroot, o homem a quem Delon dá corpo. Mas o desertor toma a dianteira do filme, e já nem interessa tanto o que ficou para trás, mas como é que ele vai conseguir concretizar a sua “fuga sem fim”.
Não sendo o mais óbvio exemplo, é um dos filmes que melhor demonstra o carisma electrizante de Delon.
O protagonista vai sobrevivendo entre sucessivas clandestinidades, com o regresso às origens, ao Luxemburgo-natal, a ser uma espécie de luz ao fundo do túnel que acompanha todo o trajecto. Envolve-se no sequestro de uma advogada de defesa (Lea Massari), mas rapidamente a relação entre os dois torna-se noutra coisa. Delon torna aquele homem complexo e contraditório numa figura com quem vamos simpatizando mais e mais. Os seus actos revelam generosidade e compaixão. Quem é ele? O que ambiciona? Será que mais alguma coisa interessa do que a mera sobrevivência?
Sendo um filme que, tanto hoje como no seu tempo, nos é vendido pelo seu tema, acaba por transcendê-lo. Ou seja, apesar de ter nascido de uma preocupação do seu tempo, acaba por ser de qualquer tempo. Não se pode dizer o mesmo de filmes modernos que querem ser uma de duas coisas: ou descaradamente actuais (e que perdem o interesse quando se esgota a pressão criada por essa actualidade) ou com pretensões de universalidade (angariando para isso todos os ingredientes que fazem parte de uma fórmula para agarrar o mínimo denominador comum).

Começando com laivos de thriller que vão ressurgindo ocasionalmente ao longo da sua duração, L’Insoumis torna-se num surpreendente character study, mais melodramático e intenso do que se esperaria, com os actos de Thomas a darem sempre mais razão à escolha do título do filme. A relação entre o desertor e a advogada ganha outros contornos. É uma espécie de pós-síndrome de Estocolmo, em que a raptada se apaixona pelo raptor depois de libertada. Ela já não precisa de lutar pela sobrevivência, e prefere manter a ligação com ele. Mas se Thomas nunca joga pelo seguro, a sua constante insubmissão não o impedirá de ser apanhado na curva, pouco tempo antes de atingir a sua redenção.
Não sendo o mais óbvio exemplo, é um dos filmes que melhor demonstra o carisma electrizante de Delon. Os olhos muito abertos que dizem tudo e nos acertam, como flechas mortíferas, nos grandes planos do seu rosto, e o célebre final que ainda hoje nos tira o tapete dos pés são provas disso. L’Insoumis não é uma simples curiosidade da carreira do actor. Encontrou aqui um desafio diferente, uma personagem enigmática que não se esgota nos parâmetros narrativos convencionais. Nem era o que queria o realizador.
Alain Cavalier ocupou os primeiros anos da sua filmografia com várias ficções, feitas até de uma forma bastante clássica, vincando alguns temas prementes. Mas nos últimos anos tem-se dedicado a outro cinema, de pendor mais experimental e pessoal [creio que o último exemplo disso que tivemos a estrear por cá foi o já distante Irène (2008)]. É um “verdadeiro artista” por arriscar fazer da sua obra o que bem entender, tendo crescido uma ânsia autobiográfica e uma vontade de experimentar outros formatos e formas de filmar. Mas ao ver L’Insoumis, não consegui deixar de ter alguma curiosidade sobre como seria “este” Cavalier, óptimo no preto e branco em 35mm, na utilização das emoções dentro e fora do ecrã e na utilização dos actores, em 2025. Será que deixaria a política sobrepor-se à arte, como acontece regularmente no cinema contemporâneo? Ou conseguiria, tal como aqui, voar para além do seu tema?
Fica a questão rectórica no ar. Mas antes de ir embora, há que falar do elemento pop de L’Insoumis: a escolha de uma imagem do seu desfecho pelos Smiths para a capa do seu álbum mais emblemático, colosso da música popular dos anos 80 (a imagem deve ter sido retocada pela editora discográfica, já que não consegui apanhar um fotograma da sequência que fosse exactamente igual ao do disco).


Confesso que não fazia sequer ideia de que era Delon na capa de The Queen is Dead até que, depois da sua morte, vários artigos mencionaram o disco como parte da carreira do actor, como se até fosse um dos seus maiores “feitos” – é um problema recorrente dos obituários, que demonstra como os seus autores não sabem que mais dizer do falecido. Mas será interessante investigar as várias dimensões populares da imagem, simbólica do culminar da viagem de Thomas que, até ao fim, quer fazer as coisas à sua maneira – insubmisso, portanto, até ao último suspiro. Ou melhor dizendo: de como os fenómenos de massas condicionam a maneira como vemos imagens.
Em parte, a cultura popular estragou o final de L’Insoumis. Quando a sessão terminou, parece estranho não ouvir There’s a Light That Never Goes Out. Assentaria que nem uma luva. Mas agora ainda me faz mais sentido outro tema de The Queen is Dead, com o qual abri este texto. Thomas, como todos, nasceu, viveu e morreu. O filme dá-nos algumas das suas angústias, amores e batalhas. É injusto, depois de todo o sofrimento, ser decretado um fim. Mas o cinema devolve a vida aos mortos e Delon ressuscita sempre que o vejo no ecrã, e além disso, neste filme a sua personagem fica viva connosco. Há lá melhor forma de eternidade?
L’Insoumis volta a passar amanhã às 19 horas na Cinemateca Portuguesa, no âmbito do ciclo “Alain Delon, a Virtude do Silêncio”.
