Falei na crônica do mês passado sobre a permanência ou não dos filmes ao longo do tempo. É um assunto que muito me fascina e sempre tento olhar para ele de forma positiva. É mais fácil ver filmes hoje do que era 30 anos atrás, quando comecei a me interessar por cinema, mas não temos tantos incentivos e, ao mesmo tempo, é a história do cinema que se mostra cada vez mais ampla. Acho que o trabalho do crítico que não se foca nos lançamentos (onde as relações são outras e por vezes ainda mais cruéis) acaba cada vez mais curatorial, ajudando a traçar alguns mapas que permitam ao leitor se mover por entre os mais diferentes possíveis cinemas. O que não deixa de ter suas limitações, existem muitos outros papéis que o crítico pode desempenhar, mas este é um que me parece cada vez mais urgente.

Acabei evitando escrever mês passado sobre as ansiedades que tenho sobre o assunto, até porque me parece muito importante frear um certo discurso catastrofista que por vezes toma conta de conversas do gênero. Há uma crença de que a história do cinema devia permanecer congelada em algum ideal que vai evidentemente variar conforme os interessantes pessoais do autor e qualquer esforço para ampliá-lo, seja por conta de filmes e autores mais novos ou que tenham sido redescobertos (ou muitas vezes vistos pela primeira vez fora de um espaço muito limitado no qual circulara à época). É um discurso conservador, mas não deixo de dividir com ele certa angústia porque estamos mesmo num momento em que tudo parece disponível e, ao mesmo tempo, não está e em que uma amnésia pode com frequência se impor, sobretudo quando algumas poucas entidades dotadas dos seus interesses comerciais não mostram grande interesse.
É um paradoxo um tanto desesperador: quanto mais disponíveis diferentes facetas da história do cinema se tornam, mais difícil ela é de se navegar. Havia algo de acolhedor na história oficial, mesmo que soubéssemos que ele era bastante simplificador. Havia o cinema popular americano, as grandes escolas da Europa ocidentais, o Japão, cada um com suas evoluções naturais, e aí algumas especialidades que dependiam do interesse do cinéfilo. Ainda era um tanto assim quando fiz faculdade de cinema no começo dos anos 2000, meu curso tinha seus defeitos, mas ele tinha cinco módulos de história do cinema mundial (e outros quatro de cinema brasileiro), o que sei é mais que a maioria das universidades oferece e tornava-o bem ideal para estrutura razoavelmente cronológica e supostamente totalizante. Não consigo imaginar alguém montando uma grade assim hoje, mesmo com cerca de 80-90 aulas ao longo de dois anos e meio, já era algo meio caduco à época e como se cada vez mais pontas soltas e nada lineares fossem acrescentadas a este mapa. A grande tragédia é que eu podia ter meus desacordos com o meu professor sobre algumas das escolhas e ênfases dele, mas quase tudo que ele discutiu e exibiu mais do que merecia ser conhecido, assim como um monte de outras coisas que ele jamais exibiria, não creio que naqueles anos todos ele passou um único filme africano por mais absurdo que soe, que nem mesmo um La Noire de… (1966) esteve no currículo.

Mencionei bastante a pesquisa decenal da Sight and Sound na crônica passada porque ela é bastante útil para discutir o tema. Eu votei nas últimas duas edições e na passada decidi que ela só teria filmes do século XX, e inclui uma explicação no texto que eles permitiam escrever para acompanhar. Em retrospecto, me senti bem com a decisão, mesmo que os únicos filmes que incluiu que entraram no top 100 fossem os dois bastante canônicos que eu já esperava, City Lights (Luzes da Cidade, 1931) e Tokyo Monogatari (Viagem a Tóquio, 1953). Me senti culpado por não votar em La règle du jeu (A Regra do Jogo, 1939) porque eu facilmente poderia (assim como uns duzentos outros filmes) e o filme saiu do top 10.
Era o único filme que estivera no top 10 em todas as listas desde a primeira em 1952 e, mais do que isso, fora o perseguidor mais próximo de Citizen Kane (1941) na maior parte desse tempo, ficando entre o 2º e 3º entre 1962 e 2002, antes de cair para 4º na penúltima e 13º nessa nova. Sem querer sobrevalorizar essas coisas, me parece algo bastante simbólico porque, ao contrário de muitas figuras tradicionais da história oficial do cinema, sinto mesmo que o interesse por Jean Renoir já não é o mesmo e não consigo imaginar muitas coisas piores. Há algo simbólico na ideia de ocaso do interesse por Renoir, pois a paixão por ele me parece representar a cinefilia dos anos do pós-guerra mais do que qualquer outro realizador, sobretudo La règle du jeu, cuja recuperação de reputação após o fracasso do lançamento em 1939 foi um dos grandes eventos do período. A relação dele com a imprensa francesa sempre foi tensa nos anos 30, assim como permaneceria até sua morte, mas os filmes que realizou na década eram dos maiores consensos do cinema sonoro, em suma, algo que católicos e marxistas podiam concordar.

Renoir sempre existiu nesse espaço bastante particular de estar bem no centro do cânone, mas não ser tão visto quanto Chaplin ou Fellini, e com frequência me parece que era visto somente por La Grande Illusion (A Grande Ilusão, 1937) e La règle du jeu (meu antigo professor passou o primeiro em aula). Lembro-me de que a primeira vez que escrevi sobre Renoir foi um artigo que usava o lançamento de uma caixa de DVDs de desculpa para defender seu período em Hollywood, o que não é algo tão comum para cineastas com a fama dele. Houve uma retrospectiva dele por aqui em 2017 que teve um bom público, mas longe de salas lotadas e creio que a última vez que um dos seus filmes teve um relançamento por aqui foi La Grande Illusion no começo dos anos 2000. Seus filmes mais famosos costumam ser localizáveis em streamings com algum enfoque em cinema clássico, mas não costumo notá-lo sendo programados nas salas de repertório aqui com frequência ou atraírem muita atenção quando são. Alguns anos atrás, La Flor (2019) do Mariano Lliñas incluía um episódio que reimaginava Partie de campagne (Passeio ao Campo, 1936) e os textos muito elogiosos sobre o filme como um todo geralmente paravam para apontar que o entrecho ficava muito abaixo do original.
Ou seja, Renoir nem de longe materialmente desapareceu, seus filmes estão por aí razoavelmente acessíveis para quem estiver disposto a correr atrás. Certamente muito mais do que, por exemplo, os de seu amigo Marcel Pagnol, para ficar em um contemporâneo seu igualmente brilhante. Não há nada que os torne especialmente difíceis de se assistir hoje. A posição de Renoir é similar à que sempre teve, está no cânone, mas não necessariamente na cinefilia mais básica, e ele termina sofrendo das desvantagens disso sem se beneficiar da presença constante. Isto não era especialmente uma questão 30 anos atrás, mas em 2025, quando seu primeiro longa, La Fille de l’eau (O Turbilhão do Destino, 1925), se tornou centenário e nossa relação com o passado de cinema é mais dispersa e menos presente, isto se torna mais saliente. Pensei no caso dele, mas é um fenômeno mais amplo para buscar soluções.