It is a world without history. Not a world without a past.
A vida tem tendência a alinhar-se aos filmes de Michel Franco. Talvez por estes serem feitos da dureza do mesmo tecido. No momento em que escrevo este texto a internet inunda-se de ensaios e artigos de opinião, já para não falar das muitas newsletters de escritores, em resposta à chocante revelação de Andrea Skinner, filha da escritora Alice Munro, no jornal canadiano Toronto Star. Cabeçalhos de várias publicações – do The Atlantic ao The Guardian – falam da dupla face de uma figura célebre, um tão amado ícone da literatura canadiana, que arrecadou o prémio Nobel em 2013. Tenho a certeza de que não tenho de precisar o que aconteceu – quem estiver desse lado já certamente saberá do que falo. De repente, abre-se a caixa de Pandora não só da violência silenciada ao longo dos anos, do trauma inescapável durante a infância, mas mais do que tudo o olhar devorador e acutilante colocado nas relações entre mães e filhas. Memory (Memória, 2023), o mais recente filme do realizador mexicano, é um dos seus filmes mais astutos por englobar a complexidade destas temáticas. Sob o batimento da pontuação contemplativa capaz do confronto, este debruça-se no discurso da memória (matéria maleável e efémera) em relação ao trauma, mas também em relação ao que acontece quando a memória deixa de pertencer ao corpo, e o corpo, em resposta, começa a desintegrar-se. Que é o mesmo que dizer que o filme posiciona-se sob as emoções da infância, esse tempo inultrapassável e impotente, lugar sem pertença de onde só se pode fugir.

Ainda antes do que se tratará do discorrer de um dueto de actores no apogeu das suas carreiras profissionais, o filme lança-nos para a boca do dragão com um “Eu lembro-me” no seio de uma reunião de alcoólicos anónimos. Sylvia (Jessica Chastain) é uma mãe solteira, alcoólica em recuperação e uma cuidadora de um lar que vive uma vida rotineira, sem nunca fugir à estrutura imposta por ela mesma, desde o nascimento da filha Anna (Brooke Timber), agora uma jovem de 13 anos. Franco não precisa de muito para desenvolver quem esta mulher é no ecrã. A sua linguagem corporal rígida, irremediavelmente inquieta e receosa, e o consecutivo armar do seu apartamento à chegada a casa, equivalente a um tique nervoso (curioso como Queens em Nova Iorque é, de repente, num filme de Franco um bairro perigoso), é suficiente para falar do passado traumático desta mulher, a viver em cima da vida de forma ascética em vez de caminhar dentro dela. Até que num momento explicitamente seco, um homem senta-se, sem proferir uma palavra, na cadeira ao lado da de Sylvia, que tinha sido empurrada pela irmã para uma high school reunion. Quando esta se levanta, ele segue-a até casa, e ali passa à noite em frente ao prédio. Nem a chuva o afugenta. O que esta não sabe é que este homem, Saul (Peter Sarsgaard), sofre de demência precoce. Assim que se cruzam, Sylvia acusa falsamente Saul de abuso sexual (aí está o Franco que tão bem conhecemos, o seu típico overplotting, com cadência marcadamente ácida), o que estranhamente conduzirá ao desenvolvimento de um encontro entre ambos, ao tipo de relação que une duas pessoas uma a outra para lá de classe (Franco regressa sempre a uma temática que tem vindo a trabalhar: o trauma e a doença não escapam à família burguesa), para lá do passado ou do presente, e para lá de tudo o que se agarra a uma racionalidade socialmente concebida.
Sente-se tudo no seu acto de não-tocar. A frustração do espectador é, como na vida, imensa. É uma realidade que faz lembrar o melhor que o rectângulo plano do teatro tem para nos dar. É fisicamente seguro, contido, previsível e repetível. Não há, ao que parece, elemento de perigo. Mas ele está lá, carente de uma carga explosiva que exteriorize o que sentimos sem ver.
Eis então o palco para uma mulher atormentada pela memória do passado e um homem atormentado pelo presente que não o deixa reter qualquer pedaço de futuro, seres iguais num mundo que os encurrala. Juntos, irão percorrer a severidade de Franco e a sua exploração distante (no sentido do filme ser um objecto cerebral que não se oferece a uma continuidade enraizada no intelecto). Por falar nisto, relembro o memorável texto de Ricardo Vieira Lisboa sobre o cinema da abjecção aquando da estreia de Nuevo Orden (Nova Ordem, 2020) e as suas palavras: “(…) o realizador filma com um olho de vidro.”, com as quais concordo ainda que a minha experiência pessoal com o cinema de Franco (ou de Ulrich Seidl, em particular) não se reveja na sua secura. Incomoda-me mais a inércia a que se alia. Entendo que essa forma de crueldade, especialmente porque tem tendência a auto-justificar-se mais à frente enquanto comentário sobre a natureza humana ou as políticas que a circundam, seja, por vezes, necessária. Por exemplo, pensando em Memory, fala Franco de consentimento? Não, mas está lá, se nisso quisermos agarrar. E não digo só em respeito ao que acontece a Sylvia. Penso aqui em Saul, tão desprotegido e inconsciente quanto uma criança abusada, a desenvolver uma relação romântica com ela.

Memory pode ser o primeiro sinal de que Franco poderá estar a expandir a sua visão para o pessimismo, e com isso a sua obra. A dessensibilização pode permanecer envolta num empenho ao que é clássico, quadrado e gélido-cerâmico (de forma alguma é evidenciado na sua forma cinemática um savoir-faire), sem recorrer a artifício, mas nota-se mais maturidade em Franco desta vez. O vidro é um espelho e o espelho cinema. Sente-se tudo no seu acto de não-tocar, nos seus maioritariamente fixos quadros dentro dos quais as personagens existem e de onde são forçados a sair para noutro caberem, e assim sucessivamente. A frustração do espectador é, como na vida, imensa. É uma realidade que faz lembrar o melhor que o rectângulo plano do teatro tem para nos dar. É fisicamente seguro, contido, previsível e repetível. Não há, ao que parece, elemento de perigo. Mas ele está lá, carente de uma carga explosiva que exteriorize o que sentimos sem ver.
Assim é Memory. Em muitos respeitos uma aguarela sobre o desaparecimento do Eu em fases diferentes da vida. Noutros, um duelo notável dentro de um lugar indefinível habitado por duas pessoas que perderam a capacidade de viver livremente; um lugar sem história. A Franco parece interessar-lhe apenas como duas pessoas conseguem salvar-se uma à outra.
Num momento específico, depois da introdução da mãe de Sylvia na vida de Anna – Sylvia vivia afastada dela há muitos anos, nunca lhe tendo sequer apresentado a filha -, o filme de Franco que, numa primeira instância, parecia ser feito de banalidades e ideias ocas do que define personalidade, incendeia-se do horror que a nada se pode agarrar quando Sylvia é surpreendida pela invasão da mãe na vida da sua jovem filha. E o passado vem então ao de cima. Sylvia acusa a mãe de não a ter protegido. A mãe acusa-a de mentir. A irmã confessa o que sabia ser real, depois de tantos anos de silêncio. Temos à nossa frente um quadro móvel. Antes de mais, o marido da irmã de Sylvia, homem pernicioso que faz ricochete da verdade. Depois, a filha de Sylvia à esquerda e Saul à direita na entrada da divisão, entre as duas portas. Lá ao fundo, no palco da vida, achatado e cinzento, onde é auscultado o desespero na verdade por confirmar, as três mulheres, as duas irmãs (Sylvia no meio), e a mãe no centro a fechar a roda. Há vários elementos em jogo: a mãe que se ilude para poder continuar a viver com ela mesma, a irmã (a sempre subestimada Merritt Wever) que confessa ter ocultado a verdade por nutrir ciúmes do carinho especial do pai pela outra filha. Com o aprofundar da relação, o cerco vai-se intensificando. É um momento gutural, feito de um realismo gladiador, mas macio nas suas bordas porque foge ao conflito. Porque só sugere. Porque não responde. Porque sufoca a dor e favorece o mutismo. Fica aquém de génio por não mergulhar o suficiente na escuridão.


Assim é Memory. Em muitos respeitos uma aguarela sobre o desaparecimento do Eu em fases diferentes da vida. Noutros, um duelo notável dentro de um lugar indefinível habitado por duas pessoas que perderam a capacidade de viver livremente; um lugar sem história. A conclusão a que Franco chega fará talvez torcer o nariz dos espectadores mais cínicos, especialmente dos conhecedores da sua obra. Creio que é também a razão pela qual a crítica internacional ficou mais enamorada com ele desta vez. É surpreendente como o realizador escolhe abraçar a doçura momentânea e colocar de lado a provocação. É um risco a correr, um que gostamos todos de acreditar que será valoroso. Porque cortante já são todas as palavras não-ditas que nos definem, todas as vezes que uma mãe se escolheu a si mesma em detrimento de proteger a sua filha. Ainda assim, isto não significa que Franco tenha rejeitado a apatia ou até que tenha passado a favorecer menos a estagnação. Continua sem nos dizer o que fazer com tudo aquilo, toda aquela segurança fechada a sete chaves, e a libertação que se segue.
A Franco parece interessar-lhe apenas como duas pessoas conseguem salvar-se uma à outra; como Anna salva Sylvia, como Sylvia existe apenas por causa de Anna, e depois como Sylvia e Saul se salvam revendo-se um no outro. No final, “aproveitamo-nos” todos uns dos outros.
★★★☆☆