Lisboa, 15 de Novembro de 2014 – Dia 7
Fui a Belém com dois propósitos bem certos: falar com o Rui Tavares e comer pastéis. Digo já que só consegui o primeiro. O ex-eurodeputado integrou um painel chamado “Superar o choque: compreender a vigilância de massas” no decorrer de uma coisa chamada “Simpósio Internacional – Ficção e Realidade: Para Além do Big Brother“, organizado pelo festival e que decorreu este fim-de-semana no CCB. Havia uma comunicação gravada do Chomsky, um skype com Julian Assange e ainda nomes como Edgar Morin anunciados. Muita coisa boa que, dolorosamente, me teve de passar ao lado por causa de outras missas. Antes da entrevista que fiz com o Luís Mendonça ao líder do Partido Livre que fez ontem um ano de existência, só ouvi um senhor chamado Eben Moglen, que, googlo agora só para lhe fazer espécie, é professor de Direito na Universidade de Columbia. Dons de orador como poucos, Moglen com as pausas certas da emoção ou do suspense traçou uma paisagem apocalíptica onde é uma questão de tempo até todos os nossos dados, preferências, sonhos e que tais estarem à disposição do NSA. Falou do Google como o novo confessionário que substituiu o das igrejas e, curiosamente ou não, o seu tecno-pessimismo assumia a retórica de uma igreja evangelizadora. Podíamos dizer que o seu conspiracionismo atinge níveis estratosféricos. Podíamos mas eu por mim apenas digo que a sua retórica sedutora ajuda a fixar o caricatural afastando do que realmente interessa. É que Moglen ficou aquém da realidade. A questão não é entre a democratização no acesso às tecnologias e de meios não controlados de um lado e o NSA e as agências de governo do outro lado. Se há um lado definido ele é apenas o da economização da sociedade e do pensamento que vão ao ponto de mostrar que a questão das vigilâncias foucauldianas, das sociedades de controlo deleuzianas são apenas um passo intermédio para a formatação psíquica do indivíduo. Um controlo efectuado pelo psico-poder e outras técnicas que talvez só pararão nas fórmulas matemáticas e algorítmicas do amor ou do egoismo. Como vêem contribuo à conspiração, sabendo que paranoia is the shadow of cognition, como escrevia Adorno. Não adianta criar lados, nem suspiros nas palavras. É preciso tentar falar de factos e pensar em soluções. Parece fácil, não?
Um rapaz do público perguntou indignado como é que podíamos estar a falar deste assunto quando há tanto desemprego e pessoas sem comer no país e no mundo. No fundo trata-se de uma hierarquização moral de assuntos. Como se todo este infernal multitasking que nos assoberba só tivesse (só devesse ter) direito a pausa neste caso. Mas não é possível pensar nas duas coisas ao mesmo tempo? Ou pensar nas questões da vigilância em ambiente digital impede de pensar nas questões da crise? Não consigo perceber a indignação e ainda menos a incompatibilidade.
Lisboa, 16 de Novembro de 2014 – Dia 8
Preocupados com a fome e com o desemprego estão “de certezinha” absoluta os irmãos Dardenne.
Deux jours, une nuit (Dois Dias, Uma Noite, 2014) que eles vieram cá apresentar faz-me lembrar uma história que me contaram há tempos. Há mais de vinte anos numa escola em Famalicão a professora da quarta classe mandava os alunos ler. Parava-os aleatoriamente numa palavra e o menino ou menina tinha que classificar gramaticalmente a palavra onde tinha parado. Se não conseguisse passava ao do lado. Here’s the catch: quando um aluno finalmente acertava tinha o direito de pegar numa régua e castigar os colegas que tinham errado. Educação à seria. A questão do filme não é bem essa, tem apenas semelhanças. Uma mulher esteve de baixa por depressão e quando regressa do trabalho, por uma questão de redução de pessoal e custos o patrão dá a escolher aos seus outros trabalhadores uma de duas. Ou cada um deles recebe um prémio de 1000 € e a Sandra (Marion Cotillard) vai para o olho da rua ou ela fica e eles não recebem prémio. Agora escolham.
Decisão moral, entre o dinheiro e a solidariedade, o realismo dos irmãos Dardenne perde neste filme uma certa dimensão de imprevisibilidade ao anunciar nos primeiros vinte minutos qual vai ser a estrutura do mesmo. História também demasiado colada à política da crise, que coloca os peões do tabuleiro uns contra os outros. Desse trajecto, uma “odisseia” em que Ulisses mantém o trabalho e é Penélope que tem de lutar para garantir o seu direito a fazer e a desfazer a tapeçaria que lhe dá os euros ao final do mês.
Gosto da forma como os Dardenne filmam o preço das cervejas, a compra das garrafas de água, a ida à padaria. Momentos pequenos, compras quotidianas que na eminência do desemprego e da miséria sobem de importância. Outro grande pequeno detalhe. Sandra teve uma depressão, é uma personagem frágil que chora, toma Xanax, não acredita em si própria. Ela tem de convencer os seus colegas a não receber o prémio e a mantê-la no posto de trabalho. Como as grávidas corre o argumento que uma depressiva poderá nunca recuperar e não vir a trabalhar de forma tão eficiente como dantes. Ecos da escravatura, do nazismo, da eficiência, do empreendedorismo a todo o custo, que descarta os incapazes para o trabalho. Quando se fala do Estado rodeado de “dependentes, malandros, que não querem trabalhar” lembro-me de tudo isto. Desculpem-me se fiz mais política do que crítica. Não o pude evitar, o filme estava a pedi-las e eu limitei-me a usar a régua.
Queria ainda ir espreitar a mãezinha do menino [Mommy (2014), hoje à noite], mas daqui a pouco há Bonnie “Prince” Billy e não se misturam coisas sérias com curiosidades de puto.
Entretanto apercebo-me que isto chegou ao fim. Foi um prazer e, lembrem-se, agasalhem-se que vem aí o frio.