Quando me apercebi que aquele filme que queria ver há já algum tempo – e que, por sinal, naquele momento estava “obrigado” a ver – só estava disponível em formato VHS, posso dizer que reagi a essa situação mais com nostalgia do que com desilusão ou receio, à qual se juntou uma secreta excitação em torno da ideia de chegar a casa e “reanimar” o meu leitor de vídeo, que sobre o chão frio da sala tem dedicado os últimos anos da sua vida à ingrata missão de acumular pó.
A vida nem sempre é fácil para os cinéfilos mais sedentos de raridades, nomeadamente aquelas que pertencem à história do nosso país. Estes verdadeiros arqueológos do cinema acabam muitas vezes por recorrer a desviantes “soluções alternativas” oferecidas pela Internet, porque o mercado home cinema não consegue responder ao seu indomável apetite por mais e melhores preciosidades que, por se encontrarem enterradas nas profundezas do esquecimento/incompreensão, a história oficial do cinema tem prestado pouca ou nenhuma atenção. Normalmente, este “Plano B” levado a cabo com uma pala num dos olhos – com todo o respeito, meu caro Walsh -, um papagaio ao ombro e, se a caricatura sobreviver ao caricaturado, uma perna de pau – apenas “de pau”, ó Robert Rodriguez – mostra-se mais do que suficiente. A qualidade da imagem e som pode não ser a melhor, mas, aqui que ninguém nos ouve, por essa via lá vamos podendo aceder às raridades de Robert Frank, de Peter Kubelka, de Frederick Wiseman ou mesmo de António Reis ou Manoel de Oliveira. Acontece que, por vezes, nem o “Plano B” consegue salvar o dia.
Como muito bem sabe toda a geração formada por essa tele-escola chamada Rua Sésamo, a seguir ao “B” deve vir o “C”. Ora, para mim, que demorei muito mais tempo que a maior parte das pessoas que conheço a me desapegar do objecto, “C” é “C de Cassete”. É verdade: não passaram mais de dez anos e hoje a cassete é já um “corpo estranho” aos nossos olhos, um artefacto que passa melhor como peça de museu que o bem mais velhinho vinil, que, ainda assim, tem gozado com sucesso de uma “segunda vida” no mercado discográfico. O VHS, que dá nome ao recente filme de terror “tutorado” por Ti West, um pouco como o formato Super 8 baptiza a super-produção sci-fi assinada por J.J. Abrams e Steven Spielberg que fez furor o ano passado, é uma coisa tão caída em desuso que a sua aparição já não constitui apenas um anacronismo mas mais até uma espécie de presentificação fantástica de um “objecto não identificado”. Se levássemos um jovem pré-adolescente a ver Videodrome (Experiência Alucinante, 1983) talvez pudéssemos aferir melhor esta minha intuição: uma cassete igual a tantas outras, por exemplo, parecida com aquela que James Woods “insere” nas suas entranhas, ia-lhe parecer autenticamente um muito corpóreo e obsceno “objecto do Diabo”. A cassete é um organismo – isso Cronenberg tinha percebido muito bem – mas agora esse organismo é-nos estranho (alienou-se), isto é, desfamiliarizou-se aos nossos olhos – o que, de modo perverso, acaba por favorecer a “actualidade” da obra-prima do realizador canadiano.
O que era uma paralelepípedo mais ou menos do tamanho da nossa mão que nos dava a ver as imagens e os sons da Sétima Arte, provoca rapidamente uma impressão diferente mal é capturado por um olhar mais jovem ou por aquele olhar que, assoberbado que vai sendo pelos vários “últimos gritos” em matéria de gadgets digitais, simplesmente demora a RECordar. A cassete nunca esteve tão próxima de se transformar numa coisa rectangular, escura e com dois olhos brancos protegidos por uma superfície transparente de plástico, cujo miolo tem a forma de uma tira fina acastanhada que é colocada ao ar livre, se pressionarmos para baixo um botãozito que ela esconde na nuca. A “cabeça” abre-se mas pode morder se não tivermos cuidado. Contudo, ali está o filme, tão frágil como nos é dado a ver em toda a sua pornográfica concretude – o Dr. Egas Moniz não discordaria comigo se eu dissesse que a lobotomia, mesmo quando realizada sobre uma cassete, nunca é uma operação agradável à vista. Normalmente, abrimos o bicho, sopramos lá para dentro ou movemos por fora os seus olhos dentados, na esperança que o miolo nos transmita as imagens e sons certos – eis dois truques que pode ter apreendido do contacto com essa coisa.
Voltei a tocar naquele corpo e, como tem de ser, na máquina-mãe que, depois de engolir, o lê e converte em sinal televisivo. E o que terá levado alguém que já desistiu de combater o tempo – e até já tem um leitor Blu-ray multizonas todo catita – a ter de recorrer ao, temido por tanta gente, “Plano C de Cassete”? Bem, prepare-se porque a resposta é triste: um filme português. Foi para ver imagens e sons do meu país, realizadas por um dos bons cineastas nacionais, com alguns dos melhores actores da nossa história que, com nostalgia e excitação – ou algum receio de ser mordido pelo bicho subitamente acordado de uma longa, demasiado longa, hibernação -, recorri à defunta videocassete. De quê afinal? De um magnífico filme realizado para a televisão, mais concretamente, para um projecto televisivo à volta do qual se reuniram alguns dos nomes cimeiros do cinema português. O que se descobre aqui é que já houve tempos em que a ideia de telefilme não estava limitada aos “casos da vida” da TVI; verdadeiramente, a série Os Quatro Elementos é cinema feito para a televisão e não televisão mascarada de cinema. João César Monteiro, João Botelho, Joaquim Pinto e João Mário Grilo foram os autores dos “episódios”.
A João Mário Grilo ficou reservado o primeiro dos elementos: a terra. O tal “Plano C” foi accionado por causa desta obra, inédita no mercado DVD e que apenas passou há uns anos na RTP Memória – mas todos sabem, de qualquer modo, como as “boxes” só guardam as nossas gravações até onde a sua (ainda) algo curta memória nos deixar… O Fim do Mundo (1993) conta a história de um agricultor idoso que assassina com a enxada uma vizinha que o acusara de desviar para proveito das suas terras a água que era sua por direito. A paisagem que assiste a este acto – bárbaro à luz da lei dos homens mas, como insinua o idoso a certa altura, mais natural à luz das leis da terra – é uma aldeia na Serra de Lousã, onde só restam três habitantes que tomam conta do terreno de cultivo de quem partiu para as Américas à procura de uma vida melhor. Esta obra telúrica passada “no fim do mundo”, sobre a ligação inquebrável de um homem à sua terra, conta com uma interpretação memorável, quase bressoniana, de José Viana, na pele do homem analfabeto que com um gesto apenas ceifou não só a vida da vizinha como o seu destino ou o da sua terra.
Exibido em 1993, este pequeno filme com cerca de 60 minutos comenta ainda hoje de modo pertinente a actualidade política, social e cultural do país. Questões como o despovoamento do interior, a emigração, a incerteza quanto ao futuro (ou uma visão não-apocalíptica sobre “o fim do mundo”) e os problemas que a falta de dinheiro acarreta fazem de O Fim do Mundo um documento pungente que resiste muito bem a esta sua, prestes a ser celebrada, primeira vintena de anos. Para chegar ao seu encontro, que também só aconteceu por ter tido acesso privilegiado a um espólio gigantesco de filmes que se encontra inacessível ao público, não tinha outra alternativa que não a de limpar o pó do velhinho leitor de VHS, certificar-me que este aguentava o súbito despertar do “sono eterno” a que se conformara e, tentando eu não tremer das mãos, servir-lhe à boca um dos espécimes sobreviventes desse organismo em vias de extinção que dá pelo nome de “cassete de vídeo”. Lembra-se da última vez que viu um? Foi num museu? Ah bom, num zoo…