A construção heróica do jornalismo em The Post (2017) é perto de pífia quando comparada com um filme como All the President’s Men (Os Homens do Presidente, 1976), a obra-prima de Alan J. Pakula sobre o escândalo Watergate que encontra aqui uma espécie de prequela. É que no filme de Spielberg toda a intriga gira à volta de uma decisão editorial e administrativa de publicar ou não matéria classificada de altamente confidencial pelo governo norte-americano. A grande aventura do jornalismo, que no filme de Pakula era a procura labiríntica e perigosa da verdade, aparece aqui reduzida à gloriosa decisão de deixar passar ou não material confidencial fornecido por uma fonte secreta – o “Gargante Funda”, no filme como na vida, não havia “feito a papinha toda” aos jornalistas do The Washington Post, ao passo que aqui, o “whistle blower”, a quem Spielberg dispensa pouca atenção dramática, e não encontra particular heroísmo, fornece tintim por tintim a história de décadas de mentiras sobre a guerra do Vietname. A opção é legítima e até podia resultar, mas o gesto enaltecedor aparece cedo de mais no filme. Já sabemos que os nossos protagonistas foram “escolhidos pelo destino” para empreenderem grandes mudanças. A retórica de Spielberg dá-nos tudo numa bandeja, cedendo à sua intenção – pouco subtil – de transformar este filme ambientado nos anos 70 e na América “democraticamente asfixiada” de Nixon numa caixa de ressonância para o que se passa hoje, no mesmo país, mas sob o jugo de Trump.
Em entrevista ao The Guardian, Spielberg conta que leu o argumento de The Post em Fevereiro do ano passado. Movido por um sentimento de urgência em adaptar esta história que tanto diz aos dias de hoje, caiu na ratoeira de toda a arte reduzida a uma urgência: transformar uma história política, que poderia promover uma reflexão importante sobre a liberdade de imprensa e a ética do governante, numa fábula insuflada por uma moralidade de pronto-a-vestir que vem pregar aos convertidos. Este acaba por ser um filme menos sobre a procura da verdade ou a desafiante prática do jornalismo do que sobre um certo modo – diríamos “justo”, porque o é, no caso – de fazer política através dos jornais. O título, nesse sentido, não engana: é de postagem que aqui tratamos. A aventura da procura e tratamento da informação interessam pouco ou nada a Spielberg. Nesse sentido, o maior herói aqui é o decisor, o superior hierárquico que dá o sinal verde. Aqui interpretado por uma suposta dondoca que, herdando a direcção de um jornal de pouca expressão então nos Estados Unidos, o The Washington Post, decide dar o grito do Ipiranga. Antes do ser já o era: Meryl Streep é símbolo feminista de revolta. O “bate o pé” é estrondoso. Mas Spielberg não dá ao espectador espaço para contemplar o processo dessa decisão. Ou melhor, até dá, mas este vem já revestido desse heroísmo que “antes de ser já o era”.
A sua sobriedade pakuliana é apenas um verniz mal e apressadamente aplicado a uma vontade de “picar o ponto” na agenda política actual. The Post é frouxo como documento histórico e ainda mais como panfleto político.
Spielberg não sabe fazer aqui o que fizera recentemente com dois filmes poderosamente políticos: Lincoln (2012) – sobre o qual escrevi aqui – e Bridge of Spies (A Ponte dos Espiões, 2015). Estes filmes remetiam a História para uma espécie de “drama de chambre”, psicologicamente embrenhado e de registo intimista. No centro, está essa figura fordiana do “standing man”, o homem que, apesar de ser só um homem, bate o pé à História e produz uma lição ressonante sobre a resiliência, a bondade e o prazer arguto pela aventura. Tudo isto falta a The Post. Está lá, “postado”, mas sem vida interior, sem a chama que queima e que aquece. A vida das personangens afrouxa ante a retórica encomendada pela urgência dos tempos: estes homens e esta mulher aparecem-nos glorificados, mas não há verdadeira glória no relato, apenas sublinhados de câmara e de luz. Contra “os bons”, Nixon é tratado como um boneco diabólico do qual apenas vemos, à distância, a silhueta na sala oval, enquanto ouvimos os seus estratagemas para controlar a imprensa. Não vemos Pakula a fazer isto. Tal como seria impensável na gramática pakuliana a horrenda sequência na escadaria do Supremo Tribunal de Justiça, com Meryl Streep misturando-se entre a turba de feministas, todas “in awe” com o seu exemplo.
De facto, Spielberg deixa recados a Trump, e iria com certeza merecer todos os aplausos do mundo por isso. Mas The Post também é um filme puramente reactivo. Ele emprega a mesma linguagem superficial, de auto-glorificação, que encontramos nos “posts” de Twitter do ex-apresentador de The Apprentice. Esta câmara que tanto adjectiva o heroísmo exemplar das suas personagens cede facilmente à retórica chã que também podemos associar ao trumpismo – há até esse momento algo embaraçoso em que o jornalista interpretado por Tom Hanks é apelidado pela sua mulher de “corajoso”, mas… mais corajosa ainda, ressalva a pobre senhora enquanto dobra umas roupas, é a directora do jornal, encarnada por Meryl Streep. Spielberg substantiva pouco, e mal, este heroísmo excessivamente declarado, didáctico ou apriorístico. A sua sobriedade pakuliana – consubstanciada pelos tons cinzentos, sem dúvida elegantes, de Janusz Kamiński e pelo facto de sair pouco dos interiores do mundo da redacção, por exemplo – é apenas um verniz mal e apressadamente aplicado a uma vontade de “picar o ponto” na agenda política actual. The Post é frouxo como documento histórico e ainda mais como panfleto político. O melhor sucessor contemporâneo de All the President’s Men continua a ser Spotlight (O Caso Spotlight, 2015).
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