Vestíbulo
Em meados do século XVII, o artista holandês Nicolaes Maes, discípulo de Rembrandt, pintou seis quadros que representavam cenas de escuta. Em todas elas, uma personagem (uma criada, uma dona de casa ou, num dos casos, o marido) escuta furtivamente, numa espécie de vestíbulo ou antecâmara, normalmente descendo ou junto a umas escadas, uma conversa privada que decorre entre outros dois personagens (um casal) noutra divisão da casa, visíveis num plano mais afastado.

Mais importante, cada um destes bisbilhoteiros – à falta de melhor palavra para traduzir o termo que normalmente dá título ao quadro, luistervink (em holandês) ou eavesdropper (em inglês) – dirige o seu olhar para o espectador do quadro e pede-lhe silêncio, com o dedo indicador levantado junto ao nariz, convocando-o tacitamente para ser cúmplice da sua indiscrição. As pistas iconológicas – a posição das figuras, a “mise-en-scène”, o traje dos personagens ou a icónica vassoura encostada atrás de uma porta – indiciam que se trata da espionagem de um caso de infidelidade conjugal ou de uma distracção romântica da criada (salvo num caso onde possivelmente o marido já foi apanhado em flagrante delito e é a criada quem escuta a repreensão dada pela esposa traída).
O contexto e as tradições literárias da época, onde as histórias de namoros extraconjugais e de cônjuges apanhados em flagrante delito eram recursos narrativos bastante populares, deixam até adivinhar um tom jocoso ou mesmo cómico nestas representações (vide Martha Hollander, An Entrance for the Eyes: space and meaning in seventeenth-century Dutch art, Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2002, pp. 103-112). Mas nenhum dos quadros se foca tanto no episódio de traição ou do namoro furtivo – geralmente num plano afastado – como na personagem que escuta indiscretamente, essa sim em primeiro plano e cuja acção dá título aos quadros. Isto faz com que tais quadros pareçam querer superar as limitações do meio pictórico, meramente visual, e apelar a outro sentido – a audição – ou, pelo menos, àquilo a que poderíamos chamar imaginação sonora do espectador.
O cenário doméstico e recatado dos quadros de género holandeses desta época (onde se notabilizariam pintores como Pieter de Hooch) invoca o silêncio e a tranquilidade desses espaços, reforçados pelo subtil jogo de luzes e sombras difusas que governava também os stilleven da época, mas sobretudo, neste caso específico das escutas indiscretas, pela tensão dos ruídos iminentes: os sussurros sibilantes dos amantes, o molho de chaves suspensas na cintura da dona de casa, prestes a tilintar ao mais pequeno gesto, o ranger da madeira das escadas em caracol onde os bisbilhoteiros suspendem o seu movimento, suspensão acentuada pelo pé levantado e na iminência de ser pousado num dos degraus ou no soalho. Tudo se conjuga para suscitar a atenção auditiva do espectador, ainda que diante de um exemplar dessa “poesia muda” que é a pintura.

óleo sobre painel, Guildhal Art Gallery, Londres
Pavilhão (auricular/auditório)
Durante as suas primeiras décadas o cinema foi também considerado mudo, embora retrospectivamente. Na verdade, só depois do sucesso e da conversão da indústria ao cinema com som síncrono, aos “talkies”, aos filmes falados, se passou a dizer dos filmes anteriores que eram “mudos”. Mas os filmes, de uma maneira ou de outra, já antes falavam. Fosse – mesmo ignorando agora os intertítulos – pela voz dos seus “bonimenteurs” (animadores), narradores-comentadores dos filmes, pela dos actores que falavam por detrás do ecrã ou, se quisermos até aceitar uma dimensão metafórica da locução, através da música que acompanhava a projecção ou dos efeitos sonoros produzidos algures na sala para dar voz aos objectos ou aos acontecimentos mais importantes. Talvez pudéssemos dizer, tomando de empréstimo a fórmula de Michel Chion, que o cinema era, não mudo, mas surdo, “na medida em que o cinema nos desligava [aos espectadores] dos sons reais da acção, onde não havia um ouvido para [escutar] o hic et nunc da acção” (La Voix au Cinéma, Paris: Cahiers du Cinéma/Ed. De l’Étoile, 1982, p. 17). Os personagens mexiam expressivamente os lábios e nada se ouvia que atravessasse a tela e correspondesse sincronicamente a esses movimentos da boca; o grande plano de um telefone surgia no ecrã e apenas na mente do espectador ressoava fantasmático o tremolo tilintante da campainha (eventualmente reforçado por onomatopeias num intertítulo).
Ora a nossa experiência do mundo diz-nos que tudo o que se move, tudo o que vibra, tudo o que rasga ou que choca, produz sons que chegam até nós, se reflectem ou reverberam no espaço que nos envolve. A experiência do cinema das primeiras décadas era, por isso, em parte uma estranhamente familiar, encantatória, visão de entes, de acções e de gestos cujos efeitos sonoros não eram escutados, mas imaginados. O choque do sonoro foi, por isso, grande – e para muitos decepcionante. Para alguns, o som síncrono parecia ser uma mera redundância, um efeito de realidade ilusória que rapidamente destruiria a magia das imagens animadas, degradando o cinema em mero teatro filmado ou comédia musical. E, salvo algumas valiosas e importantes excepções, a centralidade do discurso e das vozes – ou como lhe chamou Michel Chion, o “vococentrismo” – dos filmes falados perpetuou uma certa surdez ou, pelo menos, uma dureza de ouvido no cinema clássico. O que significa que, apesar do lugar central do som e da escuta na percepção da imagem cinematográfica, nem sempre os cineastas perceberam ou lhe deram esse lugar. E não se tratou apenas de dificuldades técnicas – como poderia facilmente demonstrar um filme como M (M, Matou, 1931), em plena reconversão para o sonoro, onde, não obstante a tecnologia rudimentar disponível, Fritz Lang e o seu editor de som, Paul Falkenberg (também montador), usaram o som de maneira magistral e absolutamente determinante para o filme – mas antes de falta de sensibilidade auditiva.
Aliás, a questão do som na história do cinema não deve ser reduzida a uma mera questão tecnológica. Como é evidente, as inovações – desde logo na possibilidade de sincronizar o som com a imagem e de difundir (amplificar e espacializar) o som na sala de cinema, mas também todas as sucessivas tecnologias de captação, fixação, mistura e edição do som – foram melhorando as ferramentas de que dispunham os cineastas para fazer soar e, sobretudo, para dar a ouvir melhor os seus filmes. Porém o esforço para escutar mais e melhor através do cinema dependeu sobretudo de se ter sensibilidade e capacidade para saber ouvir. E não nos deixemos enganar, pois, mesmo no contexto do “cinema sonoro”, boa parte da experiência da escuta resolve-se no âmbito da imaginação sonora. Nem sempre aquilo que julgamos ouvir tem correspondência no ecrã, tal como, muitas vezes, o que pensamos ter visto foi simplesmente sugerido ou induzido por aquilo que nos fizeram ouvir. [A este propósito, Walter Murch fala de “ressonância conceptual” no prefácio (p. xxii) à tradução americana de Audio-Vision: sound on screen (1994) de Michel Chion.]

Tímpano (exterior/interior, público/privado)
A primeira imagem é uma vista geral de Union Square em São Francisco, num zoom picado de três minutos que desce sobre um artista de rua, um mimo (Robert Shields) que segue e imita (mudamente) os transeuntes, entre os quais o personagem principal do filme, Harry Caul (Gene Hackman). Os primeiros sons adivinham-se primeiro ao longe e vêm de uma banda de rua (primeiro invisível no plano) que toca “Bill Bailey Won’t You Please Come Home”, um standard Dixieland e, logo depois, uma canção popular, “When the Red, Red Robin”, tentando fazer-se ouvir no meio do ruído da cidade e cujo som é, irregularmente, interrompido por interferências electrónicas. O plano de um sniper no topo de um edifício, armado, não exactamente de uma espingarda, mas de um microfone (shotgun) de longo alcance e de uns auscultadores, juntamente com uma mira que segue um jovem casal, sugere uma manobra de espionagem. Suspeita corroborada logo depois pelos movimentos esquivos de um homem com um aparelho auditivo e pela saída de cena de Harry, que se dirige para uma furgoneta, em cujo interior, equipado de tecnologia de vigilância, é revelado o centro da operação.
Percebe-se pelo diálogo entre Harry e o seu assistente, Stan (John Cazale), e pelas vozes que nos são dadas a ouvir, intermitentemente mascaradas pelas interferências, que o alvo das escutas é a conversa entre o jovem casal, Ann e Paul (Cindy Williams e Frederic Forrest). Trata-se do início do filme de 1974, The Conversation (estreado em Portugal no ano seguinte sob o título O Vigilante), escrito e realizado por Francis Ford Coppola e que se centra num especialista em vigilância a quem é pedido para colocar sob escuta e registar uma conversa aparentemente ilícita entre um homem e uma mulher. O contexto do encontro e algumas palavras trocadas deixam adivinhar um caso de infidelidade conjugal, mas a gravação é perturbada por muitos ruídos, pelo que nem todo o conteúdo da conversa é claro ou sequer perceptível.

O objectivo de Harry, reputado especialista nesta área das escutas e zeloso do seu trabalho, seria apenas ter uma gravação nas melhores condições possíveis (“a nice fat recording”, como responde ao seu assistente), não querendo, à partida, envolver-se no conteúdo ou nas circunstâncias daquele encontro. Mas uma série de incidentes – nomeadamente, quando Harry tenta entregar os registos ao seu cliente, o “Director” (Robert Duvall), que está ausente, a sôfrega tentativa de receptação das fitas magnéticas pelo seu assistente, Martin Stett (Harrison Ford), que o alerta sobre o carácter potencialmente perigoso daquela gravação e, sobretudo, a estranha coincidência de se deparar com ambos os protagonistas daquela conversa, embora em momentos diferentes, no edifício da empresa – deixa de sobreaviso o obsessivo personagem deste filme e fazem-no regressar imediatamente à sua acantonada oficina para tentar limpar os ruídos e resgatar o conteúdo escondido daquela conversa.
O terrível segredo (“He’d kill us, if he got the chance”) que ele consegue finalmente escutar ou que, na verdade, julga ter escutado – pois essa conversa, que também é dada a ouvir ao espectador(-ouvinte), é repetida ao longo do filme e o seu sentido parece evoluir à medida que vai sendo reproduzida, associada a outros momentos e a outras imagens e ganhando novas inflexões – põe de tal modo em causa as acções e o modo de vida de Harry Caul que o vemos, a partir daí, debater-se com a sua consciência moral católica e os seus pecados, os quais tenta aliás ver remidos no confessionário da sua igreja – lugar onde inverte o seu papel e voluntariamente se dá à escuta do confessor. A inversão dos papéis entre aquele que escuta e aquele que é escutado acaba por ser, no filme, uma espécie de penitência sem expiação do protagonista. As últimas imagens do filme mostram, numa panorâmica robótica (típica de uma câmara de vigilância), um Harry desesperado, a soprar resignado umas notas melancólicas no seu saxofone, perdido no seu próprio apartamento em ruínas, que desvairadamente desconstruiu na tentativa vã de procurar o dispositivo que aparentemente o colocava a ele sob escuta.

Labirinto (vertigens e analogias)
Na verdade, desde o início do filme parece haver uma única perspectiva ou ponto de vista, um único ponto de escuta, se quisermos: o de Harry. Não que, tecnicamente, se trate de planos de câmara subjectiva, mas aquilo que se vê ou o que se ouve durante todo o filme acompanha o espaço de percepção de Harry: mesmo quando não aparece no plano, o que se vê e o que se ouve é sempre aquilo que ele poderia ver ou ouvir. O filme foca-se no protagonista, naquilo que ele percebe ou julga perceber. Coppola pretendia, segundo disse em várias entrevistas, fazer uma espécie de estudo de personagem, centrado neste homem solitário (o realizador revelou a inspiração no protagonista de O Lobo das Estepes de Herman Hesse) que se dedica a uma actividade um pouco secreta, a de vigiar, a de escutar a privacidade alheia, quando ele próprio é obcecado com a sua.
Não há, pois, aparentemente, uma perspectiva objectiva, em terceira pessoa, sobre os acontecimentos que motivam a intriga do filme. Mesmo o picado inicial que poderia parecer uma perspectiva vertical e omnisciente sobre Union Square, é apenas o produto do sistema complexo de vigilância concebido por Harry: dois microfones de longo alcance combinados com um microfone de proximidade, máquinas fotográficas e um centro de controlo, oculto numa furgoneta disfarçada que se apresenta como ligada à indústria de espelhos. (As transparências e os reflexos estarão, aliás, presentes como marcas simbólicas do tema ao longo do filme.)
Comprometido com a premissa e apostando no efeito de realidade, Coppola decidiu também filmar toda esta cena inicial, no meio da multidão, usando várias câmaras e microfones. Walter Murch, responsável pela mistura e edição do som e pela montagem – a quem Coppola acabou por delegar tomadas de decisão tão determinantes, ao ponto de o tornar numa espécie de co-autor deste filme – confessa, no entanto, (nas famosas conversas com Michael Ondaatje) que as vozes gravadas dos actores se perdiam no meio do ruído ambiente e que teve, por isso, de regravar a conversa num bloco residencial nas proximidades muito mais silencioso, o que aliás acabou por ter consequências importantes para o modo de contar a história, às quais se voltará mais tarde (vide The Conversations: Walter Murch and the art of film editing, New York: Knopf, 2002, cap. 4). O som, mais do que a imagem, são então trabalhados, regravados, misturados para revelar e dar a ouvir aos espectadores a perspectiva, o modo de perceber, de escutar do protagonista, que não coincide necessariamente com o que realmente acontece. Com efeito, há perturbações, interferências, indistinções que são deixadas para que o público não possa saber mais do que Harry Caul, partilhando assim as suas dúvidas e incertezas.

A integração dos diferentes elementos da banda-sonora, em particular a música composta por David Shire, contribui para reforçar essa abordagem solipsista do filme. Os temas nocturnos do piano de Shire – compostos a pedido de Coppola antes sequer de a rodagem começar – dão-nos acesso à personalidade melancólica de Harry e vão empaticamente pontuando momentos dramáticos e inibidas oscilações nos seus estados de espírito. Mas o efeito foi acentuado pelo facto de, no momento da montagem e mistura do som, Walter Murch ter sugerido a modificação electrónica da música – por processos inspirados na música concreta de Pierre Schaeffer que Murch ouvira em adolescente – transformando a banda-sonora original, de referências cruzadas entre o blues, o jazz (onde o diálogo sincopado entre a mão esquerda e a direita no piano fazem quase ressoar o ragtime dos filmes mudos) e o romantismo de Chopin, numa peça electroacústica que faz, em certos momentos, corpo com os próprios efeitos sonoros diegéticos do filme.
As cenas no quarto de hotel – clímax da tensão e angústia crescentes – são exemplos paroxísticos dessa íntima relação entre os sons musicais (à partida, extra-diegéticos mas que acabam por assumir, pela natureza desta banda-sonora e pelas manipulações electrónicas, um carácter intra-diegético, que dá acesso ao humor do personagem) e os efeitos sonoros diegéticos, os quais não se limitam a produzir a indesejável ilusão de redundância, antes parecem acrescentar – por vezes anempaticamente – um comentário à cena, num processo que faz lembrar as interacções entre a banda sonora de Bernard Herrmann e os ruídos na cena (e pós-cena) do assassínio no duche em Psycho (Psico, 1960) de Hitchcock, outro dos mestres que inspirou Coppola neste filme [Blowup (História de Um Fotógrafo, 1966) de Antonioni foi certamente a mais directa inspiração, mas Psycho, Rear Window (Janela Indiscreta, 1954) ou mesmo Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), um thriller psicológico passado também em São Francisco, estiveram certamente nas cabeças de Coppola e Murch]. Os paralelismos acústicos e mesmo visuais não são poucos, começando pelo som da água corrente (no duche, no filme de Hitchcock, no autoclismo, no filme de Coppola), os gritos (sintetizados electronicamente ou enfatizados pelas cordas estridentes do violino), mas também as válvulas de drenagem (em ambos os filmes), o buraco da sanita (de onde ressurge o sangue em The Conversation) ou a cortina de casa de banho (também em ambos os filmes mas) que, neste filme de Coppola, suscita uma falsa expectativa de transparência e desvelamento.

A propósito da transparência, façamos uma digressão neste labirinto de sentidos e referências para dizer que um feliz acidente, nascido de uma falha de transcrição e, portanto, de um erro de escuta, acabou por ditar escolhas na direcção artística do filme. Coppola quis inicialmente dar ao seu personagem um nome decalcado do protagonista (Harry Haller) do romance de Hesse, chamando-lhe Harry Caller. A falta de subtileza desta primeira escolha levou-o, em vez disso, a optar por Harry Call. Porém, quando a assistente de Coppola ouvia as fitas magnéticas para onde o realizador/argumentista tinha ditado o guião, transcreveu Harry Caul. Gralha mais subtil e proveitosa do que o anterior nome, pois, em inglês, caul – e Gene Hackman soletra o nome numa das cenas ao telefone, “C-A-U-L”, para que o espectador-ouvinte não perca a metáfora – designa a membrana amniótica (o caput galeatum) que cobre a cabeça do nascituro e que é naturalmente rasgada quando este sai do ventre materno.
Ora, o protagonista desta história parece sempre envolto numa película falsamente transparente que o protege de todos aqueles que tentam invadir a sua intimidade, visualmente marcada pelo impermeável que usa durante quase todo o filme (e por outras estruturas translúcidas – na oficina, na empresa do Director, no hotel – que por vezes velam o rosto de Harry). Esta metáfora obstetrícia ganha ainda mais força quando se considera o modo de vida de Harry, todo mergulhado no universo do som e das escutas que, como se sabe, é o primeiro contacto sensorial com o mundo, no útero. O trauma do nascimento acontece quando esse contínuo rumor aquático de sons é interrompido e se rasga o véu transparente que lhe cobre a cabeça.
Na sequência do sonho, Harry conta a Ann a sua experiência da infância, quando quase se afogou no banho que a mãe lhe dava, como ficou desapontado por ter sobrevivido a esse momento em que estava todo submerso, paralisado, mas sem medo. Harry parece, por vezes, sentir a falta dessa protecção perdida – por exemplo, no momento do crime, no quarto ao lado, quando em absoluto pânico tapa os ouvidos e depois cobre a cabeça com a roupa de cama – e isso pode ajudar a compreender a sua pulsão, não escópica, mas acústica, o seu “auralismo” (o que pode ser uma versão auditiva do “voyeurismo”).
Não foi, portanto, difícil a Kaja Silverman argumentar, na sua leitura psicanalítica do filme (em The Acoustic Mirror, Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1988, cap. 3), que o vigilante sente uma atracção edipiana pela voz materna, a qual ele alucina na voz de Ann, a personagem representada por Cindy Williams. Esta começa por cantar versos de “When the Red, Red Robin” na cena da Union Square (“Wake up, wake up, you sleepy head”), pouco antes de se deparar com um vagabundo deitado debaixo de um jornal num banco de jardim, lamentando o seu destino: “Every time I see one of them, I always think the same thing. […] I think he was somebody’s baby boy and they loved him… […] and where is his mother [now] or his father or his uncles?” O paralelismo com o personagem de Harry é reforçado noutra cena em que essa passagem da conversa é repetida e o corpo do protagonista está deitado (prosternado) numa cama improvisada, na sua oficina, com Meredith (Elizabeth McRae), uma mulher ambígua, afectuosa e carente, entre a mãe e a puta, que nesse momento parece querer ganhar a sua confiança e o seu amor – penetrando sub-repticiamente a intimidade de Harry com um beijo no ouvido – mas acaba por se revelar uma espia que o trairá e roubará a gravação da conversa. Também Ann, a vítima sob ameaça, por quem Harry sente um instinto protector, acabaria por trair esse seu empenho em salvá-la, numa inversão de papéis – entre vítima e carrasco – paralela da inversão entre o que escuta e o que é escutado.

Cóclea (análise da cena auditiva)
É no ouvido interno de cada um de nós que se encontra a cóclea, uma espécie de caracol que contém o espiralado órgão de Corti, composto de células ciliadas e fibras nervosas que permitem a transdução das vibrações mecânicas em impulsos eléctricos, transmitidos por neurotransmissores ao cérebro. A sensibilidade selectiva desses cílios vibráteis a diferentes frequências torna possível a distinção entre diferentes sons e diversas partes do espectro de cada som em toda a sua variabilidade e subtileza. Segundo o psicólogo canadiano Albert Bregman, o cérebro consegue a partir desta informação e por processos de segregação e agregação (grouping) fazer aquilo que ele chama de “análise da cena auditiva” (Auditory Scene Analysis: The Perceptual Organization of Sound, Cambridge, MA: MIT Press, 1990).
Com base em padrões de semelhanças e diferenças (de altura e timbre, por exemplo) é possível isolar conjuntos de características psicoacústicas e formar “objectos sonoros” (num sentido meramente cognitivo e não no sentido fenomenológico de P. Schaeffer), aos quais correspondem à volta do ouvinte determinados eventos e fontes sonoras. O cérebro constrói assim, a partir daquela informação e organização perceptiva a “cena auditiva”: estas frequências pertencem a uma voz, as outras ao carro que passa na estrada e outras ainda podem sinalizar uma explosão ou uma sequência articulada de notas ou palavras. O facto de possuirmos dois ouvidos, num eixo de simetria, faz com que seja também possível determinar a localização no espaço das fontes e eventos sonoros.
Na sala de cinema (onde o espectador está em situação acusmática), o nosso sistema perceptivo tem de se adaptar e deixar-se iludir, na medida em que a percepção da imagem cinematográfica, pelo menos desde o cinema de som síncrono, implica a construção pelo espectador-ouvinte de uma imagem áudio-visual. Da mesma forma que, pelo fenómeno da persistência da visão, vemos imagens (visuais) em movimento contínuo, também, por fenómenos de “magnetização espacial” e “síncrese” (Michel Chion), ouvimos imagens (sonoras) no ecrã.
Como é evidente há colunas dispostas na sala – e também por detrás do ecrã, o que ajuda à eficácia daquela ‘magnetização’ – mas nós tendemos a esquecer que o som vem das colunas (as fontes sonoras efectivas) e associamos em vez disso os sons aos objectos no ecrã, em regiões específicas mas instáveis que coincidem com os vultos de luz e cor, participando assim (os espectadores-ouvintes), activamente, no processo de percepção e de ressignificação dos sons heterogéneos da banda sonora. Claro que este processo é também determinado e condicionado pelos planos, pela montagem e pela mistura de som do filme, podendo o aparecimento de objectos sonoros significativos surgir não apenas do que nos é mostrado, mas, muitas vezes, do que não o é (considere-se a importância narrativa, cenográfica e, mesmo, emocional/energética dos sons fora de campo, por exemplo, em M de Fritz Lang, já citado).

The Conversation recorda-nos a importância destes processos de construção e análise. E talvez a feliz circunstância de a mesma pessoa, Walter Murch, ter sido a responsável pela mistura e edição de som e pela montagem do filme dê ainda mais força a este ponto. Murch, que provara ter os ouvidos delicados e bem apurados desde a “montagem” do som em The Rain People (Chove no Meu Coração, 1969), também de Francis Ford Coppola, e American Graffiti (American Graffiti: Uma Nova Geração, 1973), de George Lucas, e que se tornaria famoso como o “sound designer” de Apocalypse Now (1979), de Coppola, trabalhou longos meses na sua KEM Universal com os ouvidos bem abertos e os olhos sintonizados, cortando e colando, integrando e misturando os rolos da película e das bandas de som que repetidamente ia fazendo passar e repassar pelas cabeças da mesa de montagem.
Os planos de Harry Caul a editar as fitas da gravação com a ajuda dos leitores UHER Universal 5000 e da mesa de mistura SELA na sua oficina são como espelhos dentro de espelhos numa mise en abyme que reflecte simbolicamente o próprio trabalho de Walter Murch a editar o filme e a tentar dar sentido à cena, tanto visual como auditivamente, reforçando a já referida “ressonância conceptual” entre o que é dado a ver e a ouvir.

Não deixa de ser interessante saber que esta mesma cena da edição das fitas magnéticas foi drasticamente redefinida na mesa de montagem. Inicialmente escrita e filmada para ser uma única – longa – cena, na qual Harry completaria todo o processo de edição e descoberta do perigoso conteúdo das gravações, ela foi reestruturada e separada em duas cenas: uma primeira, na qual Harry se dedica, atenta mas desapaixonadamente, à verificação e edição das gravações; uma segunda, depois do episódio da tentativa de entrega das fitas ao Director e dos encontros perturbadores com Martin Stett, Ann e Paul, na qual Harry – com a pulga atrás da orelha – procura, curiosa e comprometidamente (ainda que negue tais sentimentos ao seu assistente), conhecer o sentido perigoso daquela conversa.
O impulso e a obsessão de Harry nesta procura do segredo da conversa e, sobretudo, o sentido da frase proferida por Paul, “He’d kill us, if he got the chance”, ganharam outra força dramática e narrativa com este enxerto das cenas no edifício do Director. Aliás, só assim se compreendem as acções seguintes de Harry, desde a tímida confissão perante o seu pároco a todas as, contidas e titubeantes, tentativas para interferir no que ele – e o auditório, pois que este é levado a seguir a sua perspectiva dos acontecimentos – julga ser o desfecho criminoso no quarto 773 do hotel. Efectivamente, há um crime nesse quarto, mas – spoiler alert! – a pós-cena de homicídio, que o público não vê, nem realmente ouve, mas pensa ter ouvido, revela um crime diferente. E é, então, mesmo quase no final do filme, que a frase central é repetida uma vez derradeira, agora com uma entoação ligeiramente diferente que transforma a ênfase verbal numa ênfase pronominal: “He’d kill us, if he got the chance”.
O desenvolvimento da acção e as revelações finais do filme levam-nos a ouvir de maneira diferente aquela frase, mas, na verdade – porque o cinema é uma grande ilusão também auditiva – o som da frase que é dada a ouvir nesse momento resulta, efectivamente, de uma terceira leitura, inicialmente não prevista e descartada por Walter Murch aquando das gravações, mas recuperada no momento da mistura/montagem, para acentuar o efeito da resolução dramática do filme.

A escuta sob escuta (ou “deconstructing Harry”)
A escuta da gravação pela vítima fez com que esta se dirigisse para o lugar do crime e, incautamente, se oferecesse aos seus carrascos. Ora, quem encomendou a escuta foi a própria vítima, o que só pode significar – apesar das circunstâncias não serem explicadas – que os carrascos interceptaram a escuta e a subverteram: “The bugger got bugged”. O ‘bugger’ é obviamente Harry, instrumentalizado e colocado ele próprio sob escuta: a maior humilhação para o “melhor especialista em escutas da Costa Oeste”. E não se tratou apenas de uma maliciosa partida como a que foi armadilhada por Bernie Moran (Allen Garfield) – embora este possa ter estado envolvido de forma mais comprometida no golpe –, mas de uma inversão trágica que progressivamente destrói o ânimo – por mais contido que este fosse – e a vida de Harry Caul.
Desde o início do filme que são semeadas pistas que deixam a suspeita de que alguém espia, que alguém escuta aquele que escuta. Quando chega a casa, no dia dos seus anos, apercebe-se que a senhoria tem uma outra chave e que entrou sem autorização no apartamento para lhe deixar uma prenda de aniversário. Enquanto dá a conhecer a sua insatisfação pelo telefone, entrevê-se pelos estores da sua janela a demolição de paredes de edifícios do outro lado da rua, uma referência simbólica à destruição da sua privacidade. Quando chega a casa da sua namorada, Amy (Terri Garr) – e depois de ficar uns momentos parado junto às escadas a escutar, numa situação que faz lembrar os “eavesdroppers” da pintura holandesa – é confrontado com uma série de perguntas sobre os seus “segredos”, sobre as suas práticas (Amy: “Sometimes I even think you’re listening to me. When I’m talking on the telephone”) e com o anúncio do fim da sua relação secreta, não sem antes se assustar paranoicamente quando ouve Amy a cantarolar “Wake up, wake up you sleepy head, Get up, get up, get out of bed”, a mesma canção que Ann cantava em Union Square. Aos poucos Harry vai sendo desapossado daquilo que tem por mais estimado, a sua privacidade, a sua intimidade.

Num momento mais avançado da narrativa – depois de lhe terem sido roubadas as fitas magnéticas da oficina – quando está a lavar-se no seu apartamento, toca o telefone, aquele que ele diz a toda a gente não possuir e cujo número nunca divulga. Do outro lado, a voz de Martin Stett anuncia-lhe claramente que mantêm dossiers completos dos seus colaboradores e que ele também está sob escuta. Na última cena do filme confirma-se. Depois de todos os eventos trágicos, de ter caído em si e percebido que se enganara – na sua interpretação da conversa – e que fora usado e enganado, acompanha em desalento ao saxofone um disco de jazz que toca no gira-discos. O jazz era um dos últimos segredos da sua liberdade e da sua fantasia. Por contraste com a sua personalidade fechada e paranóica, deixava-se abandonar mais solto e relaxado – no recato do seu apartamento – aos ritmos e articulações melódicas do jazz.
Toca o telefone. Ninguém responde. Regressa à sua fantasia – Harry “confessara” a Amy que era um músico, “a free lance musician” – e logo volta a tocar o telefone. Quando atende, um registo magnético da sua performance é rebobinado e reproduzido. Depois a voz de Martin Stett assegura-lhe: “We know that you know, Mr. Caul. For your own sake, do not get involved any further. We’ll be listening to you.” Num derradeiro esforço para salvar a sua reputação, a sua dignidade, a sua sanidade, Harry usa todos os recursos que tem disponíveis para encontrar o microfone escondido.
Sacrificialmente, Harry vai desconstruindo o seu apartamento, como quem se despe de todas as suas armas e protecções: arranca cortinas, estores, desmonta candeeiros, levanta as tábuas do soalho… Por fim, procura o bug na imagem de Nossa Senhora, um objecto sagrado e intocável em sua casa, mas num acto desesperado quebra-o com violência para descobrir o vazio no seu interior, metáfora do nada absurdo e incompreensível em que se tornou a sua existência patética e profana. O abismo que se abre na alma do personagem também tinge porém insidiosamente esta última cena.

Numa especulação sobre o mistério irresolvido deste final, há quem diga que o microfone estava no único objecto que não inspecionou, a correia do saxofone que Harry usava em casa e que poderia assim garantir a escuta de todos os seus gestos e palavras. Mas esta solução é a de quem está ainda comprometido e submetido ao logro da representação. Peter Szendy recorda uma outra hipótese (de Thomas Levin), a de que o dispositivo de vigilância é a própria câmara que percorre panoramicamente, para um lado e para o outro, o apartamento de Harry, não estando, pois, no espaço diegético da narrativa, mas na técnica da narração (apud All Ears – The Aesthetics of Espionage, transl. by Roland Vésgo, New York: Fordham Press, 2017, pp. 46-7).
O musicólogo e filósofo francês alerta, no entanto, para o facto de esta solução estar ainda sob o domínio da visão, esquecendo que o que se procura é um dispositivo de escuta. De facto, as câmaras de vigilância – aparelhos cujo funcionamento efectivamente inspirou Coppola, como aliás confessou, na maneira de filmar estas cenas em casa de Harry – são normalmente surdas. Szendy convida-nos a retomar o princípio da cena, quando Harry escuta ele próprio um disco de jazz e o acompanha com um improviso. Na segunda vez em que toca o telefone, Harry ouve pelo auscultador do telefone uma fita rebobinada e, depois da ameaçadora voz que lhe confirma a escuta, ouve ainda o som do seu saxofone em contraponto ao som do disco de jazz, como se se escutasse a escutar. Escutar escutar (“écouter écouter”, na expressão de Szendy) ou a escuta encadeada (“l’écoute emboîtée”, na expressão de Chion): a escuta dentro da escuta acontece sempre que no ecrã se vê – e se ouve – um personagem a escutar. Mas nesta cena como que vemos, por mais inefável e incongruente que pareça a noção, o próprio Harry a escutar-se escutar. Somos, porém, nós próprios – enquanto espectadores-ouvintes – absorvidos nesse abismo de escutas encadeadas, ao descobrir que fazemos parte desse movimento sem fim.

Fomos convidados desde o início a partilhar o ponto de escuta de Harry, mas somos também, de certo modo, agentes duplos, nesta intriga de espionagem, a quem é permitido escutar o próprio Harry a ser escutado. E, finalmente, somos apanhados na armadilha de que éramos cúmplices, sugados pela paranóia de Harry e perdidos na esquizofonia do espectador, tão bem sublinhada pela confusão assimptótica dos planos intra e extra-diegéticos da banda sonora na panorâmica final.
Harry improvisa no saxofone umas notas desesperadas que reverberam – demasiado enfaticamente para termos a certeza de que ainda estão no espaço diegético – no espaço arruinado e vazio do seu apartamento, enquanto o piano de David Shire retoma com particular melancolia o tema principal. Não há contraponto, apenas linhas melódicas dissonantes, estratos acústicos que se apartam e nos deixam sem chão firme. Fomos apanhados, não num trompe l’oeil, mas num trompe l’oreille.
Nuno Fonseca
Investigador do Instituto de Filosofia da Nova (CultureLab) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa