“(…) cinematic representations of history
that are defined as the surfaces,
and not the depths.”
Jason Sperb, Blossoms and Blood
Tentar abarcar a expansão de Paul Thomas Anderson num texto é, desde logo, dar a tarefa por terminada ainda antes de começar. Esta que ainda mais desafiadora é quando o contágio do seu mais recente filme, One Battle After Another (Batalha Atrás de Batalha, 2025) não se oferece ao ensaio. Não é um filme para “resolver”. Em jeito de tentativa de dar ao espectador aquilo que sabe que procura, ao espelho dos outros filmes de Anderson, este continua a ser alimentado pela propulsão de mudar o mundo – já perguntava Alana em Licorice Pizza (2021), “não é cool mudar o mundo?”, ao que imagino sempre um sorriso matreiro de Anderson do outro lado do ecrã em resposta. Todos sabemos quem ele é. Pós-moderno, auto-reflexivo, intertextual. Muito invulgar, foge a sete pés da definição. Tudo é sobre outra e outra coisa. Mas não há que o saber para despoletar a crónica a uma sociedade de excesso, profundamente polarizada, como a Americana, no regresso às suas origens.

Ao longo das suas quase três décadas de carreira, os seus millieus completos (começam e acabam com cada filme, nunca se prolongando para lá disso) são tensionais e diversos, respondendo apenas aos mesmos padrões. Filmes que são procura identitária de indivíduos sem rumo que dialogam com as famílias disfuncionais (por vezes muito numerosas) que por perto confirmam a existência das suas almas desoladas e secretas, tendo em conta a imensidão de um continente inteiro. Pelo caminho, há lutas a ser travadas com toxicodependência, inclusões em cultos, influência de gurus de auto-ajuda, e uma curiosa obsessão com lojas de colchões. A atravessar todo o corpo está um fio de humor, tão doce mas tão sardónico, que permanece juvenil e apaixonado pela sua própria ironia. Em todo e qualquer caso, o cinema do auteur a quem os cinéfilos chamam de PTA nos corredores das cinematecas e cinemas de culto um pouco por todo o lado é o cinema que sobrevive a um embevecimento que persiste numa dimensão avinegrada, filtro sobreposto a toda e qualquer obra que saía da cabeça do cineasta. Agradado primeiro, o espectador é depois raptado por Anderson para um mundo imersivo onde se submerge, sem pensar mais nisso.
O efeito que o filme tem é quase emoliente. Um bálsamo de entretenimento, onde tudo pode ser elevado e sacrificado. E por mais que ela lá esteja, porque está, não é um filme embeiçado pela sua complexidade.
De todos, One Battle After Another não será talvez o filme que reveremos com mais afinco. E também é capaz de não ser um dos melhores filmes que Anderson já fez, mesmo que seja o mais pessoal. A combinação entre ritmo e tom energizam as pulsões que são, ao início, apenas estímulos de uma procura por reinvindicação, lá está o desejo incandescente de alterar o estado das coisas. Aqui, Anderson californiano de gema, nascido e criado, não é prisioneiro do seu vale (San Fernando Valley). Na fronteira com o México, embrulhado no que muitos têm chamado de ópera satírica, o seu movimento inicial posiciona o olhar do activista, liderado pela força primordial do Harlem, figurada pela maravilhosa Teyana Taylor ou Perfidia Beverly Hills (o nome a sugerir o destino) – ainda me lembro de Taylor em A Thousand and One (2023) e de como a sua vulnerabilidade teima em continuar a abrigar-se em mim. Com ela estão os restantes elementos do grupo de militantes revolucionários que procuram derrubar o sistema e a quem Anderson decidiu chamar de French 75 (sim, o cocktail), dentro dos quais encontramos a personagem de Bob, “Ghetto” Pat Calhoun, parceiro romântico de Taylor, um já pateta Leonardo DiCaprio, que parece encaminhar este primeiro grande acto do filme em direcção à farsa. Sentimento que permanece ambíguo. Os French 75 viriam a libertar os migrantes presos na fronteira.
Inebriado pela força simbólica do passado, da memória do activismo dos marxistas-leninistas Black Panthers, que apareceram em Oakland, Califórnia em 1966, Anderson eventualmente coloca o seu filme a cair no tempo presente (16 anos depois) onde uma reptiliana atitude se abate sobre o país, comandado pelos supremacistas brancos. Assim que reunidas as duas famílias radicais Americanas, Anderson pode começar a mergulhar nas políticas do Eu, completamente focadas em Willa (Chase Infiniti), filha agora adolescente da entretanto traidora Perfidia. A jovem irá, durante uma viagem imprevisível, oscilar, sem saber, o pêndulo entre um lado e o outro. Entre o corpo físico de resistência ao fascismo armado de super-soldados e o corpo elitista, ultra-conservador e tirânico-cobarde a conspirar a partir de uma cave. Ou, se colocarmos as coisas de outra forma, entre o mapa genético e/ou a herança ambiental.

Alimentado por códigos revolucionários e muita banter, One Battle After Another é resultado de 20 anos de trabalho, e da influência de Vineland, a epopeia de Thomas Pynchon de 1990, situada na era de Ronald Reagan, onde se figuram antigos hippies radicais da contracultura da década de 1960 a viver no final da década de 1980, à procura das suas identidades algures entre o desencantamento e a nostalgia, num mundo assombrado pela vigilância governamental. Muito rapidamente se enquadra Vineland no mundo de Anderson replicando aquilo que já Elena Gorfinkel escrevia no seu ensaio académico sobre Boogie Nights (Jogos de Prazer, 1997) e que Jason Sperb salientou no livro que mais tarde escreveu sobre Anderson: “não é só feita uma alusão ao passado (…) é criada uma relação cinéfila com a década de 1970 que faz isso de um ‘imaginário histórico-fílmico’, para que transcenda a mera homenagem e se celebre, em seu lugar, o fosso dissonante entre o passado e o presente.”
O mesmo acontece aqui. É necessário assistirmos à passagem do tempo, e fazermos as devidas imediatas comparações entre os diferentes momentos políticos, para darmos o devido valor ao que o fosso nos indica. É incandescente ver o sonho da esquerda armada no ecrã, multi-geracional e multi-racial, a liderar fisicamente uma luta que é para ser mais destabilizadora do que é fatal. “Free borders, free choices, free from fear”. E ver que, com a passagem do tempo, a clareza de espírito e as convicções radicais vêem-se a cair num lugar emocional presente que nunca esteve tão assoberbado pelo cansaço de tudo e pela constante avaliação de nada. A esta sombra assoma-se a caricatura do coronel do exército Steven Lockjaw (Sean Penn), que empurra consigo a camada mais caricaturesca do filme, numa performance profundamente empalhaçada, mas não menos grotesca ou menos cómica por isso, de um supremacista confundido pela luxúria. E ainda, no outro espectro, a rede de libertação subterrânea liderada pelo memorável Benicio del Toro, como Sergio St. Carlos, o sensei de karaté de Willa, que acolhe e tenta ajudar imigrantes ilegais a partir da construção de uma comunidade auto-suficiente contra as forças fascistas que não tardam em bater à porta. Ambos submundos, com as suas ambições, evocam nada mais do que a presente administração de Trump.
Porque Anderson o apresenta de forma tão lúdica, tão leve em peso, mais travessia de gato-e-rato do que odisseia, o filme nunca consegue ser um grito de força. Não é um objecto político também. Não se leva a sério o suficiente. Tudo pulsa sem sabermos se se repetirá, como a energia cinética que impede qualquer um de não se divertir nesta viagem de PTA.
Peças desmontadas, algumas ridicularizadas, e eis que se respira o ar dos nossos tempos. Tudo em nosso redor devia remeter para a urgência da repetição, da construção de mecanismos de apoio, da luta contra a apatia. Este universo paralelo é, afinal, um retrato da realidade. Um filme construído a partir de tons terra, muitos beges, cinzentos e castanhos que acompanham o desespero, a fúria, a possível comédia. Mas porque Anderson o apresenta de forma tão lúdica, tão leve em peso, mais travessia de gato-e-rato do que odisseia, o filme nunca consegue ser um grito de força. Não é um objecto político também. Não se leva a sério o suficiente. Se tanto, a sua propensão para ocupar o ecrã de personagens, todos pertencentes a grupos muito definidos e, ao que tudo indica, livres de nuances, ainda dificulta mais a clarificar o que é um país na iminência de; profundamente atormentado e assoberbado.
Finalizada a trama, após uma sequência memorável no deserto e o que vem a ser a demonstração de um recheio líquido muito pop (freiras a cultivar canábis nas montanhas!), o efeito que o filme tem é quase emoliente. Um bálsamo de entretenimento, onde tudo pode ser elevado e sacrificado. E por mais que ela lá esteja, porque está, não é um filme embeiçado pela sua complexidade. Faz apenas uso das suas várias superfícies (referências históricas, tantas) para depois se espraiar nas imagens cinemáticas que poderão ilustrar uma história sobre a origem da América e o seu legado geracional.


Muito mais curiosas são as contradições que percorrem as personagens de Perfidia e Bob, que mereciam mais espaço narrativo. Desajustada e imperfeita, Perfidia conseguiu derrubar tudo pelo que lutava com facilidade. É de reter um plano em particular quando, já grávida, empunha uma metralhadora. Imparável. Não há como a apagar. Claro está, até o bebé chegar. Uma depressão pós-parto depois (confirmada por Anderson e que pedia mais desenvolvimento do que aquela curta sequência), Perfidia rejeita a prisão da maternidade, como já Wanda tinha feito, e sai porta fora. Enquanto isso, Bob não vê as suas convicções revolucionárias a serem sufocadas por aquela bebé. Muito pelo contrário. Ele até parece aliviado por ter alguém que realmente precise dele. O facto de que ele se torna num stoner a viver no meio do bosque, tudo menos preparado para regressar ao activo, de roupão e agarrado à pequena mochila cor-de-rosa que fora uma vez da filha, sem memória para códigos (não sofremos todos do mesmo?) ou qualquer forma de localização do passado, faz dele o parente perfeito de uma América felizmente rafeira.
Tudo concluído, é só pena a leitura da carta, um desfecho tão convencional que não coincide com a ternura que ocupa o filme. Porque One Battle After Another não é apenas uma comédia sobre o desespero de um homem que tenta descobrir o paradeiro da filha para a recuperar. Como acontece em Running on Empty (Fuga Sem Fim, 1988), filme-par mais febril e mais emotivo, o amor entre os elementos de família faz-se sentir fora do ecrã. Talvez por a felicidade ser tão fugaz. Tudo pulsa sem sabermos se se repetirá, como a energia cinética que impede qualquer um de não se divertir nesta viagem de PTA. A parte mais difícil? Ser pai de uma adolescente activista – que nos deixa a caminho de… Oakland! Coincidência? Não. – está lá perto.
★★★☆☆