No conto e no filme La boulangère de Monceau (A padeira de Monceau, 1962), primeiro divertimento da colecção Six Contes Moraux (Seis Contos Morais, 1974), de Éric Rohmer, o protagonista define, por algum tempo, parte dos seus trajectos diários em função de Sylvie, uma rapariga com quem se cruza frequentemente no bairro onde mora, e com quem, no final do conto, acaba por casar.

Se o desfecho daquela justaposição de trajecto não será de todo fortuito, os encontros iniciais em que os dois apenas trocam olhares furtivos (Rohmer, 1974: 17) não passam, como bons princípios de vida, de acontecimentos absolutamente casuais: Sylvie, ao regressar a casa depois do trabalho, atravessa o parque Monceau (parcial responsável pelo título), “junto ao qual o antigo Cité-Club, um lar de estudantes, ocupava um hotel Napoleão III, demolido em 1960” (17), onde o narrador janta todas as noites.
Se o desfecho do primeiro encontro não é, como dissemos, fortuito, isso deve-se sobretudo ao voluntarismo do narrador, que se dedica à estranha actividade, mais ou menos caída em desuso nos dias de hoje, de andar pelas ruas atrás de alguém, criando as condições para um encontro mais dialogante, menos curto, menos platónico: coloca-se no meio do caminho de Sylvie, segue-a, ziguezagueante, por Monceau — não admira, por isso, que a sorte acabe por lhe sorrir.
Também outro dos narradores desta colectânea, Jean-Louis, protagonista de Ma nuit chez Maud (A Minha Noite em Casa de Maud, 1969), segue no encalço da amada, uma mulher de cabelo loiro, como Sylvie. O afinco com que Jean-Louis percorre as ruas de Clermont-Ferrand em busca de Françoise, no meio de um Inverno oposto ao fim da Primavera que cobre Monceau (Rohmer e a obsessão pelas férias), nasce de uma certeza muito prematura que o acomete: “a ideia nítida, precisa, definitiva” (67) de que ela viria a ser sua mulher.
A fé de Jean-Louis — “Recuso até chamar superstição a esta confiança quase absoluta que tenho no meu destino” (67) — é acompanhada pela consciência da necessidade da acção: “A minha fé no meu destino não me torna fatalista: estava decidido a não me poupar a qualquer esforço para triunfar” (67).
Tanto o narrador de La boulangère de Monceau, estudante de direito, quanto Jean-Louis, engenheiro, encaram os seus desejados encontros como eventos sujeitos ao domínio das probabilidades, do racional, tentando resumir e associar sorte a informação (71), e definindo em função disso a sua acção. O rapaz de Monceau, a quem a sorridente sorte e uma pequena ajuda do amigo Schmidt oferecem uma conversa breve com Sylvie, vê essa mesma sorte e Sylvie levarem, por bom tempo, sumiço. Começa então a ter de fazer contas à vida:
“Como o jantar durava trinta minutos, e o percurso de ida e volta durava três, as minhas hipóteses de me cruzar com Sylvie multiplicar-se-iam por dez. Mas o boulevard não me parecia ser o melhor posto de observação. De facto, ela podia muito bem passar por outro sítio e até — dado que eu não sabia de onde ela vinha — apanhar o metro, ou o autocarro. Em contrapartida, era impossível que tivesse deixado de fazer compras. foi por isso que decidi alargar o campo das minhas investigações até à Rue de Lévis” (20-21)
A indeterminação referida em Ma nuit chez Maud —“A probabilidade que tenho de encontrar uma pessoa de que não conheço a morada, nem o local de trabalho é evidentemente impossível de determinar” (71) — confunde igualmente o rapaz do primeiro conto:
“Seria preferível não sair do mesmo sítio, ou andar às voltas? Eu era jovem e, talvez um tanto ingenuamente, tinha esperança de ver Sylvie aparecer de repente à janela, ou sair de repente de uma loja, e, como acontecera no outro dia, dar de caras comigo. Por isso, decidi que era melhor andar pelas ruas, sem destino” (21)
É mais ou menos a partir deste momento que os dilemas morais do rapaz começam a surgir, de modo mais evidente, associados às suas digressões gastronómicas. Não por acaso, o narrador entra na área onde Sylvie circula, precisamente por jantar todas as noites no mesmo lugar. E será depois a sua falta de destino a levá-lo ao encontro do outro lado do título, a padeira.
Perante o desaparecimento de Sylvie, o rapaz vê-se imerso num período de tédio, em que a esperança de reencontrar o objecto do seu interesse é continuamente frustrada — “tenho de confessar que a espera no boulevard, naqueles fins de tarde tão quentes, era monótona e cansativa” (21). Entrega-se então a alguns passeios descomprometidos pelo mercado, em que outros estímulos se tornam mais notados:
O mercado oferecia variedade, frescura e o irresistível argumento alimentar. Doía-me o estômago, que, farto dos refeitórios, reclamava justamente, saboreando de antemão os prazeres das férias, o intervalo gastronómico que a época das cerejas podia proporcionar-lhe. (21)
O intervalo das cerejas e o prazer das férias correspondem, no fundo, ao intervalo do celibato, quando o celibatário, indulgente, leva à boca uma cereja a seguir à outra. O narrador de Monceau não tem nem a idade nem o ascetismo de Jean-Louis e os percursos erráticos pelo mercado acabam por levá-lo um dia à Rua Lebouteux, a rua da padaria.

Os sacos de papel cheios de cerejas que costuma comprar no mercado dão lugar, ruas ao lado, aos sacos de papel onde a padeira deposita os sablés que o narrador lá vai comprar, biscoitos que se tornam “a parte mais substancial da [sua] refeição” (21).
Numa padaria cheia de outras opções — leia-se, numa rua, numa cidade, num mundo cheio de potenciais correspondências amorosas, de raparigas com quem namoriscar enquanto espera Sylvie: “…só comprava sablés. Eram tão bons como os de outra padaria qualquer. São feitos na fábrica, há-os em toda a parte” (22).
Apesar da atracção que o narrador sente pela padeira — “uma morena bastante bonita, de olhos vivos, lábios carnudos, rosto afável” (22) —, não deixa de constantemente sublinhar a trivialidade do objecto do seu interesse. A rapariga (cujo nome não é conhecido por nós, nem, muito provavelmente, pelo narrador) é associada por ele a uma ideia de vulgaridade — a associação entre ela e os sablés implica que ela, à semelhança daqueles bolos produzidos industrialmente, em série, é igual a tantas outras mulheres.
O modo como este narrador navega o celibato não é exactamente leviano ou acrítico. Surge antes como o reverso de um lado seu que acha ser mais respeitável. A fixação nos sablés e na padeira de Monceau surge como o avesso da sua obsessão por Sylvie.

Os protagonistas destes contos morais, todos eles homens, têm uma concepção um tanto obtusa do amor e do desejo, que distingue entre mulheres por quem se tem interesse, com quem se tem aventuras, mas que não correspondem à promessa do casamento ou de um compromisso mais duradouro, e aquelas que respondem a esse ideal.
O narrador de Monceau diz da padeira que “ela não pertencia à classe de raparigas que me agradavam – era o menos que se podia dizer – e eu só pensava em Sylvie…” (24-25). Os violentos ataques tecidos ao longo dos seis contos da série àquela espécie de raparigas (categorização que não está isenta de um preconceito efectivamente classista) são de ordem diversa: não são dignas do rapaz com que namoram, são provincianas ou demasiado fáceis, mais baixas e mais gordas [La carrière de Suzanne (A Carreira de Suzanne, 1963)]; notáveis, raras, muito bonitas (Ma nuit chez Maud); bonitas ao ponto de se tornarem feias e irrecuperáveis [La collectionneuse (A Coleccionadora, 1967)]; provocadoras simpáticas [Le genou de Claire (O joelho de Claire, 1970)]; incultas, mas intuitivas, bondosas, mas dadas a maldades, com empregos pouco distintos [L’amour l’après-midi (O Amor, à Tarde, 1972)].
O rol de ataques revela mais sobre os seus proponentes do que sobre os seus alvos: estes são homens cheios de amor próprio, de moralidade, de timidez, de ciúmes, de impedimentos matrimoniais.
Mais do que a hipotética vulgaridade da padeira, aquilo para que Rohmer aponta é a veleidade do narrador, que desmerece a rapariga e a encara sempre como um devaneio sem sentido, muito abaixo do seu ideal, que projecta em Sylvie.
Se Sylvie é tida em alta conta — “não era rapariga que se deixasse abordar sem mais aquelas, em plena rua” (17) —, são o facto de o narrador a ver como uma rapariga difícil, e, eventualmente, o seu temporário desaparecimento, que levam o rapaz para o lado da padaria: “era uma maneira como outra qualquer não só de passar o tempo, mas também de me vingar de Sylvie e da sua ausência” (24). Ele convence-se de que “era precisamente por pensar em Sylvie que aceitava as provocações — porque eram mesmo provocações — da padeira, com muito mais naturalidade do que aconteceria se não estivesse apaixonado por outra rapariga” (24).

O interesse do rapaz pela padeira perturba-o tanto que precisa de se justificar perante si mesmo, à semelhança dos narradores dos outros cinco contos, que não suportam a ideia de gostar de uma mulher de quem outros gostam e que outros podem ter, direccionando toda a sua irritação para elas. É o caso de Adrien, personagem de La collectionneuse, que se diz “farto de raparigas esmioladas que põem toda a gente em êxtase. Farto das mulheres que temos de partilhar” (142) e para quem “a presença de mais alguém que não fosse Daniel (…) era insuportável”, precisamente pela impossibilidade de ter quem quer: “A única mulher do mundo que gostaria de ter junto de mim estava ausente” (134).
Ferido no seu amor próprio, o rapaz de Monceau alvitra a sua superioridade: “O que me chocava não era o facto de poder agradar-lhe, mas o facto de ela poder pensar que me podia agradar” (24). Está ainda distante do protagonista de Le genou de Claire, Jérôme, que, prestes a casar, diz que todas as mulheres lhe são indiferentes, ou de Frédéric, narrador de L’amour l’après-midi, para quem o casamento de alguns anos torna todas as mulheres bonitas, talvez por sentir que elas deixaram, então, de constituir um perigo para si.
Já o narrador de La boulangère de Monceau tem na padeira uma ameaça, porque ela lhe revela, contra a sua vontade, os seus próprios instintos – apesar de toda a escolha, é sempre aos sablés que ele regressa. Se diz dos bolos que são como outros quaisquer, a verdade é que lhe dão conta da sua gulodice, do seu gosto por coisas que ele próprio não considera serem de qualidade. Os sablés são a manifestação mais visível das suas vontades, uma desculpa para estar perto da rapariga da padaria, de quem gosta, contra a sua própria presunção.

A padaria é para ele um lugar onde pode entregar-se a um lado seu de que se envergonha, um esconderijo onde se protege do olhar de Sylvie, que surge quase como o seu superego: “Mas, por um lado, na rua deserta, onde eu terminava o meu périplo, podia comer à minha vontade, sem ser visto por Sylvie que, na multidão do mercado, podia, pelo contrário, surgir de repente” (22).

No final do filme e do conto, quando a reencontra, Sylvie revela-lhe que testemunhara, como bom superego, todos os seus passos, e que sabe da obsessão dele pelos “malditos sablés” (30). “São muito bons”, diz-lhe o rapaz. “Eu sei. Já provei”, responde-lhe Sylvie, que, como quase todas as raparigas destes contos, tem ainda mais manha que os rapazes.
Rohmer torna os homens o centro destes filmes, mas fá-lo deixando que sejam as mulheres a operar os fios que os levam pela rua, meio desgovernados, desconhecedores de si próprios, sujeitos muitas vezes aos interesses, à necessidade de divertimento e à gulodice delas: a padeira só começa a dar troco ao narrador para fazer ciúmes ao antigo namorado e, se a história entre os dois não terá o mais feliz dos desfechos, ao menos a rapariga pôde, antes de ir, no final do mês, trabalhar para as Galerias Lafayette, dar algum lucro à padaria e resgatar da montra, às custas do cliente namoradeiro, uma ou outra fatia de torta.
