Por um lado, a imagem móvel, digerindo – e dirigindo – a verdade 24 vezes por segundo. Por outro lado, dentro dela, a imagem estacionária, rigorosamente cuspindo a verdade para a eternidade. À fotografia confere-se o poder de caucionar um facto, algo que se verifica, como Rohmer um dia escreveu, no poder probatório que o “photo finish” tem na transmissão televisiva dos desportos de velocidade. Ao cinema reserva-se uma nem sempre rigorosa suspensão da incredulidade – é uma questão de crença ou de “querer acreditar” mais do que afirmação de verdade -, numa deslumbrante ultrapassagem usain boltiana da invenção de Niépce. Entre o frio instante congelado, corroboração da morte (o rigor mortis do movimento) pela/para a eternidade – é o “isto-foi” barthesiano-, e o fluxo ininterrupto, hemorrágico, de imagens – o “isto-é” barthesiano -, faz-se esta Sopa de Planos de sabores diferenciados. Sirva-se, por favor.
É uma fotografia da e de escola. A clássica fotografia que a turma, com a respectiva Professora, tira para a posteridade, testemunho de um tempo em que meninos e meninas, entretanto adultos e separados pela vida, aprenderam as primeiras letras (caracteres, no caso), as primeiras contas, enfrentaram as primeiras inseguranças perante o outro, enfim, sentiram, pela primeiríssima vez, uma autoridade (e, espera-se, um aconchego) que não a familiar. É, fatalmente, mais do que um registo fotográfico, um registo de vida, no sentido em que se trata de uma fotografia-despedida, algo a que os alvos da câmara (fotográfica e, aqui, também cinematográfica), embora disso tendo uma ligeira ideia, não atribuem grande importância (com excepção da Professora), porque, afinal de contas, o “futuro” é a próxima brincadeira ali ao lado e a nostalgia não existe para quem o “passado” é meia dúzia de anos de que, sejamos crianças ou adultos, pouquíssima ou nenhuma memória temos. Trata-se de uma fotografia com um propósito muito bem demarcado, se bem que, em rigor, seja esse o propósito de toda a fotografia, por mais descomprometida e desprendida que se pretenda (por mais “selfieana”, já agora, que se pretenda): fixar o tempo, “um” tempo, para sempre, contrariar o seu inexorável percurso, afirmar “um dia, foi assim”. Neste caso, com a particularidade, digamos “idealista”, de fixar a infância, tempo de pureza e inocência – uma fotografia que, em qualquer momento da nossa vida, sempre poderemos retirar de uma gaveta, colocar em cima da mesa e, melancolicamente, desabafar: “lembras-te de quando éramos crianças?…”. Em Nijûshi no hitomi (Twenty-Four Eyes, 1954), de Keisuke Kinishita, porém, a fotografia-despedida promove não só a despedida destes meninos, mas uma bem maior: a despedida do Japão, de um certo Japão, outra forma de assinalar a sensação do “fim de um tempo”, em breve substituído pela guerra e, depois, pela aculturação americana. Contra o esquecimento, a memória, por si só, pode ser escorregadia. Daí a fotografia: lembras-te de quando éramos crianças?
Francisco Noronha
O plano de uma fotografia rasgada, como já tantas vezes vimos no cinema. Este (plano) representa a dupla mágoa de o objecto em causa não ter sido golpeado por quem o segura entre mãos, mas por quem o enviou numa cruel missiva – a senhora da fotografia emoldurada, que espreita no canto da secretária. Pauvre homme. Rupture (1961) é uma curta-metragem de Jean-Claude Carrière e Pierre Étaix, este último que vemos segurar a fotografia com a sua cara retalhada. Um evento simples, um melodramazinho, mas aqui concentrado em 10 minutos de gags ao estilo de Tati, com o familiar isolamento sonoro dos ruídos materiais e dos gestos de contacto: a mão que sacode a gabardine, o tic-tac do relógio, o ranger da cadeira, o abrir da gaveta, o barulho do papel de carta ao toque… Delicias que vão confundindo o drama com a comédia. Este “estar sentado à secretária com a fotografia de uma mulher”, leva-nos à relação com aquele seu outro filme posterior, Yoyo (1965), igualmente toldado de nostalgia romanesca, em que Étaix abre a gaveta da sua secretária, num cantinho do seu casarão, para visitar regularmente a pequena fotografia de um amor de juventude. Em Rupture, há uma amargura expressa nos gestos mecânicos, como a resposta pronta a essa tal senhora cuja moldura espreita no canto da secretária: colocando lá dentro a fotografia dela rasgada, Étaix “fecha um envelope, passando a ponta da língua pela cola, com essa leve repulsa por uma coisa simultaneamente doce e suja”, tal como nos descreve Michel Schneider a morte (no livro Mortes Imaginárias, capítulo de Rilke). Quem vir o filme, ou quem já o viu, compreenderá esta minha nota dramática a terminar a saudação que aqui faço a Rupture, esse uso tragicómico da fotografia no cinema. Deixei-me ser romântica na escolha, em vez de ir buscar ideias à vasta centelha académica.
Inês Lourenço
Tudo começa com um acidente e chovia, como é óbvio. O fotografo não estava e teve que se chamar Isacc, um outro fotografo. Como a morte, os clientes aparecem quando menos os esperamos e mudam-nos a vida – a certa altura Isaac ouve, Vá com deus e eu vou-me à vida, só que o caminho para deus não é o mais fácil. Aliás, a viagem que leva Isaac no sentido da angélica Angélica é uma coisa de arrepiar. Uma entrada nos confins do mundo. Um carro pega em Isaac e só muito raramente lhe vemos o rosto iluminado pelos candeeiros públicos. É toda uma viagem na escuridão. Maria João Pires constrói a gondola sonora que nos transporta para o outro lado. E chegamos. Toda essa sequência é coisa do outro mundo. Excepto o marido, todos os que habitam aquela casa, estão mortos há muito; quando se entra ‘na divisão’ parece que os que lá estão, em vez de se despedirem da morta, estão dando-lhe as boas vindas. Isaac faz uma visita ao mundo dos mortos deixa-se seduzir pelos que por lá andam. Coloca a câmara, olha pela objectiva e vê aquele sorriso. Isso sim, um convite! Um, vem me fazer companhia. Um, vem dormir comigo… eternamente. Porque a câmara é o mecanismo de aceder aos efémeros rostos humanos, é o filtro para o outro lado – e talvez não seja por acaso que Oliveira tenha escolhido Pilar Lopez de Ayala para dar corpo a este O Estranho Caso de Angélica (2010) a actriz fantasmática do outro filme (também fantasmático) de Guerín. Isaac ainda foge, só que quem lhe toma o gosto, dificilmente o esquece. Ele bem tenta, faz por se agarrar à terra. Vai fotografar os homens do campo. Ouve-lhes as canções. Mas já não há volta a dar. Uma vez morto, morto toda a vida.
Ricardo Vieira Lisboa
Confesso: não fosse o Ricardo Lisboa e não teria reparado neste plano fugaz, de três segundos, do mais recente filme de David Fincher. A forma discreta como este plano “passa por debaixo da mesa” na experiência do filme é representativa da maneira como Fincher pensa cada instante em busca de uma transparência perdida, qual pura ressonância clássica. Nas mãos de outro realizador, este momento de transparência da imagem do objecto de desejo, de procura, de todo o filme, ou de grande parte do filme, duraria certamente mais tempo e/ou seria inserido na montagem com outra pompa. Mas Fincher quer trabalhar o ritmo, uma certa cadência em crescendo que explode na sequência em que os impecavelmente brancos lençóis Savoir, entre fades para negro pulsantes, são tingidos a vermelho, como se, de facto, Gone Girl (Em Parte Incerta, 2014) fosse a perfeita inversão especular de Psycho (Psico, 1960), no qual, logo no início, Janet Leigh manchava de vermelho a loiça branca da banheira. Naquela plano de três segundos vemos a foto de identificação da mulher desaparecida, a “cidadã acima de qualquer suspeita” que, desde o início do filme, é subtraída ao ninho matrimonial e enviada para um fora de campo ornado com palavras e imagens demasiado perfeitas para… isso, serem verdadeiras. A imagem da foto é a imagem de uma superfície, uma de várias (outra pode ser o frio chão da cozinha que esconde manchas de sangue ou pode ser também a miríade de ecrãs que mentem a toda a hora) através das quais o olho da câmara – com o do espectador – tentará atravessar. Esse atravessamento da aparência, que aqui se simboliza pela luz da lanterna da polícia, revela – no sentido fotográfico do termo – o segredo da mise en scène meticulosa, calculada mas absolutamente material que engrena cada acção em Gone Girl.
Luís Mendonça