Show us fire, they’d say.
Shy, Max Porter
Se Kae Tempest é um wordsmith, Max Porter forja os formatos e os géneros para que essas construções linguísticas existam sem ter onde se apoiar. São esculturas sem paredes, alicerces que repensam a forma como uma narrativa pode ser contada, onde o desenvolvimento de personagens é apenas aludido, e assenta num processo colaborativo com o leitor. Literatura experimental, dizem ser, mas a força que guia Porter é aquela que há muitos séculos distingue as línguas românicas, mais fibrosas, dadas a uma melodia que em inglês não existe. Para além disso, não é só a língua que é mais quadrada como a tendência cultural se firma em centrar um objecto através dela; usá-la para aclarar o conteúdo em vez de ser nela que as imagens são fabricadas. Como criar uma ligação directa com uma outra dimensão dessa forma? Como é que o onírico se consegue anunciar sem essa liberdade? Porter perscruta todas as possibilidades do que submerge na acumulação dos vários pedaços de texto, fazendo-os até mover (literalmente) na página para figurar imagens capazes tanto de nos elevar como de nos cortar ao meio. Nas páginas de Porter, as palavras estão vivas e não são imunes à moldagem.

Shy (2023) contempla a terceira parte da trilogia de luto de Porter – Grief is the Thing with Feathers (O Luto É a Coisa com Penas, 2015), e Lanny (2019) os outros dois – sobre Shy, um rapaz de 16 anos que, armado com uma mochila grande carregada de pedras se dirige pela noite adentro, descrita como espessa, calma “like outer space”, e convidativa para alguém como ele, desesperado por “resolver” o conflito que é a sua simples existência no mundo e na escola para jovens como ele a quem deram o nome Last Chance (última hipótese). O objectivo é atingir o fundo do lago que existe na propriedade. Enquanto isso, Shy revive a sua curta vida através de uma tapeçaria de episódios, reacções, palavras ditas ou que ficaram por dizer, enquanto todos os professores e colegas repousam dentro do edifício iluminado.
Talvez por causa da sua irreverência, a obra de Porter tem vindo a ser adaptada para cinema recentemente. Grief is the Thing with Feathers teve um filme de Dylan Southern estreado na Berlinale no início deste ano (algumas palavras sobre ele aqui), e consta-se que Lanny está a ser adaptado e será produzido e protagonizado pela actriz Rachel Weisz. Quanto a Shy, quando contemplados com o desejo de filmar o pequeno livro, o escritor Max Porter e a equipa de produção, da qual faz parte o oscarizado actor irlandês Cillian Murphy (com a sua produtora Big Things Films), tomatam a decisão de não o adaptar directamente e, em vez disso, aproximar o espectador daquele mesmo reino, mas a partir de um outro ponto de vista, o de um professor, que no livro surge apenas em curtos momentos via bolhas de memórias de Shy.
Steve rapidamente se torna uma cautionary tale dos nossos tempos. A transbordar de boas intenções, acaba por neutralizar o seu peso político a partir do momento em que transfere a presunção de que o espectador em 2025 precisa de uma estrutura cimentada na linearidade e ferocidade plásticas para fazer a leitura do filme.
Daí surge Steve (2025), distribuído pela Netflix (em Portugal, foi directamente para o serviço de streaming), que não depende necessariamente da leitura do livro, mas cuja aproximação ao olhar de Shy exponencia a força do projecto que, sem isso, poderá parecer apressado quando o espectador cai naquele mundo desde logo desenfreado. Tal como o livro do qual parte, o filme nunca chega a aterrar, permanecendo em rebuliço até ao fim, muito dissonante em tom. Mas distingue-se em tudo o resto, maioritariamente no seu carácter estrutural, livre de cantos, que replica o ritmo e sentido de toque de um videoclipe da década de 1990 (o livro sugere que nos encontramos em 1994) para descrever a energia punk de um lugar muito carnal e tormentoso, ocupado por um grupo de pessoas com dificuldade em regular as suas emoções. Também se destaca por dar a Shy o que ele mais quer ser: tudo menos um white boy. Esquece-se, no entanto, que o que é fisicamente apregoado tem que ser internalizado para que o filme se torne minimamente corpóreo. Há que criar uma ideia de lugar e personagem para que nos consigamos interligar, o que infelizmente nunca chega a acontecer. Steve rapidamente torna-se numa cautionary tale dos nossos tempos. A transbordar de boas intenções, acaba por neutralizar o seu peso político a partir do momento em que transfere a presunção de que o espectador em 2025 precisa de uma estrutura cimentada na linearidade e ferocidade plásticas para fazer a leitura do filme.

O realizador belga Tim Mielants, que há muito trabalha com Murphy, desde colaborações na série Peaky Blinders a ter realizado a adaptação do conto de Claire Keegan para o cinema, Small Things Like These (Pequenas Coisas como Estas, 2024), também produzido pelo actor, aposta numa abordagem pós-moderna, câmara à mão com laivos de cinema vérité, que alternando entre a SD Betacam e o digital, filma na íntegra dentro de um só local (a parte mais fascinante de todas, um filme sobre uma casa com todos os seus atalhos e compartimentos secretos) e com um leque grande de personagens que aparecem no ecrã sem nunca o habitar. Estruturalmente, Steve prende-se a uma colagem que é surpreendentemente sequencial ao longo de 24 horas, onde agrupa as agulhas contextuais daquele mundo (o iminente fechar da escola, os avisos da orientadora/terapeuta em relação a Shy que se dirige para o lago, o lidar com a presença de uma equipa de televisão que fará uma reportagem sobre a escola) para que o colapso se faça numa linha gradual em direcção à barriga do lobo, com o caos visual previsivelmente a dar lugar a uma paragem no final. Paragem esta que se oferecerá, finalmente, à auto-destruição do professor, e deixará a ecoar a urgência da profissão há muito abandonada por governo e sociedade.
Steve sofre do problema identitário de muito cinema feito de forma independente com metas comerciais, e que não se verga ao reino mais experimental. É um projecto mais fraco em audácia do que em profundidade. E por mais que se posicione com planos inventivos que podiam ser retratos dos desenhos de palavras nas folhas de Porter, o filme apresenta o que não chega a sentir. Cinema mais enquanto desporto visual do que ofício emocional.
Pelo caminho, fornece alguns momentos de intimidade, entre professor e alunos, confessionais o suficiente para evidenciar a promessa perdida quando a linha de edição é desajeitada o suficiente para dar de si ou alguns pedaços de diálogo se revelam prova definitiva de que este se trata de um filme de actores, ali para encaixar uma das performances mais desinibidas, tão explosiva quanto empática, de Cillian Murphy na pele de um ser invisibilizado que, independentemente daquilo que vem na sua direcção, consegue fazer aquele mundo continuar em órbita. O mesmo poderá ser dito de Jay Lycurgo (Shy) ou Tracey Ullman (professora Amanda), um newcomer e uma veterana, que tentam segurar no filme com os seus próprios braços. Enquanto Steve assiste ao pathos do professor ao longo de um dos dias mais desafiadores (um espelho do cair de Shy nele mesmo no livro), o filme isola a crise do cuidador, humanizando-o, e deixando no ar as possíveis motivações de alguém, igualmente traumatizado a batalhar os seus próprios demónios, que tenta mudar o mundo todos os dias e com cada vez menos recursos. Noutras palavras, alguém que desconstrói conceitos e percepções sociais sobre a natureza humana.


Um momento em particular enaltece essa visceralidade. Numa conversa com uma das mais recentes aquisições em Last Chance, a jovem talentosa professora Shola (Little Simz), um Steve que entretanto já procedeu à descida às trevas e se encontra visivelmente afectado, encoraja-a dizendo-lhe que nenhum professor ali “tem formação suficiente ou recebe o suficiente ou é bom nisto o suficiente. Não é razão para…Não podes desistir. É tudo uma merda.” Não há como garantir o que é definível por carácter no mundo de Steve. Qualquer humano ali será capaz de qualquer coisa. A lua não brilha da mesma forma para todos os professores e para todos os alunos. O melhor de Shola ali será sempre mais impressionante. O dia-a-dia é uma prova de forças e eles estarão sempre a perder.
(…) não tem rasgo nem verbo para nos incluir emocionalmente. Cai demasiado no que compreendemos enquanto televisão, no sentido em que tudo o que quer fazer é instigar uma reacção no espectador. Para isso deixa um rasto agridoce de que está a ser reproduzido apenas para as câmaras que o filmam. É um verdadeiro produto dos nossos tempos: pensa que pode ser apenas quem aparenta ser.
Mielants quer, por isso mesmo, que o filme seja sobre toque, sobre o encontro entre as personagens e a câmara, que navega por aquela mansão. Injecta então o filme com todos os ingredientes estéticos que possam confluir com o gesto, mas pouco se infunde. Permanecemos à deriva. A câmara passa por, mas não quebra a parede. Por mais que tente, nada se integra de forma homogénea e a razão de ser de Steve não tem como não se alterar. A sua solidez foca-se no contar de uma história em vez de ser sobre como esta é contada. Cinema mais enquanto desporto visual do que ofício emocional. Especialmente dentro do domínio ambíguo do microcosmo educacional, pedia-se que se colocasse a acção de parte e se fizesse um registo detalhado (talvez até forense) do culminar do desespero, que tanto corre sem ter para onde escoar. O facto de que nos tornamos testemunhas dos momentos mais privados de Steve, sozinho e acompanhado, aproxima-nos do seu flagelo, mas não ajuda nem a desenvolver as restantes personagens (e isto inclui Shy) nem a potenciar o realismo do filme.

Steve sofre do problema identitário de muito cinema feito de forma independente com metas comerciais, e que não se verga ao reino mais experimental. É um projecto mais fraco em audácia do que em profundidade. E por mais que se posicione com planos inventivos que podiam ser retratos dos desenhos de palavras nas folhas de Porter, o filme apresenta o que não chega a sentir. Tematicamente há um oceano em ebulição, um ar abafado onde se respira com dificuldade, mas o filme não tem rasgo nem verbo para nos incluir emocionalmente. Cai demasiado no que compreendemos enquanto televisão, no sentido em que tudo o que quer fazer é instigar uma reacção no espectador. Para isso deixa um rasto agridoce de que está a ser reproduzido apenas para as câmaras que o filmam. É um verdadeiro produto dos nossos tempos: pensa que pode ser apenas quem aparenta ser. É o oposto do lirismo “sensejumbled” e torrencial de Porter. Tenta controlar o caos. Evita desafiar as imagens. Atribui-lhes um formato, e até altera a história original para a encaixar com mais credibilidade numa estrutura típica de três actos narrativos. Não há forma mais rápida de confirmar o fim da esperança no espectador.
★★☆☆☆
