Ready or not, here we come. Dois walshianos, Tiago Ramos e Luís Mendonça, com uma panca estranha por westerns e o filme de animação Toy Story (1995), insistem vergonhosamente nas suas obsessões, taras e manias, durante uma troca de correspondência a propósito do mais recente filme de Paul Thomas Anderson. A recepção fá-los reflectir sobre o peso da caricatura na sátira política, acerca da força dos afectos contra a maquinaria do melhor cinema de acção e falar nas limitações ou em alguns “inconseguimentos” do objecto como um todo, isto porque One Battle After Another (Batalha Atrás de Batalha, 2025), por muito impressionante que seja, não é um filme tão perfeito como o buzz da crítica, até agora, tem dado a entender. Ready for battle?

Luís, caro companheiro de armas.
Na semana anterior à sessão de imprensa, puseste-me ao corrente dos discursos apoteóticos que estavam a surgir em torno de One Battle After Another (2025). Segundo me dizias, a crítica norte-americana, pouco dada à hipérbole, garantia que era uma afronta utilizar graus não superlativos dos adjectivos para descrever o filme. Bom, óptimo, excelente – tudo palavras vãs porque ficavam aquém de expressar a perfeição alcançada pelo mais recente projecto de Paul Thomas Anderson. O consenso era de que nascera uma obra-prima e, portanto, era urgente fazer o anúncio ao mundo cinéfilo, não por intermédio de fumo branco, mas das redes e órgãos de comunicação social. Deste-me conta de comentários que falavam do melhor filme da década, senão mesmo do milénio! Alguns até diziam que era melhor que aquele outro filme, consagrado pela Sight and Sound, em que uma dona de casa pana bifes de vitela durante cinco minutos. Na próxima sondagem há um novo concorrente na disputa, asseguravam. Ainda assim, insatisfeitos com o grau modesto da exultação, circulavam testemunhos que reportavam que ao lado do monumento que é One Battle After Another a Grande Pirâmide de Gizé era nada mais que um bloco de pedras vulgar e que a própria Criação só tinha valor porque dava abrigo ao novo filme de Paul Thomas Anderson.
O nível de entusiasmo da recepção surpreendeu-me – e note-se que sou um admirador do realizador. A falta de comparência do filme nos festivais de cinema mais reputados causara estranheza e alarme, uma vez que esse roteiro é, actualmente, uma formalidade inescapável. A relação dos estúdios com os grandes festivais é utilitária – sim, quer-se celebrar o cinema e aplaudir-se os artistas, mas sem perder de vista que se deseja colocar os produtos em montras prestigiantes e mediáticas que cativam a atenção dos espectadores, gerando curiosidade, nem que seja através das fotografias de passerelle. Assim, a decisão de ignorar os festivais afigurava-se inusitada, talvez sintomática de um fracasso. Agora que vi o filme, parece-me evidente o racional da Warner Bros. Pictures. O estúdio não quis que One Battle After Another estreasse em Cannes ou Veneza porque a recepção por parte do público europeu teria sido, suspeito, bastante mais amena. Ao fazer com que as primeiras reacções partissem da imprensa conterrânea, que busca avidamente por objectos que possa louvar pela função social no quadro norte-americano, o estúdio manufacturou, de forma brilhante, um consenso prematuro, que desmoronará em breve.
Por um lado, a flagrante inabilidade cómica de DiCaprio, cuja interpretação melhora um pouco depois da prolepse. Por outro, o desinteresse declarado de Anderson pelo pensamento político das personagens…
Ainda a propósito da recepção, destaco um comentário que, entretanto, li. Alguém coroava One Battle After Another como o filme mais importante de PTA. Caso haja dúvida quanto ao que se entende por importante neste contexto, fica o esclarecimento: o que torna uma obra de arte importante é a sua capacidade de consolidar convicções pessoais através de comentários sociopolíticos que atentam em matérias da ordem do dia. Neste sentido, estou de acordo com a afirmação de que One Battle After Another é a obra mais importante de PTA. Ao contrário do que se constata em grande parte da filmografia do realizador, a acção desenrola-se na contemporaneidade e lida com questões fracturantes, tais como as políticas de imigração e a intervenção do estado policial. Porém, este contexto social serve, em grande medida, de pano de fundo às viagens de dois pais que buscam pela filha. Para não ser acusado de insensibilidade, isto é, de utilizar a crise migratória como palco para uma comédia de equívocos, o filme viu-se na necessidade de, nos últimos minutos, transmitir a mensagem de forma clara e reconfortante. É para isso que os dois epílogos servem. No primeiro, Lockjaw é ressuscitado, sem qualquer necessidade, com o objectivo explícito de dar ao espectador o prazer de o ver desfigurado e de testemunhar o seu gaseamento. O segundo epílogo começa com o espectro da mãe a materializar-se numa carta empoderadora (como a agora se diz em portuguinglês) e termina com Willa a responder a uma chamada para a acção, que, para além de concretizar esta ideia de mobilização e engajamento político de maneira cabotina, também oferece uma esperança que me soa farsante.
Mas chega de falar da recepção do filme! Fala-me dos trinta minutos iniciais, dos quais sei que gostaste. Como sabes, o preâmbulo pareceu-me uma montagem expositiva realizada com destreza e a alta velocidade. Houve duas coisas que me surpreenderam nesta parte inicial do filme. Por um lado, a flagrante inabilidade cómica de DiCaprio, cuja interpretação melhora um pouco depois da prolepse. Por outro, o desinteresse declarado de Anderson pelo pensamento político das personagens – nem sequer somos brindados com a cena, protocolar em filmes deste género, em que uma personagem dá voz ao ideário dos activistas. É tudo chavões e frases feitas. Atenção, este último aspecto tem graça: o activismo dos French 75 é retratado como uma prática extracurricular mais preocupada com o meio (o ruído e a violência) do que qualquer fim político.
Na segunda mensagem prometo chegar às coisas positivas!
Abraço,
Tiago Ramos

Olá, Tiago “Woody” Ramos,
Sei que tens estado a seguir o ciclo do Western na Cinemateca e, confesso, quanto mais as batalhas se sucediam, umas atrás das outras, e nos aproximávamos do “duelo final” extraordinário – que tu, em conversa pós-visionamento, muito bem comparaste com o celebérrimo enfrentamento final de Il buono, il brutto, il cattivo (O Bom, O Mau e o Vilão, 1966) de Leone – mais eu sentia as marcas de um western horizontalíssimo e “distópico” (pelo que, na fotografia de conjunto, falaria menos em Leone e mais em Walter Hill e até Big John). Por isso, sim, concordo contigo, há Leone no domínio técnico e formal da montagem – de novo, esse duelo na estrada ondulante é de antologia, a mais impressionante peça cinematográfica do ano -, mas também vigora esta ideia de uma viagem rumo a um destino qualquer, a um palco onde as personagens protagonizarão um standoff de grande efeito. E daí nascerá a dita “mensagem” para o futuro, maximamente “empoderante” para a nova geração.
Percebo o que dizes relativamente ao desinteresse pelo discurso político das personagens, mas ao mesmo tempo também me apetece contra-argumentar dizendo: não interessará mais a PTA filmar esse discurso em acção?
Quanto mais o filme quer “resolver” a sua deriva esfuziante, magnética e, tantas vezes, empolgante, mais este perde espessura dramatúrgica e as personagens se quedam em figurações de cartolina. O caso de Penn, como “super-vilão” a canalizar Robert Kennedy Jr. (é, não é?), é um bom exemplo, porque no dito preâmbulo temo-lo no centro de uma história perversa e pervertida de sedução animal, de indómito embasbacamento por essa portentosa pantera que é Perfidia. Estrondosa descoberta para mim neste filme, tanto na sua presença como na sua presença-ausência ao longo da maior parte do filme: Teyana Taylor.
Percebo o que dizes relativamente ao desinteresse pelo discurso político das personagens, mas ao mesmo tempo também me apetece contra-argumentar dizendo: não interessará mais a PTA filmar esse discurso em acção? Não seria veicular esse discurso cair mais rotundamente na tentação do slogan e das frases-feitas sem grande substância? PTA quer agarrar as personagens pelo pescoço e fazer da revolução um palco de sedução, porque, como diz alguém, o pessoal é político e, diga-se, o político também é pessoal. Ninguém mais poderá fazer política fora da esfera privada. Até porque é isso que pretende desastrosamente a personagem de DiCaprio, o “Zapata gringo” que fala mal, e desarticuladamente, a linguagem da revolução – daí ser alvo de alguma chacota por parte dos mexicanos, todos batídissimos nesse campo, começando, claro, pelo magnífico “Sensei” encarnado por Benicio Del Toro.
Ocorria-me que Bob ou “Rocket Man” (co-cognome obviamente irónico) é um pouco como os jovens revolucionários do Maio de 68 que não conseguiram levar a dita revolução até às últimas consequências porque depois se meteu (não o Natal mas) as férias de Verão. A revolução para Bob – achava ele – terminaria com o início de uma vida familiar de mole rotina e em ambiente ameno de classe-média. Ele é um miscast desde o início – a secundarização dele perante a presença vibrante (that pops) de Perfidia é muito voluntária e justificada para abrir espaço ao fluxo de tropeções bem burlescos, uns atrás dos outros, que se segue.
Acho que esse filme-preâmbulo – mais do que um primeiro acto, senti como “um filme antes de outro” – é de uma vitalidade, de uma energia, sempre perversa e pervertida, verdadeiramente magnéticas. Também é o embalo certo para tudo aquilo que se avizinha with sound and fury.
E a partir daí o que te agarra mais? Como sentes o lugar de cada personagem – ou de todas, em efeito coral típico do cinema de PTA, discípulo de Altman – nesta narrativa tempestuosa? Isso que falas da importância do filme “presa” à mensagem política, também me leva a abrir outro tópico, comparando One Battle… com Eddington (2025), a sátira truculenta de Ari Aster que a meu ver dispara para todos os lados, e para os próprios pés, esquecendo-se, durante o processo, das personagens. Aqui não senti ser esse o caso. O que nos leva à questão, a que o próprio PTA tem respondido publicamente: qual o lugar do drama mais sentimental e “patético” (no sentido grego do termo) para se fazer cinema político à altura dos tempos clownescos em que vivemos?
O desnorte quanto ao destino ou desígnio das personagens à medida que o filme progride também é sintomático aqui, não achas?
Um abraço westerniano,
Luís M.

Hello, my favorite deputy (com a voz de Tom Hanks).
Tens razão, para as personagens a revolução é acção. Conforme diz Perfidia, um nome que também merece uma análise etimológica, pela sua origem na arte da guerra, a violência tornou-se uma necessidade. Porém, não se dá o caso de a violência ser o corolário de um qualquer manifesto político, uma vez que a acção destes activistas não tem uma qualidade programática. Em nenhum momento se tem a percepção de que existe uma visão de futuro pela qual vale a pena lutar. Neste âmbito, o filme está a operar no domínio da sátira, o que resulta. Os homens e mulheres que integram os French 75 estão menos interessados na mudança do que em pertencer a um grupo, com códigos próprios, que faz coisas acontecer, mesmo que estas sejam inúteis. No caso do protagonista, por exemplo, o que o motiva nem sequer é a adrenalina da sublevação, mas o desejo de impressionar o interesse romântico. Ferguson está numa missão a título próprio: a de amar Perfidia e construir uma família consigo, o que ela rejeita prontamente. O “Sensei” é a personagem mais revolucionária – dar abrigo e acolher são gestos radicais. Todavia, o que estava a argumentar é que o epílogo dispensa do tom satírico e almeja fazer uma afirmação importante. E parece-me que isso conquistou alguns espectadores, ao passo que essa foi uma das decisões que me afastou por ser pretensamente empoderadora.
Entre outras coisas, One Battle After Another é uma comédia. Por isso, não me faz espécie que a personagem de Sean Penn seja uma caricatura. Aliás, a sua personagem é reminiscente de outra figura de autoridade grosseira do cinema de Anderson: o Tenente “Bigfoot” Bjornsen, interpretado por Josh Brolin em Inherent Vice (2014). Homem pequenino ou velhaco ou dançarino. Do meu ponto de vista, a imagem do militar musculado, de camisola apertadinha e andar sodomizado, que se mostra simultaneamente implacável e disposto a submeter-se ao poder dos outros, tanto homens seus superiores na hierarquia social e militar quanto mulheres dominantes, é engraçada. Contudo, há dois outros elementos que me cativam na personagem, pelo menos durante parte do filme. Por um lado, o rosto envelhecido, simultaneamente sulcado e infantil, de Sean Penn. Por outro, as suas contradições: o Coronel é um gnomo e um símbolo de hipermasculinidade, é um racista assumido e um homem apaixonado por uma mulher negra, é um adepto das políticas de extrema-direita ao nível da imigração e um admirador da acção revolucionária de Perfidia. A meu ver, estas atitudes irreconciliáveis fazem dele, a par de Perfidia, outra figura cheia de contra-sensos, a personagem mais envolvente de One Battle After Another. É pena que, na segunda metade, o filme abdique, em grande medida, dessas contradições, fazendo do Coronel um mau da fita sem substância, um menino que quer aprovação.
A perseguição pelo deserto é, como referi após o visionamento, um número de relojoaria cinematográfica saído do imaginário do western, com Il buono, il brutto, il cativo a surgir-me, de imediato, como referência.
A aprovação e pertença a uma comunidade podem ser um ponto de partida para se traçar um paralelo entre One Battle After Another e Eddington. No filme de Aster, a possibilidade de viver em comunidade apenas se afigura possível através da integração num culto. O que se tem em comum não é uma ideia de país, mas a dependência dos ecrãs, que abrem uma porta para mundos (modelados pelo algoritmo) feitos à medida de cada utilizador. Neste caso, temos algo da mesma ordem, primeiro com os French 75 (as personagens mudam de nome, utilizam uma linguagem codificada e dedicam-se a rituais) e depois com o Clube Natalício de Aventureiros Geriátricos – a representação dos donos disto tudo é, porventura, a caricatura mais genérica do filme. Ainda sobre os telemóveis, é relevante que Ferguson acabe o filme colado ao ecrã, que promete apagar os seus últimos ímpetos revolucionários e submergi-lo em mais teorias da conspiração.
Deixo-te o desafio de me dizeres umas palavrinhas sobre como, à primeira vista, One Battle After Another se relaciona com o western. Há um episódio, curiosamente um dos piores do filme, que bebe dessa fonte. Refiro-me à sequência em que o bounty hunter nativo americano conduz Willa aos seus algozes, isto antes de, por milagre, o assassino ganhar uma consciência e decidir matar os supremacistas brancos que iam executar a rapariga, num stand-off que decorre, quase na totalidade, fora de cena. É um ponto baixo porque representa, muito claramente, um nó narrativo que precisava de ser desatado. Willa, que estava sob a custódia do pai biológico, precisava de se desenvencilhar deste de maneira que a perseguição final a três se pudesse efectivar e esta foi a estratégia, um tanto trapalhona, que PTA gizou para dar azo ao desenlace. A perseguição pelo deserto é, como referi após o visionamento, um número de relojoaria cinematográfica saído do imaginário do western, com Il buono, il brutto, il cativo a surgir-me, de imediato, como referência, devido à montagem e à escala dos planos, mas talvez também pudéssemos convocar outras coboiadas que envolvem perseguições (a cavalo, carroça ou caravana). Sim, é uma das grandes sequências do ano, uma peça cuja mestria é indiscutível. O deserto perde o horizonte, transforma-se numa ondulação árida em que os rostos das personagens (e é curioso notar a delicadeza desse factor humano no meio do caos) têm a mesma proporção das colinas de asfalto que seguem rumo a um Oeste perdido.
Do teu amigo, sim (desta vez com a voz de Miguel Ângelo, dos Delfins)
Abraços walshianos,
Tiago Ramos

Woody, amigo,
Vai com as ondas! Sim, começo pelo fim para subscrever o entusiasmo por essa extraordinária peça de relojoaria cinematográfica, símbolo de uma mecânica quase perfeita aplicada por PTA neste filme – nem sempre é assim no seu cinema, que gosta de fazer alguns furinhos na barqueta. Estava a pensar nessa ideia de uma maquinaria quase perfeita, que culmina nesse momento “leonesco”, de acção-tensão concretizada numa espécie de imobilidade Zen, alucinatória, com os carros a perseguirem-se a alta-velocidade mas a parecerem cada vez mais presos num tempo onde a progressão é uma impossibilidade. Concluía com uma fórmula fílmica, apressadamente posta em rascunho e que envolve o outro filme que aqui nos tem ocupado, mas também outros. Por essa razão partilho-a contigo:
“Se o Eddington fosse realizado pelos irmãos Coen de No Country for Old Men (Este País Não é para Velhos, 2007) mas estivessem ‘vitaminados’ e in the mood para experimentarem – e se esbardalharem durante o processo – à laia do Tarantino de Kill Bill (2003-2004) e Django Unchained (Django Libertado, 2012). E com a visão do mundo de Walter Hill na sua vertente mais distópica (The Warriors [Os Selvagens da Noite, 1979]) ao estilo ‘sal e pimenta’ de toda a experiência, de toda a hell of a ride que aqui se põe em movimento.”
Posto isto, concordo contigo sobre o longo epílogo ser dispensável. É assim sob vários pontos de vista. Primeiro, a ressurreição do já aí aberrante Coronel marca um desejo de vingança básico que, a meu ver, não está à altura do realizador de There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007). Sinto, no tal prólogo (ou “primeiro filme”) de One Battle… que PTA procura complexificar esta personagem, tornando-a intrigante e interessante, mesmo que boçal e grotesca ao mesmo tempo. Depois, dá-se aquele “confronto” na igreja, entre Penn e a sua putativa filha perdida (mais uma mulher de armas neste filme e uma descoberta para mim: Chase Infiniti) – indo já, já à ideia do western não poderá estar aqui o The Searchers (A Desaparecida, 1956) de One Battle…? A ideia de uma jovem mulher disputada “entre tribos”, “entre pais”, “entre Américas”? E de um homem – neste caso é o vilão – movendo montanhas para a encontrar? Talvez. De qualquer maneira, retomando o fio ao meu argumento, creio que esse face-a-face é uma oportunidade perdida por PTA para agarrar de novo esta personagem pelo pescoço, elevando-a, conferindo-lhe algum pathos dramático, retomando-a no modo complexo como a apresenta nos primeiros minutos. Penn, nesse embate, torna-se perfeitamente risível, com comentários de “pai desiludido” meio absurdos. É interessante quando, no carro, ele defende, aos olhos da filha, Perfidia como uma grande guerreira, mas acho que nunca poderia esta personagem querer descartar-se assim, de maneira tão cruel e indiferente, do produto dessa relação “proibida”. A história de amor podia ter continuado, com Penn a “apaixonar-se” (não no sentido sexual, pois claro) pelo resultado da relação (transbordantemente sexual) com Perfidia…
O meu interesse imenso, “incondicional”, por esta viagem cai quando a personagem de DiCaprio também cai e é apanhada pela polícia.
Não vale a pena insistir nesta ideia porque nem sou partidário de uma “crítica alt“, que especula sobre como as coisas podiam ser tão melhores se… Elas são o que são e o filme é um objecto fechado. Mas, batalha após batalha, acho mesmo que o filme de PTA perde força dramatúrgica, as personagens tornam-se peões de um grande jogo de tabuleiro (estilo Risco). Como te disse logo após a sessão, o meu interesse imenso, “incondicional”, por esta viagem cai quando a personagem de DiCaprio também cai e é apanhada pela polícia. Falo daquele momento em que Bob deixa de ter pernas para acompanhar os skaters (sim, The Warriors de Walter Hill foi o filme que me ocorreu mais intensamente nesta cena, no encalço dessa tribo “deslizante”) e estatela-se com estrondo.
Também acho esse subplot do Clube Natalício artificial e distractivo (fez-me pensar nos piores Coen…). Perto do fim (exepcionando a perseguição de carros na paisagem ondulante) tudo, ou quase tudo, redunda nisto: excesso de ruído, de distracção, de cruzamentos e zappings cinematográficos que nos distancia das personagens e, com isso, aprofundamos pouco o universo de cada uma delas, nos seus anseios e ansiedades postos à flor da pele. Em certa medida, nesse epílogo, o filme reclama algo de nós relativamente às personagens que, a meu ver, não está em condições de reclamar, porque as perdeu para nós a esse nível mais sentimental, digamos. Já foi mais ou menos assim comigo em (e “a bordo de”) Licorice Pizza (2021), pois senti que as personagens eram esmagadas pelo espectáculo da dita maquinaria cinematográfica, desse movimento imparável em frente que mistura sons e imagens, tempos e décors, em grande estilo e a grande velocidade, ainda que, finalmente, em prejuízo das personagens. Em One Battle… elas fogem por entre os dedos (ou por entre as pernas, pois é um filme de pernas irrequietas on the go). Ao mesmo tempo, e não como Licorice, o filme é como uma “personagem de personagens” que absorve o Zeitgeist. Esta ideia de que o filme é um corpus de personagens, que fala várias línguas, que se articula/desarticula entre trajectos, sempre num desígnio (muito) incerto, errante, errático, estilo cão atrás da própria cauda, creio, é significativa e política (é significativamente política) em One Battle… Acho que, pese embora a tentação pela caricatura ou o facto de ser vencido aqui e ali por esta, este facto torna o mais recente título de PTA num dos mais significativamente políticos da sua filmografia, cerca de 18 anos depois de There Will Be Blood.
Talvez esteja em construção uma trilogia sobre a América (por onde situaremos o terceiro tomo?), das suas fundações até ao estado das coisas actuais. Ao contrário do que leio por aí, sou levado a estabelecer comparações mais com a sua obra-prima maior, There Will Be Blood, do que com o seu outro filme “pynchiano”, o curioso e instigador quanto baste Inherent Vice (Vício Intrínseco, 2014). Se calhar não concordas com isto, mas também é importante partilharmos diferenças, caro e fiel Woody.
To “Infiniti” and beyond!
Abraço,
Luís Mendonça

Howdy!
Faz sentido convocar The Searchers, de John Ford, para a discussão, para não dizer que essa referência é uma chave de leitura indispensável. Como sugeriste, pode traçar-se um paralelo entre a odisseia (com a devida conotação homérica) de Ethan Edwards pela sobrinha, raptada e integrada pelos nativos, representantes de uma outra América, e a busca do Coronel pela filha mestiça, que foi criada com os costumes pedrados do inimigo. No entanto, a comparação é pouco lisonjeira para One Battle After Another, uma vez que o filme apresenta um déficit afectivo em relação ao clássico de Ford, que é um western de proporções épicas, se tivermos como medida a escala das emoções dramatizadas.
O pathos de One Battle After Another é esvaziado quando se compreende que a procura do Coronel pela filha tem um fim meramente arrivista.
O espírito de Ethan é animado pela vingança, mas o que me comove, e o que engrandece o filme, é a busca do protagonista por uma casa e uma sobrinha que, em certo sentido, já não existem – o herói parte numa viagem impossível, a de encontrar um fio que o conduza ao passado, a um tempo anterior à Guerra Civil, a um período onde o horizonte ainda encerrava possibilidades infinitas e não uma porta fechada. Por sua vez, o pathos de One Battle After Another é esvaziado quando se compreende que a procura do Coronel pela filha tem um fim meramente arrivista: ele quer livrar-se dela para poder pertencer à elite de aventureiros natalícios. O perfil de Lockjaw torna-se linear e cristalino. As contradições e ambivalências que fizeram da personagem cativante durante a primeira metade do filme desaparecem, senão na totalidade, pelo menos em grande medida. Além disso, é decepcionante que as acções da personagem sejam mobilizadas por algo tão desinteressante e pequeno – nada que se compare com a cólera desesperançada de Ethan.
Já agora, não vês na cena entre pai e filha na igreja um eco do episódio de There Will be Blood em que Plainview é humilhado pelo padre por ter abandonado o filho? Aqui também há vários abandonos. Ocorre-me outra ligação: ambos os filmes utilizam uma analepse nos instantes finais. Em There Will Be Blood, vê-se Plainview a brincar com o filho antes do acidente, ao passo que no filme mais recente há um plano de Perfidia e Ferguson com a filha, um enquadramento espoletado pela leitura que Willa faz da carta da mãe desaparecida. Sempre achei aquela brevíssima analepse significativa, como se Plainview, mesmo depois do seu espírito sofrer uma erosão causada pela avareza, guardasse a memória de um tempo em que as relações humanas ainda eram possíveis. Aqui, como tenho vindo a argumentar, não senti a mesma densidade, pelo que a analepse cai em saco roto. Noutro sentido, aponto que o duelo automóvel no deserto tem um equivalente em Licorice Pizza, um filme de que gosto mais. Estás recordado da cena, fundida a partir do molde de Le salaire de la peur (O Salário do Medo, 1953), de Clouzot, em que as personagens descem uma colina num camião em marcha-atrás? Também é um número que exibe mestria na relação tensão-acção – e, nesse caso, com comédia à mistura. Mas não falemos de Le salaire de la peur, que ainda acabamos a falar de Sirāt (2025) (it’s a metaphor, see?), o que não vale a pena.
Paralelamente, Bob Ferguson, o anarquista desmemoriado, também enceta uma jornada em busca da filha desaparecida. Todavia, falta detalhe à caracterização de Ferguson. Caso se coloque Ferguson ao lado de Doc Sportello, uma outra criação pynchiana adepta de conspirações e substâncias herbáceas, verifica-se que o último é uma figura de carne e osso, cheia de pormenor e vida, ao passo que a personagem de DiCaprio é um esboço. Não obstante, e para ser justo, sublinha-se que Ferguson protagoniza o melhor bloco de One Battle After Another – partindo do princípio de que o duelo a três, desenrolado a uma alta velocidade cristalizada, é uma cena e não uma sequência. Refiro-me à cadeia de eventos que começa com a intervenção militar operada pelo Coronel e termina com a captura de Ferguson quando este, incapaz de acompanhar os skaters, cai do prédio. Para mim, foi este episódio que deu o pontapé de saída, não a montagem expositiva inicial. A articulação dos percursos das diferentes personagens é bem montada e a sequência tem bons momentos cómicos – a dificuldade de Ferguson em estar à altura dos acontecimentos e de comunicar com o grupo revolucionário a que pertenceu são divertidas.
Acabo com uma última nota, que imbuo de esperança: gostei mais de quase todos os filmes de Paul Thomas Anderson quando os vi pela segunda vez. Aguardemos.
So long, partner.
Tiago Ramos

Howdy ho! (voz do Mister Hankey de South Park)
Tens os PTA na ponta da língua, quer dizer, a vibrar na pupila! Eu não os tenho assim tão presentes, mas There Will Be Blood é dos PTA que vi mais e concordo em absoluto contigo. Aliás, pensei nisso: a escala dos planos, o facto de serem duas personagens solitárias em confronto, porque é a cólera (grande tema de um grande western de Eastwood, não sei se sabes) que também os une… Sem dúvida, a rima é muito evidente. E se calhar esse é o grande duelo afectivo do filme. Mas One Battle… nunca se eleva como grande peça cinematográfica na parte afectiva – estamos de acordo também aí. O que me seduz aqui é como, no limite, politiza esses parcos afectos e depois põe as fichas todas num exercício de kinesis pura – a linha pura e vertiginosa do grande cinema de acção?
E agora vou voltar… sabes a quê? Ao Toy Story! Sim, caro “Woody”, esse full speed western, de pernas irrequietas e salvações de última hora.
One Battle… não é o melhor filme de PTA, nem sequer será o melhor filme do ano, mas é muito bom e tem a mais forte candidata a sequência cinematográfica de 2025.
Mas, fora de brincadeiras (quer dizer, não estou a brincar! Acho que há alguma coisa a ligar a experiência, que compartilhámos, de termos visto ambos os filmes em sala), também me apetece trazer uma última e derradeira questão – sorry, sei que estavas a tentar fechar esta troca que já vai longa (até me ficam a doer os dedos quando termino cada mensagem, pois também a quero saída como num jorro). E que se prende com o facto de PTA ter convidado Steven Spielberg para ver, em primeira mão, este seu mais recente filme. Se pensarmos que é o mais político dos títulos de PTA, a escolha afigura-se pouco óbvia, não achas? Porque… não será Spielberg dos menos políticos ou politicamente sofisticados cineastas da Nova Hollywood? Mas se é por causa de uma linearidade cinética e kinésica verdadeiramente esfuziante, então aí entendo esta convocatória. A comparação é algo forçada por esse encontro – que, aliás, correu maravilhosamente bem, já que Spielberg ficou aos saltos com o filme (“What an insane movie, oh my God!”) – mas também pensei em Duel (Um Assassino Pelas Costas, 1971) na sequência sobre rodas na estrada ondulante.
Não é que seja remotamente semelhante – o filme e a própria sequência – isto excluindo, claro, o facto de ser uma perseguição automobilística. De qualquer modo, não pude deixar de imaginar um Spielberg afundado no assento durante essa sequência em concreto. E um PTA secretamente a pensar, e a disparar na sua direcção, apenas em pensamento ou em surdina: “gotcha!”
Sim, One Battle… não é o melhor filme de PTA, nem sequer será o melhor filme do ano, mas é muito bom (com limitações ou reservas deste lado, sendo que a maioria delas já expus aqui, nesta nossa crítica epistolar) e tem a mais forte candidata a sequência cinematográfica de 2025.
A minha questão é: porquê o Spielberg? O que há de spielberguiano aqui? Pouca coisa sem ser a energia, a velocidade, “a mecânica”, né?
Um abraço e não abuses do tabaco de mascar,
Luís Mendonça

Hello, again!
O patrocínio de Spielberg foi conveniente para espantar os fantasmas que estavam a ser convocados e que levantavam a possibilidade de One Battle After Another ser um enorme fiasco – convém lembrar que o filme tem o orçamento de um blockbuster. Spielberg também é um dos governadores da Academia de Hollywood, cabendo-lhe a si a pasta dedicada aos realizadores. Ou seja, o velho Spielberg continua a ser alguém extraordinariamente influente, uma figura capaz de promover agendas e manipular decisões. Estar nas boas graças do realizador pode ser sinal de boa fortuna. Imagino Spielberg a pertencer à elite dos aventureiros natalícios de Hollywood. De qualquer modo, as lendas da Nova Hollywood estão para os realizadores mais jovens como os deuses olímpicos estão para os heróis homéricos – são figuras que oferecem protecção e patrocínio, assegurando que há uma linhagem a uni-los. Por isso, Scorsese e Spielberg, os únicos cineastas que ainda detêm influência na indústria, de vez em quando saem da toca para dizer que o realizador x ou y tem muito potencial. No entanto, diria que, neste momento, é a imagem de Spielberg que beneficia de estar próxima a Paul Thomas Anderson. Qual é que foi o último filme muito bom de Spielberg? Vá, nem digo muito bom, qual é que foi o último bom filme do realizador? Não me digam que foi The Fabelmans (Os Fabelmans, 2022), por favor. Como sabes, nem sou apreciador de filmes importantes e tampouco de cine-terapia ramelosa.
Assim, à primeira vista, não me parece que Spielberg e PTA sejam cineastas que se espelham – mesmo o domínio da técnica é diferente.
Tenho a maior das dúvidas quanto à afirmação de “Spielberg ser um dos cineastas politicamente menos sofisticados da Nova Hollywood.” Pode-se argumentar o contrário. Talvez o fizesse, se tivesse a sua filmografia a vibrar na pupila, o que não é o caso. É impossível alguém com uma relação tão sincrónica com o dinheiro e o poder, alguém que compreende tão bem o cinema enquanto negócio e indústria, ser um iletrado político. Talvez simplesmente se dê o caso de Spielberg, ao contrário de muitos outros, não se fazer passar por algo que não é, mais concretamente, um revolucionário. Por exemplo, acho que no epílogo Paul Thomas Anderson cede a essa tentação de apelo farsante à resistência. Spielberg até pode ser um cineasta interessante de um ponto de vista político porque o aparente progressismo dele convive na perfeição com as suas inclinações conservadoras. Quanto à comparação com Duel, acho que esta tem alguma razão de ser, em particular pela distensão do tempo. Contudo, é um filme que não vejo há mais de uma década.
Assim, à primeira vista, não me parece que Spielberg e PTA sejam cineastas que se espelham – mesmo o domínio da técnica é diferente. A importância da pós-produção na composição é muito mais acentuada em Spielberg, por exemplo. Também os acho diferentes de um ponto de vista temperamental: Spielberg é mais ingénuo e patético, e com um olhar afinadíssimo para o espectáculo, ao passo que Paul Thomas Anderson é desencantado, decadente e, acima de tudo, romântico.
Para a despedida, insert a óptima banda sonora de Jonny Greenwood.
Adios amigo,
Tiago Ramos
