Dreams give us voices, visions, ideas, mortal terrors, and departed beloveds. Nothing counts more to an individual, or less to an empire.
in Martyr!, de Kaveh Akbar
Dreams (2025) é decididamente um filme de Michel Franco, e como tal, alimenta tanta exasperação como admiração. Curioso pensar na audiência tão desigual que Franco e a sua actual musa Jessica Chastain atraíram na competição da mais recente edição da Berlinale, onde se deu a estreia mundial do filme, e fazer a ligação ao que o realizador disse à Senses of Cinema: “cada realizador tem a audiência que merece”. Desta vez, no que é capaz de ser o filme mais afirmativo de Franco na sua qualidade de auteur, voltamos à intocável e gélida mise en scène, mais espinhosa que o normal, com cantos de porcelana mais afiados, estabelecida dentro de uma estrutura narrativa tradicional, no seu modo de fábula acérbica, profundamente pessimista (ou talvez deva dizer realista?) que volta a mergulhar no mundo dos super ricos. Como bónus, carrega consigo uma nota moralista sobre a wokeness da sociedade actual, neste caso a Americana, que entrega com um sorriso amarelo na cara. Depois de se notar uma certa maciez agridoce em Memory (Memória, 2023), um excelente filme, expansivo em maturidade e desenvolvimento de personagem, Franco regressa ao México e ao que parece ser a mesma rua, a mesma casa de Nuevo orden (Nova Ordem, 2020), e no final a mesma causticidade, o mesmo verde a correr nas torneiras.

Muito se fala dos planos finais de um filme de Michel Franco, mas importantes são os iniciais na forma como nos dirão sobre como Franco se propõe a enganar-nos. O encontro com este filme no seu primeiro plano é especialmente doloroso. Dreams quer-nos na travessia dos que tentam a sua sorte e passam a fronteira do México dentro de carrinhas sobrelotadas, corpos a cair de exaustão, subnutridos e desidratados. Tudo para depois cairmos no mundo intercalado dos Americanos liberais super-ricos na América de Trump e da sua filantropia pelas artes num conto de fadas do “bom” mecenas que se quer redimir do poder que tem ao seu dispôr. Porque se trata de um filme de Franco, estas duas parcelas unem-se politicamente num comentário torrencial sobre a natureza humana, enquanto o cineasta escarafuncha a dualidade da temática.
Aqui, Fernando, um talentoso jovem bailarino mexicano, interpretado pelo bailarino Isaac Hernández, vive um caso amoroso com Jennifer McCarthy (Jessica Chastain), uma empresária abastada radicada em San Francisco, que gere os vários projectos relacionados com o mundo artístico através de um fundo de investimento co-criado com o irmão (Rupert Friend) e ligado à empresa milionária do pai (Marshall Bell).
Franco volta à sua habitual inércia, rejeitando quaisquer flares e artifícios, e apostando na economia e no minimalismo cerebral. E os olhos do espectador recusam-se a piscar por meros instantes que sejam. Mas uma coisa é garantida. O mesmo que pode dar retira, e destrói como nenhum outro. E Dreams analisa esse poder e o abuso dele.
Presente para a relação entre um cidadão ilegal e a mecenas abastada que investiu numa escola de dança na cidade do México onde os dois se conhecem, Franco deleita-se em decorar o filme e a sua actriz principal da forma mais opulenta e ostentosa possível. Dos espaços visitados aos carros e roupa usada. E nunca em momento algum vemos Jessica Chastain hesitar. Ao contrário de Sylvia em Memory, uma sobrevivente despida de quase tudo, Jennifer é alta e impenetrável na forma representativa com que se conduz. No contexto da competição da Berlinale, partilha o palco das divas do gelo com Marion Cotillard (em La Tour de Glace, 2025). Ela é o poder reencarnado, em todos os aspectos; revigorante ver a vida sexual de uma mulher ser assim tratada no grande ecrã. E Chastain interpreta-a como se esta fosse capaz de violar um outro corpo só fixando o seu olhar nele.
E como se isso não fosse suficiente, Franco volta à sua habitual inércia, rejeitando quaisquer flares e artifícios, e apostando na economia e no classicismo cerebral. E os olhos do espectador recusam-se a piscar por meros instantes que sejam. Estamos presentes para o pior. Resta apenas saber como esse horror se desdobrará. Mas uma coisa é garantida. O mesmo que pode dar retira, e destrói como nenhum outro. E Dreams analisa esse poder e o abuso dele. Como já aqui tinha escrito no passado mês de Julho, “A vida tem tendência a alinhar-se aos filmes de Michel Franco.”

Independentemente do que possam dizer de Franco – com a anomia da visão do próprio, e a indiferença a perpetuar possíveis cenários de violência e proliferar preconceito em vez da sua desconstrução –, Dreams toca na desigualdade mundial através da trama imigratória como poucos filmes, explorando os vários fios, muitos deles invisíveis, que são puxados e agarrados e colocados à volta do pescoço de apenas alguns na luta de classes. No entanto, torna-se ainda mais efectivo na forma como aponta para a crueldade do racismo dissimulado e do ódio étnico. Ao explorar a relação do Eu com o mundo, numa primeira instância, pode depois abrir-se à relação interpessoal entre aqueles que nunca poderão partilhar a mesma experiência humana.
Essa fricção em toda a sua sobriedade torna-se um vírus contagioso num prato de petri, sendo o desenvolvimento de personagem tão parco, e desenhado em bolhas estereotipadas a partir das quais é construído um quadro psicológico das motivações de cada personagem. Fernando é um indivíduo desprotegido com um talento nato. Ele não tem controlo das suas circunstâncias e das do sonho que persegue. Jennifer, uma mulher julgada especialmente aos olhos do pai e irmão devido à sua infertilidade que poderá ou não ter causado um divórcio no passado, vive segundo a matriz de que consegue escapar à vulnerabilidade que aprisiona Fernando.

Se Franco falha em Dreams, é porque nos fala em Americano. A metáfora é bastante óbvia. E no desmascarar da hipocrisia do que é woke (tendencialmente performativo, especialmente pela parte das empresas), um movimento que visa vingar comportamentos purulentos que se manifestam de formas insidiosas há muito enraizadas no tecido social, alguns poderão até achar que Franco corre o risco de fazer parte desse conservadorismo, o que pode atraiçoar a planura do filme e complicar o olhar.
Impressionada mas frustrada com a provocação, não tinha a certeza no final do filme do que o cineasta esperava que retirássemos dali para lá do seu habitual muito bem conseguido espelho de realidade distópica estabelecida no nosso quotidiano, especialmente tendo em conta a restante morna competição ao Urso deste ano. Até que, no comboio depois do filme estou presente para uma troca de impressões entre duas raparigas. Debatiam-se sobre o amor impossível na terra das oportunidades, uma espécie de Romeu e Julieta dos nosso tempos. A olhar pela janela molhada do comboio, vejo na paisagem glacial nocturna de Berlim que talvez Franco saiba exatamente o que está a fazer.