1. Ah, os ingleses! É bem conhecida a campanha (na sua má-fé, de facto, difícil de compreender) dos “jovens turcos” da Nouvelle Vague (Truffaut e Godard, principalmente, Chabrol sempre foi mais reservado) contra o cinema inglês dos anos 40 a 60. Como observa Godard, com a partida de Hitchcock para a América em 1939 para realizar Rebecca (Rebeca, 1940), o cinema inglês ter-se-ia “eclipsado”.
Truffaut, nos seus textos polémicos dos anos 50 no jornal Arts, considerava-o uma “contradição nos termos” e precisava: “Dizer que o cinema inglês morreu seria um exagero já que ele nunca existiu. O filme inglês actual é incolor, inodoro e sem qualquer sabor em particular” (Chroniques d’Arts-Spectacles, 1954-1958, Gallimard, 2019).
Mas Godard, numa crítica de Woman in a Dressing Gown (1957) de J. Lee Thompson, não lhe fica atrás e enterra um pouco mais a lâmina no corpo exaurido desse cinema: “é preciso coçar bem a cabeça para encontrar qualquer coisa a dizer sobre um filme inglês”. E continua: “como o football, o cinema do outro lado da Mancha tem hoje tanto de um enigma como de uma lenda. Como é que os descendentes de Daniel Defoe, Thomas Hardy e George Meredith chegaram a um tal grau de incompetência em matéria de arte?!”. “Desesperar do cinema inglês seria ainda admitir que ele existe”, conclui (Arts, n.º 680, Julho de 1958 [in Jean-Luc Godard, Les années Cahiers, Flannarion, Champs, 1989 (148-150)]). Uma indiferença, aliás, diga-se em abono da verdade, partilhada do outro lado do oceano: John Boulting em 1954, interrogado sobre o que pensava do cinema europeu (continental) contemporâneo (os italianos?, o cinema nórdico?, Renoir e outros franceses?), reconhecia não o conhecer bem e considerá-lo sobrevalorizado pela crítica (as suas referências eram antes David Lean e William Wyler).
Uma coisa que talvez só tardiamente [por alturas de Farenheit 451 (Grau de Destruição, 1966) ou Le Dernier Métro (O Último Metro, 1980)?] Truffaut terá percebido é que, por detrás do “engenho” das suas intrigas (do carácter planeado, escrito, desse cinema [de script?]), existiam nesses filmes ideias de cinema que a “forma” depois objectivava, fazendo por vezes vacilar (fremir), nas suas convulsões galvânicas [pense-se no mal-amado Ken Russell de The Devils (Os Diabos, 1971) e Gothic (Gothic – Poetas e Fantasmas, 1986)], os alicerces aparentemente “classicizantes” desse cinema.
E no entanto tivemos, nos anos 50 e 60, o free cinema [Karel Reizs, Saturday Night, Sunday Morning (Sábado à Noite, Domingo de Manhã, 1960), Tony Richardson, A Taste of Honey (Uma Gota de Mel, 1961), Lindsay Anderson, This Sporting Life (O Jogador Profissional, 1963), John Schlesinger, Billy Liar (O Jovem Mentiroso, 1963), Richard Lester, The Knack… and How to Get It (Lições de Sedução, 1965)], a Ficção Científica [os vários Quatermass, entre 1955 e 1967, de Val Guest e Roy Ward Baker, Spaceways (Viagem Espacial, 1953) de Terence Fisher, entre outros] e, claro, o horror gótico da Hammer [com Terence Fisher: The Curse of Frankenstein (A Máscara de Frankenstein, 1957), Dracula (O Horror de Drácula, 1958), The Mummy (A Múmia, 1959); Roy Ward Baker: The Vampire Lovers (As Amantes do Vampiro, 1970) ou Jimmy Sangster: Lust for a Vampire (Prazeres da Vampira, 1971)] – seguido pelo da Amicus [para a qual trabalhou Freddie Francis: Dr Terror’s House of Terror (O Comboio Fantasma, 1965), Torture Garden (O Jardim da Tortura, 1967) ou The Skull (A Caveira, 1965)] -, sem esquecermos os thrillers psicóticos de Freddie Francis [Paranoiac (O Louco, 1963), Nightmare (1964), Hysteria (O Enigma do Apartamento, 1965) e Psychopath (Assinatura de um Crime, 1966)].
2. Simplificando escandalosamente, podemos talvez dizer que a ideia (de “marca”) que se tem da obra de Alfred Hitchcock é a de uma forma eminentemente plástica, caracterizada por um rigor quase geométrico (mais linear do que expressivo) do plano e pela découpage minimal (mas ardilosa) da cena ou da sequência. Compreende-se que assim seja, já que o Hitchcock que sai do trabalho da sua afirmação como “autor”, levado a cabo pelos jovens críticos (e depois cineastas) dos Cahiers du Cinéma (casos de Truffaut [o seu livro de entrevistas é de 1966], Chabrol e Rohmer [assinam em conjunto um livro sobre ele em 1957], Godard e mesmo Rivette [contudo mais admirador de Hawks]), se processa sobretudo na segunda metade dos anos 50. No entanto, embora os sinais já fossem sensíveis em filmes tão pouco “clássicos” como The Rope (A Corda, 1948), Under the Capricorn (Sob o Signo do Capricórnio, 1949) ou The Wrong Man (O Falso Culpado, 1956) – para já não falar de Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954) e Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) -, é com Psycho (Psico, 1960) que tudo muda e a parte final da obra do autor manifesta uma maior liberdade e diversidade formal – quase uma apetência destroy pela aniquilação do seu universo (e imagem) anterior: casos de The Birds (Os Pássaros, 1963), Marnie (Marnie, 1964) e Frenzy (Frenzy – Perigo na Noite, 1972).
Algo, também, de que já se encontram marcas – uma divisão (splitagem) interior do filme que o constrói, como coisa 3.ª, contra si mesmo – nos seus primeiros filmes: tanto a fase do “mudo” como a sequência inglesa dos anos 30 (The Secret Agent [Os 4 Espiões, 1936] ou Sabotage [À 1 e 45, 1937]), antes da partida para Hollywood em 1939. The Manxman (Pobre Pete!, 1929), o último filme “mudo” do autor, é um bom exemplo disso. Se, como escreve Raymond Bellour em 1966, na entrada do realizador inglês no sintomático (da época) Dicionário de Cinema organizado por ele para as Éditions Universitaires, ”todos os filmes de Hitchcock são recebidos como uma obra policial”, convém acrescentar que o “enigma” (crime) a descobrir na imagem-rébus que é o filme, é antes de mais formal, tendo a ver com um problema / crise da “forma” a eventualmente “resolver” (ou não).
Assim, num filme tão “geométrico” – na distribuição da luz nos rostos (objectos) ou na arquitectura dos planos (pense-se no paralelismo da posição dos actores nos planos da chegada de Pete) – com ele ao centro, mais recuado, e Kate e Phill dos dois lados, de costas para ele e de frente para a câmera – e depois quando Kate e Phill vão buscar a criança, com Pete no meio, mais à frente e os dois agora nos


lados, mais atrás) -, Kate (Anny Ondra, actriz austríaca que Hitchcock impôs no seu primeiro filme falado, Blackmail [Chantagem, 1929], onde ela é dobrada por uma actriz inglesa), o personagem feminino do triângulo (amoroso) do filme, surge de início em partes obstruídas à visão do plano ou deslocada para a sua lateralidade: desde o início ela escapa à vontade de ordem e construção da obra até que, porque ama outro homem, Phill (Malcolm Keen), de quem tem um filho, deixa casa e marido (Pete). Aqui ela é claramente a “ausência” (vazio) que muda o espaço e as figuras à sua volta, nomeadamente Pete que agora tem de tratar do filho.

Se Pete se “feminiza” (algumas características físicas do actor, Carl Brisson, de origem dinamarquesa – caso do brilho do olhar – vão aliás nesse sentido), o amante (ideal), Phill, agora juíz, a bem da honra e do seu estatuto rejeita Kate, revelando os seus limites morais (e éticos). Consequência disso, Kate atira-se à àgua do porto da ilha de Man onde tudo se passa. Tentativa de suicídio que Phill terá de julgar: face à recusa de Kate de regressar ao lar (“I’m not going back”, afirma), Phill confessa a sua relação com ela e demite-se. Mais tarde Kate e Phill recolhem a criança e saem da casa de Pete sob os apupos dos populares. Final atípico e quase apático dado num registo menos “expressionista” do que “nórdico” (Sjöström, Dreyer?) enquanto Pete, marinheiro tem algo do cinema francês dos anos 20 (pense-se no Epstein de Coeur Fidèle, 1923).
Logo nos anos 20, este filme mostra como o cinema de Hitchcock foi sempre um cinema de “mulheres” (Under the Capricorn, I Confess [Confesso!, 1953], Psycho, The Birds ou Marnie) que recusam a ordem da representação (moral) e, face ao hieratismo (ou tibieza) dos personagens masculinos, trazem consigo um princípio de “estranhamento”, de abertura e exorbitação da “forma”, que faz delas o princípio de real/ verdade do cinema do autor (“a câmera diz a verdade”, observa Hitchcock citado por Bellour).
3. Devido à quase unanimidade em relação a filmes como A Matter of Life and Death (Um Caso de Vida ou de Morte, 1946), Black Narcissus (Quando os Sinos Dobram, 1947) ou The Red Shoes (Os Sapatos Vermelhos, 1948), há toda uma parte da obra de Michael Powell (a solo ou com Emeric Pressburger), tomando como objecto a II Grande Guerra que tem ficado esquecida.
É o caso de The Small Back Room (O Seu Pior Inimigo, 1949) que anda à volta de um especialista em minas, Sammy (David Farrar, que vimos como oficial alemão em Went the Day Well? [48 Horas de Terror, 1942] de Alberto Cavalcanti e entrou noutros filmes de Powell), que, mutilado, tem de usar uma prótese de pé e procura anestesiar os seus problemas com o álcool.
Desse ponto de vista, o filme é um excelente tratamento do que poderíamos designar como o complexo de membro fantasma que assola Sammy: de início, o personagem tarda a aparecer e não surge de forma directa – um longo travelling procura-o num pub em que bebe (o mesmo sucede no dancing em que espera por Susan). Como um bom “fantasma”, o membro perdido (que introduz, claro, a questão da “castração”) tem um substituto no álcool, nomeadamente na garrafa de whisky bem presente na sala de estar de Sammy – trata-se de uma presença constante, mais ou menos visível no plano e que tem o seu pico na sequência (onde se combinam jogos ópticos modernistas e grafismo de traços e luzes expressionista) em que Sammy alucina e se vê perseguido, no seu delírio, pala multiplicação das imagens da garrafa.
Todo esse estudo sobre o carácter substituto da bebida e a valsa (angustiante) dos seus simulacros (o pé falso, a garrafa ou depois o grande-plano da bomba cravada na terra) é bem conseguido mas não nos parece o mais significativo do filme: se o pé(nis) falta e a bebida não é suficiente, há outro termo que se apresenta como o horizonte de uma possível solução do problema, Susan (Kathleen Byron, um anjo em A Matter of Life and Death, freira em Black Narcisssus e que reaparecerá em The Elephant Man [O Homem Elefante, 1980] de David Lynch). Na verdade, para lá dos excelentes actores masculinos (aqui, David Farrar), há algo que singulariza o cinema inglês dos anos 30 a 50, as suas actrizes, figuras não do alto contraste do claro-escuro do noir americano mas presenças de uma luz difusa, portadoras de “aura”. Kathleen Byron é aqui esse farol na bruma (noite) da imagem de cinema: na fase em que as coisas correm melhor com Sam, ela é iluminada em grande-plano (recortada, pela luz difusa, nele), depois surge em plano médio (de conjunto) com a sombra a incidir sobre o rosto até que, por fim, desaparece da moldura da fotografia (que, na sala, discutia a primazia com a garrafa de whisky), deixando de si o vazio da superfície em que Sammy, perdendo espessura e nitidez, se reflecte e afunda.
Todo o filme, aliás, parece construído de acordo com a lógica (perversa?) da criação de dificuldades tanto à percepção como ao decorrer da acção no plano (caso da cena de discussão do comité que é contrariada, primeiro, pelo ruído exterior de obras e depois pelo correr de cortinas, devido ao alarme de bombardeamento).
Claro que no final tudo se resolve: Sam é chamado para desarmadilhar uma bomba (consegue-o fazer) e Susan, vindo agora da sombra para a luz, regressa. Mas seria esquecer a forma cuidada (precisa) como tudo é feito (como a minutagem, perícia do trabalho de Sam) ou, o que é muito singular, o modo como o filme, depois de Susan, se foca no rosto (por vezes em grande-plano) da jovem militar (Renée Asherson) que lê a Sam as notas deixadas por Stuart (Michael Gough) na sua tentativa gorada de desactivar a bomba; enquanto o faz, as imagens mostram (de modo bem constructivista) os componentes (e segredo do gatilho) do explosivo.

Superados os traumas, Susan pode regressar mas a garrafa de whisky permanece no seu lugar: “Have a drink”, são as últimas palavras dela num plano em que abraça Sam (de costas de costas para a câmera) com o rosto iluminado. Lição de vida e de cinema.
4. Como referimos, uma lenda corre na crítica cinematográfica, lançada por elementos da Nouvelle Vague (Truffaut em particular) – e assente claro, em muitos preconceitos e alguma ignorância (incapacidade de ver esse cinema por aquilo que ele é) -, segundo a qual haveria uma espécie de incompatibilidade congénita entre o cinema e os ingleses.
They Made Me a Fugitive (Sou um Fugitivo, 1947), de Alberto Cavalcanti, é exemplo de um noir (policial) movendo-se entre o thriller inglês dos anos 30 (Hitchcock) – mas sempre reelaborado por elementos formais “modernistas” dos anos 20 (Cavalcanti, nessa década, realizou em França filmes de avant garde como Rien que les Heures [1926] e La P’tite Lili [1927]) – e a sombra do noir americano. É um filme “inglês”, se se quiser, pelo “nevoeiro” (uma tonalidade de cinzento preferida ao claro-escuro bem contrastado, de origem germânica, do noir americano), seja este nocturno ou diurno, da fotografia de Otto Heller [operador de Peeping Tom (A Vítima do Medo, 1960) de Michael Powell e West 11 (1963) de Michael Winner] – uma característica que não permite distinguir bem o “campo” (dado num paisagismo picturalista de um moderado romantismo) e a “cidade” (marcada por um pitoresco dickensiano). É-o também pelo modo como este cinema nunca descola (Hitchcock faz o mesmo em The 39 Steps (Os 39 Degraus, 1935)) da cultura popular dos pubs ou do music hall (aqui com alguns números ao vivo).
Mas o que surpreende sobretudo é a centralidade das figuras femininas, não vamps estáticas (transidas por um mal de vivre por assim dizer existencial: born to be bad) mas personagens com móbeis bem definidos para as suas acções: todas elas se querem aqui vingar de homens que as traíram, caso de Sally (Sally Gray que também encontramos em Obsession [No Último Minuto, 1949] de Edward Dmytryk), ou que lhes boicotaram a vida, como a Srª Fenshaw (Vida Hope). Preponderância portanto, nestes filmes, das actrizes, quase sempre excelentes, que são filmadas em planos médios ou grandes planos, movendo-se mais do que mantendo-se paradas, e deixando propagar a sua imagem pelos espelhos de camarins ou de bares (constante formal que passará para os filmes noir dos anos 50 – pense-se em Lizabeth Scott em Stolen Face [A Máscara do Desejo] ou Diana Dors em The Last Page [Sob Chantagem], dois filmes de 1952 de Terence Fisher). São elas, sim, que fazem andar a acção e, com os flashes lentos da sua luz difusa, irradiam na imagem.
Um jovem Trevor Howard é aqui Clem Morgan, um ex-aviador da RAF que no pós-guerra se vê envolvido com um grupo de pequenos gangsters liderado por Narcy (Griffith Jones) que o trai e faz ser acusado pela morte de um polícia num golpe que correu mal.
A cena do reencontro entre Morgan e Sally (que se oferecera para o ajudar a fugir da prisão se ele matasse o seu marido, Narcy) é um bom exemplo desse cinema frontal que joga com a intensidade, recorta a imagem dos actores (sobretudo femininos) no plano, e usa os fundos cinzentos de modo a dar menos a profundidade do que a realçar, dar um relevo quase alucinatório (mas frio) aos rostos. Assim, a tensão, situações (drama), resolvem-se sobretudo pelos gestos: caso dos chumbos que Sally tira das costas de Morgan enquanto ele sussurra “she loves me, loves me not” ou a mão dela com um cigarro que, abreviando razões e discursos, entra de súbito no plano.

Perto do fim, na sequência de ajuste de contas na falsa funerária, é de realçar o uso de inserts (de objectos, partes de interior) – marca do Cavalcanti modernista – que, mais do que distender / suspender a acção, como no cinema japonês, indo aqui do concreto ao abstracto, lhe dão ressonância ao mesmo tempo que referem um exterior (“de fora”) já lá e fatal de toda a acção. A luta final entre Morgan e Narcy, num telhado encimado pelas letras RIP (na linha de outras inscrições que aludem ao tempo ou à morte), remete-nos para a estética do cinema mudo (germânico) dos anos 20. Toda uma sensação de estranheza e perda (desalento) que percorre o filme e cai sobre ele (e nós) no fim. O fim de um tempo (a Inglaterra de antes da guerra) e o anúncio de outro que, se calhar, nasce já morto (o pós-guerra). No final, Morgan não é ilibado pelo agonizante Narcy, restando-nos um plano de Sally sozinha numa rua sombria.

“No future”, claro.
5. Na Grã-Bretanha, o policial de mistério (John Buchan, The 39 Steps, 1915), ou o pulp de crime, mais sensacionalista (Graham Greene [A Gun for Sale, 1936 / Brighton Rock, 1938] e Eric Ambler [The Mask of Dimitrios, 1939 e Journey into Fear,1940]), precedem o noir americano, embora vários destes romances tenham tido adaptações pelo cinema de Hollywood (no caso de Greene, This Gun for Hire [Aluga-se Esta Arma, 1942], de Frank Tuttle, com Alan Ladd e Veronika Lake, e no de Ambler The Mask of Dimitrios [A Máscara de Dimitrios, 1944] de Jean Negulesco] e Journey into Fear [A Jornada do Medo, 1943] de Norman Foster, com Orson Welles e Joseph Cotten).
Uma questão que se coloca é a de saber se o filme policial inglês, sobretudo no pós-IIª Guerra Mundial, se pode relacionar ou tem estruturalmente a ver com o noir americano?
Paul Schrader, num texto muito citado (“Notes on Film Noir”, 1972), considera o noir menos um “género” (caso do Western) do que um filme de “atmosfera” (tom), inscrito num arco temporal bem delimitado (sobretudo entre 1942-1953) e que emergia de um contexto cultural e social marcado pela influência de factores exógenos como o cinema alemão dos anos 20 e 30 (em particular o “expressionista) – uma marca assente na presença na América de operadores, actores e realizadores alemães (ou da Europa de leste) fugidos ao nazismo – mas também, o que é talvez mais inesperado, o “realismo poético” francês (Renoir e Gabin, entre outros, também emigraram nesse período) – factores que intervieram sobre a matriz do crime (ou gangster) film da Warner (Brothers) dos anos 30.
Para Schrader, o noir seria caracterizado por traços distintos: 1) uma atmosfera nocturna, acentuada pelo uso de um preto-e-branco bem contrastado que explorava muitas vezes uma “profundidade de campo” trabalhada por matizes do negro (sombras); 2) uma organização angular e descentrada do espaço no plano (uma oblique noir choreography [235]) privilegiando linhas oblíquas ou verticais, que criavam zonas de tensão em espaços escuros e fechados, em prejuízo da “horizontalidade”, por exemplo, do Western; 3) no plano temático, ter-se-ia personagens e situações marcados pelo “retorno do recalcado” (crime, paixão ou sentimento de culpa) cuja dimensão traumática se podia expressar numa “desorientação cronológica” com recurso a flashbacks ou à voice over (monólogo interior) [236]; 4) por outro lado, personagens / actores tendem a ser dados (imersos) no cenário (como no Renoir dos anos 30 [Le crime de Mr Lange, 1936]), o que se traduzia num estado de “despersonalização” (crises de identidade) e “atonia” (fatalismo); 5) daí, devido a esse abater (vergar) de linhas fortes (direitas) de estruturação dos personagens ou do plano, uma preferência por universos liquefeitos (noites de chuva, ambientes portuários) que encontram a sua expressão formal num uso frequente do plano-sequência com profundidade de campo (sim, como no musical). “The how is always more important than the what”, conclui Schrader – ou seja, a “forma” (curva, esférica, convexa) conta mais do que a “acção” (clareza das linhas e definições [237]) (in Barry Keith Grant [ed.], Film Gender Reader, University of Texas Press, [1986] 2003 [229-243]).
Nas posições de Graham Greene sobre cinema – ele que foi autor de pulps noir (Brighton Rock foi catalogado como “cheap false noir sensationalism”) e crítico de cinema – pode-se detectar a linha de demarcação que existia entre duas culturas (a inglesa e a americana) mesmo quando trabalhavam sobre temas semelhantes.
Green, com efeito, distanciava-se de Hitchcock (mesmo de The 39 Steps), considerando-o muito “hollywoodesco”, ao mesmo tempo que condenava a “falsidade” (escapismo) do cinema de entertainment americano. Para ele – e essa era também a posição de Virginia Woolf em “The Cinema” (1926) -, o cinema devia preocupar-se em produzir “the translation of thought back into images” (apud Naremore: 69): daí, por um lado, a sua defesa de um “realismo local” (de lugares e tipos britânicos cuja particularidade os distinguia da “convencionalidade” dos modelos americanos), embora, por outro lado, exigisse a sua “poetização”, de acordo com o modelo do “realismo poético” francês (numa crítica a Pépé le Moko (1937) de Julian Duvivier, ele elogia-o por elevar “the thriller to a poetic level” [68]) (James Naremore, More than Night – Film Noir in its contexts, University of California Press, [1998], 2008).
Observando que nunca tinha havido “a school of popular English blood” (o que era válido tanto para a literatura como para o cinema), ele defendia a necessidade de “to go further back than this [o tradicional]” e “[to] dive below the polite level”, aproximando-se de “something nearer to commun life” [69] (sublinhamos). Ou seja, de criar “our poetic drama”, algo da ordem do blood melodrama que, à sua maneira, Brighton Rock era [69].
Ao fim e ao cabo, Greene preconizava um “realismo elevado” tipicamente inglês (reelaboração do “pitoresco” de Dickens e do “grotesco” de Conrad), de acordo com uma tendência que vem dos anos 20/30 (Hitchcock e Anthony Asquith), e depois 40 (os irmãos Boulting, David Lean), para se continuar no “jovem cinema” dos anos 50 e 60 (Jack Clayton, Karel Reizs, Tony Richardson e Lindsay Anderson) – uma tendência que se matizará, já na segunda metade dos anos 60 e no início dos 70, com elementos psicóticos e psicanalíticos [Jack Lee Thompson (Yield to the Night (1956) com Diana Dors, John Gilling (The Challenge (1960) com Jayne Mansfield, para lá de, claro, Terence Fisher, Freddie Francis ou Seth Holt [Taste of Fear (O Sabor do Medo, 1961)].
6. Os irmãos Boulting, Roy e John, produtores e realizadores, constituíram, desde a 2ª metade dos anos 30 até à década de 60 (John) e 70 (Roy), uma componente importante da produção cinematográfica (corrente) inglesa: nos anos 40/ 50 a sua produção reflecte os problemas do seu tempo (ambos eram autores progressistas), tanto no cinema de guerra [Pastor Hall (O Mártir, 1940), de Roy, um filme anti-nazi] como no drama social [The Guinea Pig (1948), também de Roy] ou no thriller [Trunk Crime e Inquest (1939), ainda de Roy]; nos anos 60, John, que em 1951 realizara The Magic Box, sobre William Frieze-Green (para os ingleses, o “inventor” do cinema, que precedera os Lumière), volta-se sobretudo para a sátira e a comédia e nos 70 só Roy (que fizera Lucky Jim, segundo Kingsley Amis, em 1957) continua a filmar.
Brighton Rock (Morte em Brighton, 1948), que adapta ao cinema o romance homónimo de Graham Greene (1938), é um filme sintomático das encruzilhadas do cinema inglês no pós-guerra: o argumento é de Green e de Terence Rattingan, importante dramaturgo que viu várias peças adaptadas ao cinema – casos de The Browning Version (A Sombra de um Homem, 1951), de Anthony Asquith, ou The Deep Blue Sea, adaptado por Anatole Litvak em 1952 (Profundo Como o Mar) e por Terence Davies em 2011 (O Profundo Mar Azul).
O filme inscreve-se numa linha de “crónica” quase “documental” (jornalística), talvez mais do que propriamente “realista”, do cinema inglês dos anos 30/40: começa aliás, ainda no genérico, com planos da vida em Brighton (imagens de praia, de água, ruas e bancas de jornais com pulp magazines), delineando-se um trajecto que vai do “comum” (sub-urbano, já que se trata de uma vila costeira) ao fait-divers da imagem de um homem deitado com um jornal sobre a cara que anuncia a descoberta de um corpo num poço (o do gangster Kite, chefe de Pinkie). Como Rowan Joffé (que realizou em 2010 uma nova adaptação do romance de Greene com Hellen Mirren, John Hurt e Sam Riley) observa num extra do DVD, o filme distingue-se na altura pela importância dada à rodagem (por vezes “em directo”) feita nos próprios locais da acção.
Estabelece-se assim uma ligação ao “real” (directo, local) em que a “estranheza” resulta sobretudo de uma mise en scène desses elementos comuns, uma “instalação formal” que constitui um factor de “diferimento” da sua percepção mais imediata e familiar: assim, de Pinkie apercebem-se antes de mais as mãos que brincam com um fio e a primeira cena no bar começa com um grande-plano de um copo, sendo os elementos do gang (Dallow, Cubbit e Pinkie) depois vistos reflectidos num espelho.
A “forma” é assim o plus que certifica a imagem como “real”. O elemento aleatório da “forma” (o vício de “formalismo” a que não conseguem escapar, na sua vontade de “realismo”, as imagens) não só esburaca o “real” (a representação) como permite a sua autonomização (libertação) num registo mais solto e associativo próximo do Fantástico. Lógica de que é exemplo o percurso no ”comboio fantasma” (Dante’s Inferno), no pontão de Brighton, em que Pinkie mata Fred – uma sequência bem “hitchcockiana” com elementos modernistas (as distorções e máscaras de sombras que saltam do escuro) que evoca o cinema expressionista dos anos 20 (e 30).
Se a “forma” abre ao Fantástico [pense-se na sequência da alucinação de Johnny (James Mason) em Odd Man Out (A Casa Cercada, 1947) de Carol Reed, a que no referiremos adiante], ela abre também ao “lírico”: assim, a boneca que Pinkie escolhe como prémio num jogo de tiro da feira (prenúncio da naïveté de Rose) simboliza o lado popular e kitsch da noção de “belo” (ou de “afecto”/ sentimento) que o filme nunca recusa. “Remind’s me of church”, comenta ao vendedor Pinkie (Richard Attenborough). Na verdade, o carácter “escusado”, como lhe é dito, da sua “violência (patente nas mortes de Fred ou Spicer) constitui a expressão do seu sentido do “poético”, ligado ao “mal-estar” (angst) do personagem. Como escreve Greene no romance: “in a world of electoral reforms, plebiscites, sex reform, and dress reform, [damnation] is an immediate form of salvation from the ennui of modern life, because it gives some significance to living” (Naremore: 70).
Na verdade, o “catolicismo” do personagem (ou do filme) tem a ver com o pathos de uma “dupla postulação” baudelairiana para o “mal” (o crime) e a noção de “culpa” (ou remissão), o remanescente do que pode ter sido uma vertigem do “bem”. Como Pinky diz a Rose (Carol Marsh), ambos “católicos”, “claro que há Inferno” (“of course there’s hell, flames, damnation, torments”), ao que ela contrapõe, com a sua inocência, “Heaven too”. Os dois, aliás, têm 17 anos e são próximos dos pares de You Only Live Once (Só Vivemos uma Vez, 1937) de Fritz Lang e de They Live By Night (Os Filhos da Noite, 1948) de Nicholas Ray.
Daí também o contraste (quase drama metafísico) entre “sombra” (o “claro-escuro”, domínio dos grandes-planos do rosto de Pinky ou das cenas de grupo na casa do gang) e “luz” (o plano ilumina-se quando Rose fala). O noir, com efeito, é aqui sobretudo “formal”, o que parece aproximar o filme do cinemaamericano embora essa “escuridão”, enegrecimento da “forma” e da “condição humana” [vd. Of Human Bondage (Escravos do Desejo) filme de 1934 de John Cromwell com Bette Davis e Leslie Howard], tenha aqui menos a ver com a “atmosfera” e mais com o “requinte”, objectivação (perversa) de um princípio de “deformação” (enlouquecimento) da “forma (imagem) – algo que se revela, emana do real, despertando do seu ”sonho” (apatia) essa Grã-Bretanha conservadora dos anos 30/ 40. É essa também a posição do “espectador”, “cego” como o velho que a criança arrasta para o “combóio fantasma” (a fantasmagoria atracional do filme), face à revelação do carácter exorbitante da “violência” do real (e da forma) que se manifesta ao longo da obra.
O “plano-síntoma” (trauma) dessa “objectivação” doente (falhada), tanto de Pinky (Richard Attenborough, que parece reanimar em si os trejeiros de James Cagney nos filmes da Warner) como do filme, encontramo-lo no “contra-picado” (expressionista) que apanha Pinky a meia distância (o rosto iluminado com a sua cicatriz bem visível) e que pára, ao alto, no reflexo do corpo de Spicer (Willie Watson) espojado ao fundo das escadas para onde o primeiro o lançara. Com a inversão perspectiva do “contra-picado”, a profundidade (verticalidade) do espaço vê-se reconvertida na horizontalidade flat da imagem tanto do corpo em baixo como do reflexo cubo-expressionista (à maneira do Caligari de Robert Wiene) na lucarna do tecto.
Sintomática ainda dessa “ferida” interior que corrói tudo (e nos conduz das primeiras imagens da cidade aos espaços fechados e nocturnos do fim) é a cena em que Pinkie grava um disco para Rose (a cultura musical jovem do pós-guerra, na verdade, está para breve): o plano, compactado e fechado, composto como um puzzle, apanha à frente, em grande-plano, a cabeça do jovem (com uma ligeira sombra), enquanto por detrás, vista pelo vidro da cabine (num segundo re/enquadramento), se distingue o rosto de Rose (iluminado e com os olhos muito vivos, abertos). A mensagem do disco é retorcida (perversa): “What you want me to say is that I love you. There’s the truth. I hate you little slut. Why don’t you get back to Nelson Place and leave me”.

Como noutras situações, cada “signo” (emblema) tem duas faces: a “luminosa” (Rose) (uma possibilidade de amor: vida) e a “sombria” (o ethos narcísico da recusa do “outro” de Pinkie). Um contraste perceptível na cena em que Pinky procura convencer Rose a um “duplo suicídio”, como forma de se livrar dela, e depois, já no final, quando ele procura levar por diante esse plano (uma espécie de versão paródica do final de Odd Man Out de Reed). No entanto, devido à intervenção da polícia – chamada por Ida (Hermione Baddeley) e Dallow (William Hartnell) -, Rose acaba por deitar fora o revólver e Pinkey, na luta com Dallow, cai à água (toda a sequência é trabalhada pelo jogo de sombras e luzes nos rostos dos dois jovens e depois pelo contra-luz das imagens de água do pontão).
No final, Rose culpabiliza-se por não ter morrido e, instada por uma freira, passa o disco que, riscado, repete apenas as palavras “I Love you. I love you”. Sim, tudo tem de passar por um ecrã, uma mediação (o disco rachado), para poder contornar a censura (de nós próprios) e poder ser dito. Nesse plano, Rose inicialmente é apanhada de frente mas à medida que o disco gira, ela sai do plano desviando-se a câmera, sem corte, para um crucifixo na parede. Em certa medida, o espaço percorrido por esse movimento de câmara é o de um ∞ sobre o vazio – a fórmula do paradoxo, enganador mas que funda emocionalmente, do filme.
7. Logo numa das primeiras cenas de Odd Man Out de Carol Reed (activo desde 1935 e que em 1949 realizará o noir The Third Man [O Terceiro Homem], com Orson Welles), enquanto Johnny (James Mason), saído da prisão, se prepara, sem grande entusiasmo, para uma acção do grupo nacionalista irlandês de que faz parte, Kathleen (Kathleen Ryan, actriz irlandesa de que este é o primeiro filme) pergunta-lhe se alguma vez ele “será livre”? “Someday perhaps. I must go now”, responde-lhe ele, levantando-se e cortando o plano dos dois – um plano a que a cabeça baixa de Kathleen, a coser, dá o tom e gravidade, puxando-o para baixo e afirmando-o na sua consistência e materialidade (bem caseira e terrena).
O resto da cena é tratado sem corte: Johnny veste o casaco, Kathleen mantém-se sentada a olhar para baixo, calada, e a nuca de Johnny reflecte-se num pequeno espelho pendurado na parede por detrás dos dois; Johnny então senta-se, mantendo-se no reflexo até que ela se levanta, agora de frente para a câmera, ajudando-o a vestir um sobretudo; os dois movem-se então no plano, numa dança lenta (em certa medida já fóra deste mundo). Kathleen insiste para que Dennis (Rob Beatty) o substitua mas Johnny sai e promete-lhe voltar. Johnny, claro, encontra-se “encurralado” (“in the corner”, como dele dirá dele Shell), preso de um reflexo que não é o do seu rosto (imagem: identidade) mas o de uma parte posterior de si próprio que ele não consegue ver, dê-se-lhe depois o nome de “inconsciente” (pulsão de morte?) ou “destino” (É essa também a situação, afinal, de Kathleen: numa cena mais adiante, entre ela e Grannie [Kitty Kirwan], em que esta lhe conta a história da sua vida, apontando para um retrato em que se reflecte a sombra em gancho do seu dedo, Kathleen observa-se a ela própria nesse espelho, aproximando-se a câmara quando ela se reconhece nele, presa da sua imagem e destino). É esta, ainda, se quisermos, a situação do cinema inglês no imediato pós-guerra: preso de um pesado caderno de encargos (formal e temático) mas percorrido e vivificado pela noção de que tem de fazer algo contra o que parece já decidido [uma herança que se manifesta, por exemplo, na “esquadria “ formal do plano e num tom que estes autores por vezes escolhem anestesiar (o noir de Terence Fisher) ou corromper por dentro (a “extravagância” de Freddie Francis)].
Na sequência do “golpe”, Johnny acaba por ser ferido e mata um guarda, ficando para trás. Como depois em The Third Man, enquanto se encontra refugiado numa ruína, uma bola, vinda do fora de campo, vem ter com ele – saída (enviada?) desse outro lado oculto, não visível e nunca visto, de que nunca afinal se sai: a MORTE, claro. E o filme (o cinema) então muda: passa a ser mais do que um espelho ou ecrã, tornando-se um interface, uma superfície (membrana) permeável à vinda dessas formas (figuras) do exterior – se se quiser, do “real” (em termos lacanianos) ou de um ultra-real, como Pierre Soulages falava de um outre-noir, um negro para lá do negro, trabalhado pela luz e revelado pelo entranhamento dela nas coisas. Um “negro luminoso”, portanto? Kathleen, sempre muito serena, e muitas vezes de costas no plano, é a guardiã ou emissária desse plano.
A partir daqui temos de facto dois filmes: o de um cinema de “intriga” – o do thriller realista de acção, a cujo “realismo” (tendencialmente trabalhado pela categoria do “pitoresco” dickensiano) corresponde um “real” demasiado cheio (vd. cena no autocarro ou a constante presença das crianças, sobretudo na primeira parte do filme); no entanto, esse “real” caracteriza-se por nele haver sempre algo que falta e que o descontinua e desequilibra (Johnny, que todos procuram enquanto ele se busca a si próprio), abrindo o filme a uma dimensão “alegórica” ou “metafísica”.
Na deambulação final de Johnny (e esqueçamo-nos da longa e penosa cena de Kathleen com o padre e Shell, o homem dos pássaros) é decisivo o encontro dele com Lukey [Robert Newton o futuro Blackbeard, The Pirate (Barba Negra, o Pirata, 1952) de Raoul Walsh], um pintor que pretende fazer o seu retrato para captar algo no seu “olhar” (o trabalho, talvez, da morte) que sempre lhe escapou noutros modelos. Na verdade, ao contrário dos outros casos, Johnny encontra-se entre a vida e a morte, vê a morte e é atravessado pelos pensamentos que lhe vêm dela. Ele está “condenado” (doomed), como todos nós, e essa é a “verdade” de que ele é o emissário.
Consciente do carácter “extraordinário” da situação, Lukey prepara cenografiacemente, como se fosse uma “instalação”, o retrato, construindo para Johnny uma espécie de “púlpito”, sentando-o num cadeirão e usando uma velha lâmpada como um projector (de cinema) para o iluminar. Este retrato, claro, é não só o da “alma” (aura) de Johnny (do tipo de personagem, outsider, que ele personifica) mas também o do filme e do seu projecto de cinema (cumprido depois, em certa medida, em The Third Man, com Orson Welles).
No entanto, o “retrato” (da morte ao vivo) é também uma “anatomia”, como o dá a entender o esforço de Tober (Elwin Brook-Jones), um antigo estudante de medicina que procura tratar Johnny enquanto Lukey pinta o retrato: essa “exposição” do corpo (das suas feridas) abre-o para dentro, para o discurso da alucinação, da corrente (febril) do pensamento (imaginação) (numa cena algo “expressionista”, muito anos 20, Johnny alucinara antes flashes de encontros que tivera durante a fuga, re/vendo-os nos intervalos da espuma de cerveja vertida pela mesa). Ao discurso das imagens (as telas saltam da parede e dispõem-se à sua frente) segue-se a shakespeariana proclamação de Johnny: “I’m becoming a sounding brass”, diz – momento em que James Mason [vindo de The Man in Grey (Perfídia, 1943), de Leslie Arliss, e The Seventh Veil (O Sétimo Véu, 1945), de Compton Bennett] como que antecipa o Brutus de Julius Caesar (1953) de Mankiewicz.

Se o delírio do episódio com Lukey (o momento de “alegoria” do filme), assim como a concepção exaltada de “forma” (cinema) que ele propõe (um expressionismo sacrificial, cristão?), se continuam no thriller psicótico de Freddie Francis (ou de Seth Holt), já no lirismo barroco (cada plano, jogando com a profundidade de campo, parece composto picturalmente) do encontro final com Kathleen – em que ela escolhe morrer com Johnny disparando sobre a polícia (“It’s a long way, Johnny, but I’m coming with you”, segreda-lhe ela) – podemos ver tanto a presença viva do melhor noir (Gun Crazy [Mortalmente Perigosa, 1950] de Joseph Lewis) como da forma-massa (outra versão do outre-noir de Soulages), segundo Deleuze, de Orson Welles [o de Othello (Otelo, 1951), The Lady from Shangai (A Dama de Xangai, 1947) ou mesmo de O Terceiro Homem (de Reed e Welles)].

8. No seu livro sobre Alfred Hitchcock (Hitchcock Films, Zwemmer, 1965) (livro contemporâneo da primeira vaga de filmes de horror da Hammer), Robin Wood observa que os travellings para diante no interior da casa de Psico constituem uma descida ao “inconsciente” não só do filme (de Norman e da intriga incestuosa familiar) como do espectador (isto é, da memória do cinema) [121]. Deste ponto de vista, a sequência de abertura (cerca de 3 minutos, incluindo os créditos) de Nightmare de Freddie Francis constitui um bom exemplo dessa relação entre “forma” e “mente”, sobretudo quando a câmera se põe em movimento e, por ele, como que desliga as imagens dos seus referentes, dando-lhes uma dimensão solta, aérea e fantasmática (É pena, aliás, que Deleuze, que abordou este tópico da dimensão mental do cinema a propósito de autores como Orson Welles, Alain Resnais ou Alfred Hitchcock, não se tenha debruçado mais em pormenor sobre o cinema de Horror, digamos assim). Depois de um plano (de conjunto) de exterior, a câmera – seguindo os passos de uma mulher jovem em camisa de noite branca (o filme é a preto-e-branco) – percorre um corredor cuja profundidade é sugerida por uma fila de lâmpadas, atravessando-se assim portas e percorrendo-se espaços que vão dar a uma cela onde se encontra outra mulher que é como que o seu duplo envelhecido: a escala dos planos (agora mais aproximados, pelos ombros ou do rosto) muda, dando o confronto entre as duas mulheres, insistindo a segunda na semelhança que existiria entre as duas. A sequência acaba abruptamente com planos de Janet (ainda sem nome e portanto uma espécie de figura universal, pronta a ser ocupada por qualquer um de nós) que grita, acordando de um pesadelo (cadeia de sonhos) que diz ser recorrente.
Janet (Jennie Linden) – como Carroll (Diane Baker), personagem de Strait-Jacket (Volúpia do Crime, 1964) de William Castle – assistiu em criança (11 anos) ao assassínio do pai (com uma faca) pela mãe e teme também ela enlouquecer (a mãe fora depois internada num asilo psiquiátrico). Embora tenha regressado a casa – um espaço filmado em planos bem contrastados, por vezes “obstruídos”, vistos através de obstáculos que acentuam a sua profundidade (Francis, antes de realizar filmes, era sobretudo conhecido como operador de câmara [vd. The Innocents (Os Inocentes, 1961) de Jack Clayton] -, a repetição (reenactment) da “cena trauma” (dada em flashback) continua a assolar Janet, agora com características cada vez mais hiper-(ir)realistas, no sentido em que aí se objectivam os fantasmas do inconsciente: trata-se, de facto, de verdadeiras instalações (3D) (com outra mulher de branco, semelhante mas diferente da primeira) em que Janet está presente (de acordo com a definição de Fantasma no Vocabulário de Psicanálise de Laplanche/ Pontalis [Moraes Editores, 1976 (228)]), assistindo em transe ao seu desenrolar e seguindo a “aparição” pelos corredores da casa até ir dar ao quarto onde o crime ocorreu e onde agora vê uma mulher deitada na cama com uma faca cravada no peito. A repetição da cena constitui, claro, um convite para passar ao acto – ou seja, o filme põe em cena, dá corpo e dramatiza (à letra, põe em acção) o dispositivo e trabalho (de (des)figuração) do Fantasma (imaginário).

Com o agravar da crise que traz consigo a repetição dessa “cena primal”, Janet vai perdendo a capacidade de distinção entre “sonho” (alucinação) e “real” (sintomaticamente quebra um espelho no seu quarto e tenta suicidar-se) e quando o “fantasma” irrompe no real (isto é, quando o real por detrás do espelho surge no fantasma) ela passa ao acto: assim, quando Henry (David Knight), o seu tutor (e “príncipe encantado”, substituto do pai que ela beija na boca quando o vê pela primeira vez), lhe apresenta a sua mulher (aparentemente a mulher de branco dos seus “sonhos” [Clytie Jessop]) – uma mulher com o rosto marcado por uma cicatriz –, ela acabará por a apunhalar. Tem-se então o 3.º acto: o 1.º é o do fantasma (a abertura), o 2.º o da sua encenação (repetição e passagem ao acto) e o 3.º o da passagem do “fantasma” (plano do imaginário) ao (melo)drama, a maquinação gizada para levar Janet a agir.
Tudo não passou, afinal, de um complot organizado por Henry e Grace (Moira Redmond) – a enfermeira que ele coloca junto a Janet para a acompanhar – com o intuito de matar a mulher do primeiro e apropriarem-se os dois da fortuna de Janet: na verdade, Grace era a mulher que aparecia a Janet em casa, com uma máscara semelhante ao rosto da mulher de Henry. No entanto, na linha do melodrama de tradição “gótica” (ou “frenética”) na passagem do século XVIII para o XIX, e de acordo com a lógica da “peripécia” e do “volte-face” que o caracteriza, o “golpe” exige sempre um “contra-golpe”, pelo que os empregados da mansão de Janet (John e May Gibbs), em conluio com Mary (Brenda Bruce) – a professora que levara Janet de volta a casa – intrigam para que Henry e Grace se virem um contra o outro. Assim, Grace começa também ela a ser perseguida por visões de uma mulher de branco (May) que se passeia pela casa, deixando cair objectos que pertenciam a Janet, o que a leva a, num gesto de fúria, apunhalar Henry (acto dado por uma sequência de planos frontais, muito aproximados, que evocam a sequência da morte no chuveiro de Psico]).
Como Grace diz, “há uma mulher [escondida] na casa” que a assola. Essa mulher é a figura de um “crime” que, como Nicolas Abraham (L’Écorce et le Noyau, 1987) refere, se encontra na origem do “fantasma” (e da sua repetição): o “fantasma” não só está na casa (é a casa) como faz dela cada vez mais um “túmulo” (cripta), o local em que o sujeito (Janet, a mãe, Grace ou mesmo o espectador) se encontra (e sente) fechado (preso).
Na sua parte final, o filme retoma a “forma” do início mas, como observou Marx a propósito da História, na repetição tudo tende a assumir o registo da “comédia” – um efeito de “rebaixamento” do tom manifesto num certo “distanciamento” e efeito de “conotação” formal (os overhead shots de Psico) que acaba por “tipificar” o regresso do “fantasma”. Passagem também do “gótico” mais abstracto, mental (o do Fantasma) a um gótico de época (costumes), mais contemporâneo [na linha de Gaslight (À Meia-Luz, 1944) de George Cukor], aqui revisto pelo “drama inglês” dos anos 50 [as cenas entre Henry e Grace lembram as disputas de Room at the Top (Um Lugar na Alta Roda, 1959) de Jack Clayton, filme de que Francis foi operador de câmara].
Exemplo dessas raízes no Gótico – que trabalha sobretudo sobre histórias (dramas) familiares que por vezes se continuam, labiríntica e subterraneamente, por gerações – é o filme anterior de Francis, Paranoiac!. Também aqui o “fantasma” – de Tony, o irmão morto que se teria suicidado – constitui uma emanação de um “enigma” (possivelmente crime) ligado a um “lugar” (já se sabe, a mansão familiar).
O filme começa com uma cerimónia fúnebre (11 anos depois) na igreja, com a presença da família dos Ashby – em particular os dois irmãos restantes, Eleanor (Janette Scott) e Simon (Oliver Reed) –, em que Eleanor julga aperceber Tony. Escrevi “emanação” e o cerne da “forma” encontramo-lo aqui: por um lado, é preciso criar, a partir dos elementos materiais mais comuns, essa “aura” de presença da figura ausente mas que nunca deixou por completo esse lugar (espaço físico e imaginário) – é essa a função do trabalho de câmera, sempre móvel, percorrendo e dando a ver novos espaços onde os personagens depois vêm, emergindo desse espaço em que como que flutuam; por outro lado, há que, a partir dessa material, tornar manifesto pela “forma” o latente, isto é, não o dar apenas a ver mas visioná-lo, presentificá-lo engrandecido, com um efeito de presença densificado: o uso contrastado do preto-e-branco, no registo “gótico” destes filmes, é fundamental para dar essa dimensão acrescentada, alucinada, às imagens, que depois como que se reflecte, espelha extaticamente nos grandes-planos dos rostos (aqui, de Janette Scott).
Como no romance gótico (Ann Radcliff), a recorrência do aparecimento do “fantasma” (aqui, “Tony” [Alexander Davion]) é sinal da engrenagem sórdida, e bem materialista, que gere a sua formação, geralmente resultado de um complot familiar (porque o “crime”, sabe-se, não é só de um indivíduo mas de uma linhagem). Aqui, o falso Tony é enviado por Keith (John Bonney), o filho do notário da família, para explorar os traumas dos dois irmãos e manter a sua fortuna nas mãos do pai. No entanto, o aparecimento de “Tony” – o facto dele se tornar “público”, visto por todos – acaba por precipitar o “recalcado” familiar. O engenho do argumento de Jimmy Sangster (mais elaborado do que o de Nightmare) – está em dar a ver como os Ashby reagem à pretensão do novo Tony ser o irmão (ou sobrinho) perdido: a “falsidade” dele revela a verdade e os logros dos outros, o que comunica um carácter de “espelho” não plano (com duas faces, verdade e falso) mas poliédrico (em toda a sua polivalência e ambiguidade) ao eixo organizador da intriga. Porque, claro, há um segredo familiar que desloca o centro da intriga de Janet para a relação entre Simon e a tia, Harriet (Sheila Burrell). Este jogo de “falsos espelhos”, encadeamentos e reflexos deformados, acentua-se nos últimos 30 minutos lançando o filme num crescendo alucinatório (o seu título, se o termo já não estivesse tomado, seria bem mais “psicose” do que “paranóia”).
Os efeitos mecânicos da intriga (continuamos no “gótico”) revelam a fúria (loucura) alucinatória, mas a “frio”, do seu engendramento: assim, uma noite, “Tony” ouve o cântico de uma voz de criança (?) vinda de uma extensão da casa e descobre aí um vulto encapuçado, junto a um órgão, sendo depois atacado por uma figura mascarada, saída da sombra, com um gancho; noutra ocasião, acordado de novo pelo som do órgão e do canto, “Tony” (não só o “falso” mas o outro, o que regressa por ele) vê, no mesmo lugar, Simon ao órgão e uma figura mascarada, com roupa de acólito – um novo plano mostra que o canto vem de um disco, vendo-se depois a figura mascarada (a que agredira “Tony” da primeira vez) por detrás de Simon; apercebendo-se da presença de Eleanor, que os espreita, essa figura sai do seu espaço para a atacar, surgindo então “Tony” que a desmascara: trata-se da tia Harriet.
Temos portanto um cenário de folie à deux com um 3º termo – descorporizado, sublimado pela voz – aí incluído (o verdadeiro Tony, morto). Harriet, confessa-o depois, pretendia assim esconder dos outros a “loucura” de Simon: “só simulando que o irmão está morto [ele] encontra paz”, diz. Mas falta outra volta no parafuso: vencendo a resistência de Harriet, que pelos vistos participava activamente no encafuamento do segredo, o falso Tony descobre o esqueleto do verdadeiro Tony murado por detrás dos canos do órgão; na mise en scène (reenactment) do “fantasma” vemos agora, no mesmo plano, Simon a tocar órgão com o cadáver do irmão mumificado ao lado e o falso Tony, amarrado, do outro; Harriet aparece e oferece-se para acabar o trabalho de Simon, incendiando a arrecadação com o cadáver; no entanto, ao ver o “irmão” (ele próprio?) em risco de ser consumido pelo fogo, Simon regressa para o salvar, acabando por aí morrer, abraçado a ele. Num único plano a câmera aproxima-se e fixa-se na caveira de Tony para depois mergulhar nas chamas.

Claro que há outra volta, ainda mais secreta, no parafuso: a do desejo incestuoso, o de Harriet por Simon (ela exclama: “Simon belongs to me, nobody will hurt him”) mas também o de Eleanor por Tony (ela beija o “falso” Tony antes ainda de saber que ele é um impostor). No entanto, aos olhos do desejo não o somos todos? Não escreviam os surrealistas franceses em 1928, no nº11 da revista Révolution Surréaliste, num texto ilustrado com fotos da Iconografia de Charcot, que a Histeria (título de outro filme de Francis, em 1965) constituía “a maior descoberta poética do final do século XIX”, e isto ao mesmo tempo que a consideravam – dando o exemplo de Haxan (A Feitiçaria através dos tempos), filme de 1922 de Benjamin Christensen – “um supremo meio de expressão” – cuja linguagem, aventuramos nós, talvez seja a do Cinema?