To be an artist is to have your creation obey you, but as Carver points out, parenthood is the opposite of art: the created object – the child – can become instead an uncontrollable source of destructiveness.
– Coventry, Rachel Cusk
Depois de anunciado um boicote contra o festival pelo movimento BDS (Boicote, desinvestimento e sanções) antes do início da 75ª edição da Berlinale, aprontava-se uma competição e restante festival em grande medida tímidos, enquanto a neve cobria as ruas da cidade. Olhando para trás, os filmes que se distinguiram este ano separam-se naturalmente em dois grandes grupos. Um politicamente aceso da matrioska “exactificante” do filme-dentro-do-filme – Hysteria (2025), Duas Vezes João Liberada (2025), La Tour de Glace (2025) , Peter Hujar’s Day (2025), este último talvez o mais neo-impressionista de todos e um dos melhores do certame -, a posicionar emocionalmente o espectador num momento da história, balançando realidades ficcionadas, duas e três, com perícia para que o esqueleto não se desfarele. E um segundo ajuntamento que estende a mão às extremidades do comportamento humano, mas não se evidencia tendo em conta a sua natureza silenciosa e caracteristicamente implosiva: cinema como objecto temático e projecção formalista da interioridade do que é ser (ou ter sido) mãe de alguém.

Da promessa vinda do festival de Sundance, If I Had Legs I’d Kick You (2025), a surpresas como Sorda (2025), a primeira longa-metragem espanhola protagonizada por uma actriz surda, a visualização fílmica da maternidade começou a instalar-se ao longo do passar dos dias, em busca de entender como é que o motor que cria e nutre a condição humana é invisibilizado, e como é que um filho é a derradeira arte incontrolável, com infinito poder para levar o seu fazedor à loucura. Sem arrastar os pés ou tentar sequer convencer-nos, filme atrás de filme a maternidade era risografada, expondo o barómetro do que nos escapa; a vida como invólucro de um ataque de nervos anti-climático, onde as certezas não aliviam o fardo do medo.
Em jeito de namoro cinemático com as palavras das escritoras Sheila Heti e Rachel Cusk, que escreveram no presente século livros de referência que exploram exactamente como “a experiência da maternidade perde quase todo o seu significado na sua tradução para o mundo exterior” (A Life’s Work (2001) de Rachel Cusk), estes filmes dão corpo ao que é um luto pulsante ao longo da vida natural, entre uma mãe e o seu progénito. Passam pela sua concepção ao tempo passado no útero, à morte que dentro dele ocorre, ou então ao nascimento, e a tudo o que diz respeito ao elo mais primitivo que dá um salto quando a criança passa a ser do mundo, e um ainda maior, do ponto de vista do filho, quando a mãe adoece, envelhece e deixa de fazer parte dele. Como um todo, estes filmes são assinaturas-gravuras de mulheres a habitar existências isoladoras, inaudíveis aos outras, onde as suas vozes, algumas prestes a ser descobertas, outras abafadas, outras perdidas no esquecimento, nunca encontradas ou então roubadas por outrem, são por fim ouvidas.

Concepção e Nascimento
As imagens que perduram em After this Death (2025) são umbilicais. Uma mulher grávida numa caverna isolada nas montanhas, numa casa rodeada pelo bosque, num concerto num dive bar, num estúdio de música. À volta apenas rochedo e vegetação, e os poucos ninhos que existem quando chega a altura de recolher do mundo. A segunda longa-metragem do realizador-argumentista argentino Lucio Castro é o típico filme que surge sorrateiramente, todo ele uma mood piece mística e outonal a cheirar a madeira e solidão, e procede a enterrar-se com a maior das facilidades no espectador.
After this Death é o típico filme que surge sorrateiramente, todo ele uma mood piece mística e outonal a cheirar a madeira e solidão. Perguntas sobrevoam. Poderá alguém ter vivido sem ter nascido? E o que significa nascer realmente?
A produção americana pode ter passado despercebida em Berlim (na secção Berlinale Special Gala), mas é de uma estranheza fascinante, singular na forma como se codifica de psicodrama hitchockiano quando é, na verdade, uma examinação esotérica sobre a crise existencial de uma mulher argentina (Mia Maestro), uma artista de voz a viver no Hudson Valley prestes a ter o seu primeiro filho, que se apercebe que usa a voz como matéria-prima, mas ainda não encontrou a sua. A ajudá-la a chegar a essa conclusão, Isabel conhece um músico com um seguimento de culto (Lee Pace) numa das suas caminhadas nas montanhas, e começa a ter um caso amoroso com ele. Até que ele desaparece, o marido americano dela (Rupert Friend) regressa de mais uma viagem de negócios e ajuda-a a retirar toda a parafernália de bebé da casa depois de o bebé ter morrido à nascença.
Quando ela volta a ver o músico, ele pergunta-lhe pelo bebé. Na comunicação com o mundo real, com a sua solidez e dor e desejo, um outro reino é tacteado por Isabel via uma atracção pelo lirismo da música, que a alerta para uma necessidade ardente. A arte enquanto veículo para chegar ao que se encontra para lá do nosso entendimento. After this Death é o raro exemplo de como um filme pode ser apaziguador e assombroso ao mesmo tempo sem perder, do início ao fim, a espessa camada do magnetismo que o cobre. Como a sua localização remota e verdejante, é um filme que contempla um mundo dentro de outro, onde um não sabe necessariamente da existência do outro. Perguntas sobrevoam. Poderá um alguém ter vivido sem ter nascido? E o que significa nascer realmente? Basta ser do mundo? E quantos mundos é que existem?
Mother’s Baby perfura a experiência inicial da maternidade segundo um descer às trevas, com intenção de ser uma máquina de empatia.
De mãos dadas com estas questões e com a instalação da distorção (sobre)natural, o austríaco Mother’s Baby (2025), de Johanna Moder, um irmão de Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968) do séc. XXI, ataca e mostra as garras de uma mãe enganada pelo sociedade, pelos profissionais de saúde e até por ela mesma. Quando Julia (Marie Leuenberger), uma talentosa maestrina, não consegue engravidar, visita um especialista de fertilidade, o bizarro Dr. Vilfort (nunca Claes Bang foi tão rotulado), que lhe garante uma gravidez. Assim acontece. Mas depois de um trabalho de parto profundamente traumático e o desaparecimento do filho para tratamento urgente sem que esta o pudesse sequer ver no momento do nascimento, a relação de Julia com a sua maternidade começa a degradar-se. Tudo piora quando um bebé saudável lhe é entregue no dia seguinte, um bebé que dorme várias horas seguidas, não chora e parece ser imune a ferimentos, até os mais graves.

Envolto na plasticidade do filme de género (entre o thriller e a distopia sci-fi) sobre o terror da depressão pós-parto e o processo de adaptação a uma vida irreconhecível, Mother’s Baby perfura a experiência inicial da maternidade segundo um descer às trevas, com intenção de ser uma máquina de empatia. Tal como acontece no filme icónico de Polanski, também este rasteja e nunca se encontra longe de um lugar onde o perigo prolifera. Através do ponto de vista de uma mulher cada vez mais consciente de que o seu corpo, primeiro, e o seu filho depois, não lhe pertencem. Julia não reconhece o bebé enquanto seu, o que sugere de certa forma que a maternidade começa aí, no reconhecimento do bebé enquanto seu, antes de este ser tocado pelo mundo exterior.
Encontrado na Competição do festival, o filme de Moder acaba por cometer o erro comum de levar o que é uma verdade psicológica para um domínio literal, com a catarse a ser materializada por um objecto para conforto do espectador. Ainda assim, a ilustração labiríntica da falta de agência à qual uma mulher se vê forçada a aceitar, assim que decide ser mãe, confirma a força do filme. E se isso não for suficiente, as palavras da jovem parteira, que desincentiva a amamentação e aparece em casa de Julia sem avisar para dar um biberão ao bebé, são. Ainda agora a ouço: “Porque é que não se satisfaz em ser a mãe de um bebé?”

Crescimento
Continuando o percurso do ponto de vista materno, o espanhol Sorda, de Eva Libertad, que expandiu a sua curta-metragem com o mesmo título, nomeada para o Prémio Goya em 2023, é dos acontecimentos mais felizes da Berlinale deste ano. Sorda situa o agudizar do pânico de Mother’s Baby, focando-se num conflito igualmente difícil de formular, uma outra falta de ligação entre mãe e filha, mas neste caso devido a uma causa maior, externa à maternidade. Encontrado no canto do Panorama, cuja curadoria se evidenciou em particular este ano, a primeira longa-metragem de Libertad mergulha no mundo de Angela (Miriam Garlo), uma mulher surda que engravida contando que o parceiro ouvinte, Héctor (Álvaro Cervantes), estará presente para as complexidades do que significará o processo de crescimento do filho de ambos e da família que em conjunto serão.
Sorda pensa na maternidade primeiro como uma mudez causal, incapaz de comunicar o que sente, e depois um processo de constante reajustamento de expectativas que anseia a equalização do ruído, seja este literal ou não.
Um drama estruturalmente convencional, Sorda segue este casal antes, durante e depois de terem o primeiro filho, enquanto retém os olhares e os gestos e tudo o resto que fica por dizer até ser tarde demais para pronunciar, e é tão luminoso como doce, até nos momentos mais disruptivos. A tragédia de Angela é de que vive no mundo dos ouvintes (os pais, parceiro e até a filha), um mundo que não a ostraciza, mas também não se lembra dela. A acrescentar a isso, aos olhos de Héctor deixa de ser a sua parceira para ser apenas a mãe da filha dele, e até disso este se tende a esquecer. Há momentos marcantes nunca antes vistos em cinema, como é o caso da desorientação de Angela durante o parto criada pela equipa médica, onde a falta de inclusão é dolorosa de testemunhar.
Mas não é sem esperança que o filme se desenrola. Enquanto localiza a dor daquele que vive perdido na tradução, uma limitação invisível, pensa na maternidade primeiro como uma mudez causal, incapaz de comunicar o que sente, e depois um processo de constante reajustamento de expectativas que anseia a equalização do ruído, seja este literal ou não. O desenho de som situacional no filme que ora abafa e neutraliza o som, ora o traz de volta, ajuda a expôr com detalhe o trabalho de investigação feito pela realizadora, depois de ser tocadapela história pessoal da irmã, a mesma Miriam Garlo, quando esta lhe disse que gostava de constituir família e lhe confessou “todos os receios, medos e expectativas sobre maternidade num mundo feito por e para ouvintes. Aplica-se o que Riz Ahmed disse ao The Guardian na altura da estreia comercial de Sound of Metal (2019): “A comunidade surda ensinou-me o que significa ouvir”. Quando o desejo de que a filha partilhe a surdez com ela deixa de ser uma realidade, Angela luta e continuará a lutar não só para estabelecer uma relação com a filha, mas mais ainda para que o mundo que só entre elas existe seja intimamente habitado.

Par com a luminescência de Sorda, Zikaden (2025) é cinema estival, sereno e cintilante suportado pelo trabalho dos seus brilhantes actores (Saskia Rosendahl, Nina Hoss, Vincent Macaigne), que faz fluir o mistério que nos quer segredar sem precisar de recorrer a quaisquer alegorias ou lugares-comuns narrativos. Uterino como After this Death, na sua ligação com o mundo natural e os ninhos humanos criados no seu meio, Zikaden, também no Panorama, volta a juntar a cineasta Ina Weisse e a actriz Nina Hoss depois de Das Vorspiel (A Audição, 2019). O filme foca-se na amizade desenvolvida entre duas mulheres, Anja, uma mãe solteira muito jovem a fazer o possível para suportar a filha, e Isabell, uma agente de imobiliário luxuoso sem filhos, cujo casamento esmoreceu e se vê encarregue de encontrar cuidadores para o pai, um reputado arquitecto, depois do seu acidente vascular.
Com Zikaden, Ina Weisse acaba a esfumar o individualismo da maternidade para que as nossas mães sejam as mulheres que querem estar por perto para nos amar. It takes a village.
Quando as duas mulheres se conhecem, o tom do filme estica-se para o possível psicodrama, com uma revelação que circunda a jovem mãe e o tempo passado ali naquela vila. Mas ainda antes disso, Zikaden leva-nos para um lugar remoto e comunitário, onde o sol queima ao bater na cara e se adormece com as janelas abertas ao som de cigarras, e onde Isabell se pode queixar: “Os meus pais agem como se a vida nunca acabasse”. Num filme preocupado com a feitura das nossas casas, do que escolhemos que nos cubra até morrermos, este indaga: como é que a imaginas? Como é que imaginas o lar onde poderás crescer? Ina Weisse acaba a esfumar o individualismo da maternidade para que as nossas mães sejam as mulheres que querem estar por perto para nos amar. It takes a village.
O contrário poderá ser visto em If I Had Legs I’d Kick You. Sem alívio por perto, Linda quer que tudo acabe o mais rapidamente possível. O filme-sensação produtor de ansiedade de Mary Bronstein é um sorvedouro de vida. Completa o descer às trevas ocorrido em Mother’s Baby, tanto cronologicamente como em termos de dimensão, mas deixa o espectador preso na impossibilidade de sentir seja o que for. Enquanto Mother’s Baby permanece afincado num género, com o seu labirinto formado de portas que se vão fechando à volta de uma mulher à procura de respostas para as suas suspeitas, If I Had Legs I’d Kick You dá-se em totalidade à aspereza cinemática com pitadas tonais da comédia frenética onde Rose Byrne normalmente brilha à mistura – actriz de Bridesmaids (A Melhor Despedida de Solteira, 2011). Este labirinto é uma espiral tsunâmica que já roeu a personagem principal antes sequer de a conhecermos.
If I Had Legs I’d Kick You podia ser cassavetiano em vez de safdiano, se a personagem se entregasse ao seu colapso toda e completamente.
Linda (Rose Byrne) é uma terapeuta deixada sozinha por longos períodos de tempo pelo marido com uma filha que padece de uma doença misteriosa, que a obriga a ser alimentada por um tubo de alimentação. Enquanto isso, o tecto da casa onde vivem cai, torna-se um buraco vazante (metáfora para a psique de Linda?) o que a obriga a mudar-se para um motel. Ao mesmo tempo, um ultimato é feito para o próximo passo do tratamento da filha que implica que esta ganhe muito peso em pouco tempo, uma paciente de Linda desaparece, e o seu terapeuta, um maravilhoso Conan O’Brien, só exponencia a exasperação. Mas isto não será suficiente para perceber onde nos encontramos. Num filme sobre uma mulher forçada a cuidar de todos menos dela mesma, Bronstein não nos deixa ver o objecto principal da sua destruição, a filha. A presença da jovem rapariga é apenas indicada pela voz. Para além disso, os enquadramentos de câmara também não respiram. São apertados, omnívoros, não contemplam contexto e sufocam a visão. E a banda sonora está lá para que a ouçamos, para que nos sintamos movidos pela sua instrumentação.
Seleccionado para a competição da Berlinale, onde Byrne arrecadou o Urso de Prata de Melhor Actriz, If I Had Legs I’d Kick You podia ser cassavetiano em vez de safdiano, se a personagem se entregasse ao seu colapso toda e completamente. O facto de que isso não acontece, nem poderia, ou não seria este um retrato em movimento da maternidade, coloca o filme num lugar de auto-anulação, estacionado num vazio que é, no final de contas, precisamente a representação do pesadelo daquela mulher. Por um lado incapaz de viver uma vida onde um futuro não pode ser imaginado, e ao mesmo tempo incapaz de não a viver, porque conduzida pela sua condição de mãe, saturada em culpa por desejar uma filha diferente, saudável. “I’ll be better”, ouve-se em eco. Não é esse o grito aflitivo da maternidade?

E quando a mãe desaparece? O luto completa a visão. Ao contrário do que acontece no paraíso gelado de Tour de Glace, onde Lucile Hadžihalilović regressa à exploração do olhar infantil com a história de uma rapariga orfã que vê os anos passarem num orfanato sem ser adoptada, já sem esperança de encontrar uma figura materna, The Thing with Feathers é um forjar de caminho em frente de dois jovens rapazes que perdem a mãe e têm que lidar com o colapso do pai, que materializa um corvo que só ele vê. Porque Dylan Southern está ao serviço de Max Porter, que escreveu o livro no qual o filme se baseia, Grief is the Thing with Feathers (2015), que é de uma crueza e inteligência emocional desigual, o filme procura a visceralidade no que é térreo e contemporâneo. Assim o imaginei também. Outros críticos com quem me cruzei falaram-me da sua fraqueza emocional, de como o passado de Southern como documentarista musical possa ter manchado o filme com jump cuts e demais “armamentização”. Eu diria que o contrário é verdade no filme de Southern, que canaliza o pathos segundo a qualidade dilacerante da prosa poética de Porter, onde se pára e arranca e pára outra vez com mais determinação, e onde a fantasia tem que atingir a potência criativa ao ponto de se tornar indistinguível da realidade. Assim é a dor.
The Thing with Feathers foi o filme onde mais marcadamente se viu embebida a presença materna, estando esta fisicamente ausente mas presente em todos os gestos, dos mais ternos aos mais enlouquecidos.
Como tal, é em The Thing with Feathers, outro enviado de Sundance para Berlim (Berlinale Special Gala), com Benedict Cumberbatch num dos seus melhores papéis a fitar a câmara com olhos transparentes e penetráveis, que se vê uma das melhores sequências explicativas do que será viver sem uma figura materna. Certo dia, porque a mãe estava doente e ele queria que ela pudesse descansar, decide ir ao parque com os filhos. Mas era Inverno, dia nevoso aliás, e como nos diz, a uma sala cheia de pessoas a chorar: “eles tinham frio” e queriam voltar para casa. Os casacos não estavam apertados correctamente, eles não estavam confortáveis. “Este seria um ensaio geral que ditaria o resto das nossas vidas”. Quando lhe perguntam também se dependia muito da parceira, é imediato como cai em si mesmo para dizer que dependia dela para absolutamente tudo. Abstracto o suficiente para nunca enfraquecer as camas de palavras recitadas de Porter, The Thing with Feathers foi o filme onde mais marcadamente se viu embebida a presença materna, estando esta fisicamente ausente mas presente em todos os gestos, dos mais ternos aos mais enlouquecidos, dos que nunca a deixarão morrer.
Adolescência

Os impulsos de Drømmer (2025), o último filme (depois de Sex e Love, ambos de 2024) da trilogia do escritor e cineasta Norueguês Dag Johan Haugerud, responde ao eco de If I Had Legs I’d Kick You e é tão feliz como The Thing with Feathers é desolador. As condições são outras. Ao contrário de Linda, a mãe solteira de Johanne (Ella Øverbye), uma adolescente de 17 anos que se apaixona por uma professora e escreve um livro sobre este amor não correspondido, tem a sua mãe, também ela solteira, como rede de apoio. De todos os filmes apresentados neste ensaio, o vencedor da competição do festival deste ano é um filme saudável, em composição e formato, nutritivo também, porque as três gerações de mulheres que, sozinhas, o fazem mover não estão lá em função de uma premissa, elas existem para lá dela.
Em Drømmer, Haugerud retrata o que acontece quando a vulnerabilidade é partilhada e a maternidade se espelha na capacidade da partilha das nossas histórias pelas gerações.
Drømmer é um bom exemplo do cinema que nos fala da complexidade da adolescência com muita leveza, sem que os momentos tensionais das alterações próprias daquele momento no crescimento de qualquer um tenham que ser transpostos e digeridos cinematicamente. Haugerud prefere o uso das palavras, em diálogo e narração, a cobrir o filme como se num universo alternativo estivéssemos e o cinema não fosse feito de luz, sombra e silêncio, mas de imagens povoadas por palavras.
A partir do fascínio dos livros, os livros enquanto identidade, escape e destino – “Eu leio para ter um lugar para ir. E para chegar a mim mesma.” -, e os livros enquanto a cola que confirmarão a união entre a avó (também ela escritora), a mãe e a filha num momento de descoberta para Johanne, Haugerud retrata o que acontece quando a vulnerabilidade é partilhada e a maternidade se espelha na capacidade da partilha das nossas histórias pelas gerações. Uma mãe e filha chorosa enroladas uma na outra no sofá. Uma conversa num café, em que a mãe de Johanne explica à professora dela: “Quando reajo assim, é em nome de Johanne”. A filha é um ser individual ao dela, mas ela abraça-a, física e emocionalmente. Dois corpos reincorporados, mas não enfaixados. Como se fosse isso que significa nascer, voltando a After This Death: ser visto e reconhecido. A mulher que também é mãe a tentar compreender a experiência da filha, com e por ela, e a filha a saber da mãe e da avó, da sua solidão e demais inseguranças, e a escolher confiar-lhes os seus segredos mais profundos.
Juntos, estes filmes penetram e afinam o que é o trabalho de uma vida.