Não há misticismo como aquele associado à existência de uma borboleta. Há mais de oito mil anos que sociedades ao longo do mundo lhe atribuem papéis extraordinários, codificados sobrenaturalmente. De acordo com o folclore hispânico, as borboletas migradoras levavam consigo as almas dos antepassados que as visitavam na vida depois da morte. A primeira longa-metragem da realizadora Peruana Tatiana Fuentes Sadowski quer, como o seu título indica, activar a memória dessas borboletas e tocar nessas almas ancestrais que por elas são transportadas. Denso e radical – no sentido em que Angela Davis considera algo radical, “um descer à raiz das coisas para as compreender” (Women, Culture, & Politics, 1989) -, La memoria de las mariposas representa, gramaticalmente, o líquido dourado que banha os objectos de investigação cinemática no tempo presente. Parte arquivo, parte conjectura, parte imaginação, procura ser uma luz brilhante na escuridão, no que se perdeu e não ficou registado na História.

Apresentado na secção Forum, da Berlinale deste ano, onde arrecadou uma menção honrosa do prémio de melhor documentário e o prémio Fipresci, esta co-produção peruana e portuguesa (pelas mãos da Oublaum Filmes), junta arquivo encontrado (imagens processadas manualmente e fotografias antigas) a imagens do tempo presente filmadas a Super 8 preto-e-branco, para se lançar à tarefa impulsionada por uma fotografia de 1911 de dois homens indígenas de mãos dadas, Omarino e Aredomi, escravizados pela empresa de borracha La Casa Arana, e levados para Londres no início do séc. XX pelo cônsul britânico Roger Casement (nascido na Irlanda) com o propósito de demonstrar as atrocidades cometidas. Mas este partir à procura não passa só pela exposição desse arquivo e sucessiva criação do ensaio fílmico que nos quer contar a história chocante que acompanhou a extracção, produção e comércio do que foi o “holocausto da borracha” no séc. XIX e inícios do séc. XX na América Latina, que escravizou povos indígenas até quase os dizimar. Tatiana Sadowski parte para a construção do que não existe, e trata da materialidade da memória como quem decanta essências para compor uma fragrância. É uma forma de alquimia, um acto de magia. Nas palavras da realizadora, “eu soube, desde o início, que contar esta história iria para além do que é imparcial e implicava comunicar com forças incontroláveis.”
Tatiana Sadowski parte para a construção do que não existe, e trata da materialidade da memória como quem decanta essências para compor uma fragrância. É uma forma de alquimia, um acto de magia. O intuito é incisivo, mas também transborda em sentimento. É tentativamente revolucionário. Abrir o portal e trazer os mortos “ou outros fantasmas” de volta para a terra dos vivos.
E o que se encontra pelo caminho poderá ser mais avassalador do que recorrer à memória do arquivo e invocar uma narrativa que transforma o silêncio da opressão daqueles povos em acção e movimento. Na desconstrução da visão colonial, é dada agência à voz indígena que é reabilitada e estabelecida em primeiro plano. Mas como o fazer realmente? “Estas imagens não mostram o que vou relatar. Será necessário emprestar outros corpos.”, ouve-se no início do filme. Nas imagens encontradas, muito se esconde, mas também muito se encontra. Os corpos que nelas estão são corpos observados e perseguidos que não aceitaram nelas existir. Então a realizadora recorre não só a cartas mas também a sonhos, e visita os lugares onde eles foram avistados. Para além disso, tem uma compreensão do arquivo enquanto matéria artesanal que deve ser reconstruída (para além de efeitos visuais digitais, a pintura das imagens). Num momento memorável vê-se um grande corpo de água ficar gradualmente mais vermelho até correr apenas no ecrã o vermelho do sangue daqueles povos. Também é chamada ao filme a história pessoal da realizadora que, depois, se enleia com o olhar do espectador.
Em La memoria de las mariposas, a imensidão da Amazónia e a tarefa de tornar visível o que ali aconteceu coloca-se lado a lado com a imersão enquanto única hipótese que o filme tem de se apresentar e de ser digerido. Através da estreita colagem de pequenas peças repetíveis ao longo do filme (entendida como pontuação activista), todas pensadas sensorialmente e sempre dentro de si mesmas, deixa de haver espaço para qualquer distância. Rapidamente o filme se faz projecto artístico. E é aí que surgem algumas das questões, que devem ser colocadas: não estará Fuentes também a fazer uso de Omarino e Aredomi em prol de si mesma? e não são as mesmas estruturas usadas para esta investigação elas mesmas “coloniais”, no sentido em que a própria noção de “descoberta” é um conceito exótico que sublinha a necessidade de produção artística?

Embrulhada num sono reparador, daqueles que se dão especialmente em festivais de cinema e com o espectador acordado sentado na sua cadeira, as palavras da escritora inglesa Lola Olufemi (Experiments in Imagining Otherwise , 2021) correm pelos meus olhos: “O arquivo, com as suas sombras e falhas, é uma invenção colonial na sua consistência narrativa.” Estando Sadowski consciente disso, e numa tentativa de descolonizar o seu olhar, apresenta uma hibridez cinemática via trabalho de retalhos, tecidos variados que normalmente não se uniriam com naturalidade. Seguir as pegadas de Omarino e Aredomi: o passado e o presente, o factual e o imaginado. Conclui-se que a realizadora não está tanto a narrar como a coser todo este material num corpo. O intuito é incisivo, mas também transborda em sentimento. É tentativamente revolucionário. Abrir o portal e trazer os mortos “ou outros fantasmas” de volta para a terra dos vivos.
O filme revela-se não só como uma viagem literal, que fomos vendo acontecer, mas como o estabelecer de uma memória ocular de um lugar e das suas pessoas. Não subimos a uma montanha exactamente. Mas uma é reunida no processo. Outros conseguirão vê-la à distância.
Na sua última parte, o filme é “dado” aos testemunhos de habitantes locais que sobreviveram ao genocídio, que supõem o que poderá ter acontecido àqueles dois homens. Quando aí chegamos, já depois de embalados e caídos dentro do filme e do seu remoinho fibroso, dos sons elementais da Amazónia e dos seus flickers, cores e texturas, tal e qual as asas de uma borboleta, o filme revela-se não só como uma viagem literal, que fomos vendo acontecer, mas como o estabelecer de uma memória ocular de um lugar e das suas pessoas. Não subimos a uma montanha exactamente. Mas uma é reunida no processo. Outros conseguirão vê-la à distância.
É segundo esse testemunho que agora escrevo. Poucos foram os filmes que vi na Berlinale, este ano, com o mesmo peso. Enquanto nos deixa a debater sobre questões tão pertinentes como o facto de o cinema-documento acabar (ou não) por criar o que rejeita, a construção das imagens mentais provocadas pelo filme criarão tantas mais – e tudo em prol do gesto de resistência poética que é o colapso da narrativa como a conhecemos. La memoria de las mariposas vive.