É um fenômeno que se repete a cada poucos meses: um filme, geralmente americano, mas nem sempre, é lançado e recebe dezenas de elogios e aí algum amigo ou, mais provavelmente, amiga faz algum comentário menos entusiasmado, não precisa nem bater no filme, e o mundo cai sobre a cabeça dele. Sobram acusações de que a pessoa é do contra ou que ela não gosta de nada. Tem gente que parece genuinamente acreditar que eu não gosto de nenhum filme feito neste século, a despeito de publicar uma lista de melhores do ano com 100 filmes quase todos os anos desde 2009.

Nós falamos muito sobre a loucura das redes sociais e é verdade, lembro-me que muitos anos atrás entrevistei um crítico brasileiro veterano e ele me disse “Filipe, tem quem entender que quase todo mundo que manda carta para jornal é maluco” e creio que um dos desastres do jornalismo contemporâneo é que as pessoas com algum poder nele, não se toquem disso. Mas no que cabe ao meio da cinefilia, creio que este é só um lado da questão, que amplifica o problema, mas não o encerra. Creio que seria mais fácil de lidar se resumisse a estes espaços, mas existe toda uma lógica que supostamente justifica a gritaria contra qualquer comentário mais fora da curva que me interessa mais.
Uma diferença real sobre escrever sobre cinema hoje e de quando eu comecei, cerca de 24 anos atrás, é que é recorrente que as pessoas partam do princípio de que não só o consenso exista, mas que ele é algo totalizador. Se One Battle After Another (Batalha Atrás de Batalha, 2025) ou Juror #2 (Jurado n.° 2, 2024) estão com recepções bastante positivas, por consequência qualquer outra resposta ao filme é por consequência completamente fora da curva. É uma lógica que foi se instalando aos poucos no meio da crítica e, quando percebemos, ela se tornou a forma com que muitos se relacionam com a recepção dos filmes.

Esquentando a memória da recepção de filmes canônicos do começo do século, é fácil pensar em filmes como In The Mood for Love (Disponivel para Amar, 2000) e Mulholland Drive (2001), que foram genuinamente aclamados na época, mas mesmo assim receberam muitas vozes dissonantes. Essas vozes existiam num contexto onde não era estranho que um filme muito bem recebido também fosse alvo de alguns textos com senões ou mesmo bem negativos. A ideia de que o filme tal fora aclamado, e logo qualquer comentário menos entusiasmado é uma polêmica, ainda não era tão disseminada. Editores do que sobrou dos grandes cadernos culturais têm muito da culpa nisso, incapazes de ver qualquer dissenso como algo diferente de uma oportunidade de gerar engajamento e, às vezes, textos com boas ideias e considerações acabam abafados por serem apresentados como uma polêmica.
É bom que pessoas com bons olhares cheguem a reações bem diferentes da minha, porque é ótimo ler esses pontos de vista divergentes.
Poderíamos fazer observações semelhantes sobre filmes canônicos a qualquer momento. A maioria das críticas negativas a Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) e The Great Dictator (O Grande Ditador, 1940) tinha fundo político, mas a despeito disso, havia quem realmente encontrasse problemas de estilo nos excessos de Welles ou que achasse o ditador sem o brilho das comédias silenciosas de Chaplin. De fato, um dos meus maiores incômodos com exercícios críticos retrospectivos é o tique de retornar a algum texto de um crítico celebrado, digamos, por exemplo, Serge Daney sobre Apocalypse Now (1979), como representação da recepção na época, como se os reparos que o crítico fizesse indicassem que “a crítica da época não compreendeu o filme”, a despeito da recepção bastante acalorada. É um cacoete que se usa muito porque pessoas que escrevem sobre cinema adoram reafirmar suas opiniões mesmo quando elas não têm nada de radicais, e a verdade é que não existe um filme famoso ao qual não se possa buscar um par de textos de nomes ou publicações relevantes que mostrem ao menos um entusiasmo bem reduzido. Filmes, felizmente, sempre existiram no seu momento e não nas antologias históricas. É ótimo que isto também vale para os filmes novos do Paul Thomas Anderson e Jafar Panahi e seria bom às vezes fazermos um esforço de pensar o passado do cinema nestes termos.

O dissenso é ótimo e muito saudável. Eu gosto de vários filmes do Albert Serra, mas achei o Tardes de soledad (Tardes de Solidão, 2024) insuportável e bastante equivocado. Lembro-me de que o Carlos Natálio também não gostou nada, mas sei que aqui no À Pala de Walsh, o Bernardo Vaz de Castro e Fernando Guerreiro escreveram grandes elogios ao mesmo. Estes desencontros tornam o filme do Serra mais interessante, mesmo que não me convençam sobre as suas qualidades. É bom que pessoas com bons olhares cheguem a reações bem diferentes da minha, porque é ótimo ler esses pontos de vista divergentes. Uma das coisas mais chatas de ser crítico de cinema é o momento em que você inevitavelmente percebe que uma parte expressiva dos seus leitores desejam que você valide de forma “inteligente” as reações deles. Os melhores elogios que recebi até hoje vieram de pessoas que falaram alguma variação de “gosto/desgosto desse filme, mas achei que você levantou coisas interessantes”.
Eu creio que podemos traçar este momento atual com a popularização do pior site de cinema do mundo, o Rotten Tomatoes. A ideia de que reduzir os filmes a uma percentagem que ajudaria a determinar se filmes são bons ou ruins sempre foi atacada pelo que tinha de vulgarização da crítica. Menos observado é o efeito que ele teve sobre aqueles cujo trabalho gera o conteúdo do site. Pois o número também ajudou a produzir uma padronização de gosto e incentivá-la. Um dos muitos motivos pelos quais o Rotten Tomatoes é inútil é que críticos, assim como filmes, não são todos iguais e o número gerado pelo site tende a homogeneizá-los. De alguma forma, em escala menor, o mesmo fenômeno se repete em outros cantos da cinefilia. Se torna um valor quando se está próximo ao menos do consenso.
Sites de rede social como o Letterboxd ajudam a reforçar muito esta ideia. Invariavelmente obcecados com os seus próprios números (o de logs de filme, as médias que eles recebem, as múltiplas listas produzidas a partir deles) e diversas formas de ranquear filmes a textos, múltiplas variações de uma gameficação do ato de ver filmes. E é fácil observar como um dos efeitos disso é o reforço de consensos. Existem os ótimos filmes segundo a comunidade e um desejo de pertença que ajuda a reforçá-lo.
Eu mencionei no começo deste texto que os editores por vezes têm culpa de reforçar este estado das coisas, e acho útil terminar fazendo uma diferenciação sobre como as polêmicas funcionam para publicações e indivíduos. Elas são ótimas para sites e jornais, mas bem menos para quem escreve para eles. Falando por experiência pessoal, não tem nada de divertido em estar nesta posição de exceção (deve ter quem goste, há masoquismos diversos), mas geralmente é só exasperante ver as pessoas irritadíssimas com algo que você escreveu.
Um dos erros de quem está desesperado por invalidar qualquer opinião diferente da dele é assumir que quem faz isso está atrás de chamar atenção ou likes, etc. De modo geral, se é isto que se deseja, é bem mais útil estar de acordo com o consenso. Tem quem consiga cavar nichos neste nosso meio (geralmente criando suas próprias caixas de ressonância), mas é bem mais lucrativo reforçar o senso-comum e não falta quem esteja disposto a isso. A maioria dos filmes tende a combinar impulsos melhores e piores e me parece natural que olhares diferentes reajam mais a algumas partes deles. Um dos muitos problemas graves desta homogeneização é que, na sanha de defender certos filmes, termina-se por torná-los bem mais pobres.
