Sábado à noite (perto das duas da manhã), estava eu a chegar a casa (depois de 4 filmes) e a chuva caía de forma cataclísmica. Já não chovia há meses e tinha que começar logo quando eu tinha de andar da paragem do autocarro até à porta do prédio. Inspirei fundo e corri os metros necessários. Não é muito longo o caminho, mas tudo parece maior quando nos está a cair uma tromba de água em cima. Convenhamos, foi uma banhada. Mas banhada já tinha apanhado eu no cinema, mas essa não me tinha obrigado a mudar de roupa. Claro que fora a banhada também tive uma epifania.
O bom.
Entre uma sessão e outra sabe bem respirar um pouquinho, sentir o ar fresco, esticar as pernas, petiscar qualquer coisa. Pois, o que fiz foi isso mesmo, sai e passei na Avenida da Liberdade, roendo uma coisa com queijo e fiambre. Quando regressava, aguardei a mudança de sinal para poder atravessar a passadeira. Nisto chegou um casal, ambos cegos, ele com a bengala ela agarrada ao seu ombro. Pararam a meu lado e aguardaram. Quando a luz indicou que o perigo já não espreitava achei por bem avisar os senhores que já podiam atravessar, já está verde, foi o que eu disse. Eles agradeceram. E depois foi que me apercebi, se calhar nem ele nem ela conheciam a cor verde, se calhar nenhum deles saberia identificar o verde; mas no entanto sabiam que os sinais eram verdes e que quando o eram queria dizer que podiam atravessar. Da mesma forma, não querendo abusar da metáfora, Weekend (2011) é um filme com o qual nos podemos enamorar ainda que não sejamos homossexuais. Não é preciso praticar a felação para nos deixarmos levar pela calma bucólica de Weekend.
De forma a semelhante ao que se passa no novo filme de Manoel de Oliveira, o mundo todo está num quarto. O quarto como micro-cosmos; réplica em ponto pequeno do mundo, ou projecto de um mundo em construção. Weekend é um filme que se passa num quarto, a esse propósito tenho, porque não poderia deixar de o fazer, de salientar uma imagem e uma citação que esclarecem todo este paleio. Plano: depois de nos ter mostrado várias vezes o prédio onde mora o moço principal, regressamos ao exterior, todas as janelas quadradas não oferecem luz, todas menos uma, através dela reconhecemos o casal que vem protagonizando o filme. Beijam-se por entre as cortinas e o vidro. Citação: a certa altura um dos moços, aquele que ainda não escancarou o armário, diz algo como, aqui, dentro de casa, não tenho vergonha de gostar de ti, de fazer o que fazemos; acho até que podia ser feliz sendo gay. Percebemos então que o quarto é esse projecto de mundo em mudança, um mundo em que as pessoas poderão não ter vergonha de si. Já lá para o fim, há um outro plano digno de nota, o casal despede-se na gare dos comboios, a câmara filma-os de longe, através de uma rede metálica. Dá-se um zoom lentíssimo, a pouco e pouco vamos conseguindo ouvir o que dizem, percebemos que é difícil despedirem-se, o zoom continua, beijam-se, em público (ouve-se um assobio trocista e uma vociferação, queer!), já não são precisas as paredes do quarto, já podem ser felizes cá fora. Entretanto o zoom continuo e já não vemos a rede metálica, estão livres. O próprio enquadramento libertou-os da jaula do medo.
Mas se Weekend é um filme de três dias, lento e retalhado, Keep The lights On (2011) é um filme de 12 anos, igualmente lento e retalhado. Tenho que confessar que me é difícil escrever sobre este filme; deu-se em mim uma catarse, uma viagem emocional tão envolvente, que me me baixou o olhar analítico. Consigo no entanto supor a existência de uma corrente de cineastas Nova Iorquinos que filmam em modo de guerrilha. Comparo portanto Ira Sachs aos irmãos Safdie, os de Go Get Me Some Rosemary (Vão-me Buscar Alecrim, 2009). Será curioso reparar que estes dois filmes partilham o facto de terem um actor que carrega o filme às costas, um desempenho extraordinário de Thure Lindhardt (a sua personagem é um realizador que vence o prémio Teddy de melhor documentário, Keep The Lights On venceu – na realidade – o prémio Teddy de melhor longa de ficção). Se no filme dos Safdie tratava-se de um homem incapaz de crescer e tomar conta dos seus filhos, aqui trata-se de um homem incapaz de tomar conta dos seus relacionamentos, ou melhor, incapaz de lidar com o peso que estes trazem atrelados. Mas se a descrição vos parece melodramática percebam que a realização de Sachs trata tudo com pinças: filma tudo ao longe, quase sempre sem luz artificial – daí um grão muito marcado em várias cenas-, nunca há grandes sinais de virtuosismo – nada de enquadramentos estrambólicos ou planos complicados; a cima de tudo quer-se o naturalismo. Deixo como nota final a banda sonora de Arthur Russell que é responsável pela coesão duma narrativa tendencialmente dispersa.
O menos bom.
Era aqui que queria chegar, banhada é a expressão que se deve associar ao segundo dia de festival, mas vamos por partes.
Regressando ao início, o meu segundo dia começou com um filme da competição de longas de ficção, Norodzee Texas (North Sea Texas, 2011), primeira longa para o seu realizador (Bavo Defurn) e os sintomas de primeira obra estão lá a rodos, não só por ser um filme sobre o coming of age, principalmente por ser mais um filme sobre o coming of age.
Um menino numa zona rural da Bélgica vive com uma senhora roliça (sua mãe) que conquista todos os homens da terra com o seu acordeão (sim, há qualquer coisa de burlesco). Ele coitadinho cresce em bares (onde a mãe caça) e na casa da vizinha, a mãe carinhosa que ele nunca teve. Como seria de esperar o filho desta é um pouco mais velho e é um moço engraçado; ele anda caidinho e o outro até gosta da atenção. O menino tem uma caixinha de sapatos onde guarda objectos que lhe fazemreavivar a memória (uma base para copos, um pano sujo, peças de puzzle, uma tiara, e por aí fora). O realizador parece consumir-se nesse sede coleccionista organizando a progressão narrativa nessa mesma caixa. Várias vezes somos levados a um flashback causado por um dos objectos da dita caixa. A par disso, o trabalho de decoração e guarda-roupa torna-se demasiadamente ostensivo, cada objecto tem que ser de época (sim, tudo isto se passa nos anos setenta), os carros, os telefones, os utensílios de cozinha, o rádio. Parece que estamos dentro de um museu. E num espaço assim, onde tudo parece intocável não há como ligar com as personagens. Estamos sempre distantes, estamos sempre do outro lado da redoma de vidro que protege todo o filme. Nunca somos convidados a entrar. Aliás, será curioso reparar na persistência num desses objectos, uma bola de plástico daquelas que se agita e neva lá dentro; é assim que o filme se mostra, preso dentro de uma bolinha de plástico para a qual podemos olhar, mas nunca entrar.
Acabada uma sessão, começou outra, uma das mais antecipadas, “exibição única”, “filme que circulou o mundo”, “coisa preciosa”, “vão adorar”. O filme que levantou tanta gente do seu confortável sofá para irem ao São Jorge (sentarem-se de novo), foi o filme de abertura do Queer Art, Marina Abramovic: The Artist is Present (2011). Para quem possa não estar ao corrente, a senhor Marina é uma preformance artist, querendo isto dizer que as suas obras são fugazes, e irrepetíveis. Então, perguntará o leitor, como foi possível dedicar-lhe o MoMA uma retrospectiva? Pois bem, é esse o objectivo do documentário de Mathew Akers, dar a conhecer a artista e todo o trabalho que se esconde por de trás dessa exposição que esteve em exibição no dito museu durante três meses no ano de 2010.
O título do filme é o título da dita exposição e Marina decidiu responder à letra, estando presente (com uma performance) durante todos os dias da exposição, desde a abertura ao fecho. A peça consistia em estar simplesmente presente: um espaço aberto delimitado como um palco, rodeado de projectores, e ela no centro sentada numa cadeira; à sua frente uma mesa e outra cadeira, vazia. Nessa podia sentar-se qualquer elemento do público, e a performance consistia em simplesmente olharem-se nos olhos. Radical? com certeza, hoje em dia olhar alguém no metro nos olhos é incomodativo, quanto mais fazê-lo durante vários minutos.Um dos aspectos mais particulares do trabalho de Marina é o facto de esta encarar a arte como parte integrante do sofrimento (para Pessoa eram três as dores, para marina é só uma, a física – cortar-se durante as preformances, permitir que o público a maltrate, atirar-se contra uma parede incessantemente, jejuar durante dias, enfim uma panóplia de situações extremas). Mas o silêncio e o dito abrandamento são também elementos comuns a muitas das suas obras.
Então como filmar uma artista tão complexa? das duas uma, ou de forma profundamente pedagógica, tentando interpretar as obras ou dar as ferramentas ao espectador para o fazer; alternativamente fazer um documentário que entre em sintonia directa com a obra, funcionando como um prolongamento da mesma. Mathew Akers não faz nem uma coisa nem outra, não é capaz de nos mostrar a obra sem artifícios, tem que haver sempre uma voz off de um dos convidados a comentar o que estamos a ver (porque o público é muito burrinho e não percebe) e além disso, quando os comentadores estão calados há uma musiqueta a dirigir-nos o olhar, agora esta cena é emocionante, agora é arrepiante, agora é …; por outro lado nunca segue os ensinamentos da artista, a montagem é frenética, temos os fast motions a darem-nos a noção de tempo, quando podia deixar-nos simplesmente olhar para as performances. Mas o momento mais definidor dessa dessintonia com a artista é com a peça fundamental, The Artist is Present, onde a câmara encara a artistas e o público sempre em campo/contracampo num ângulo que não os 180º. Ou seja, o espectador nunca entra dentro da performance, nunca olha directamente Marina nos olhos (fá-lo um única vez na abertura do filme), é sempre um observador da própria performance e isso é desvirtuar a obra da artista, que propunha uma ligação única entre o público e ela mesma. Outro caso de dessintonia: Marina está a ser entrevistada e quando acaba a entrevista ela propõe ao entrevistador que lhe faça uma pergunta da qual ela já tem saudades: Porque é que o meu trabalho é arte? Apesar de artista pedir que lhe perguntem, o realizador nunca o faz, nem sequer pretende explorar os limites do que é chamado de arte. Pior que isso julga aqueles que o fazem; uma cena sintomática é a utilização de um excerto do noticiário de Fox News (a conhecida rede noticiosa conservadora) onde se exclama a indecência de haver nus na dita exposição; em vez de ser pedagógico e tentar esclarecer (ou simplesmente explorar) a questão, Akers limita-se a provocar um risinho no espectador já evangelizado pela obra de Marina Abramovic.
E o mauzinho.
No final da noite de Sábado, foi por isso que apanhei a banhada (ambas), decidi-me por Fucking Different : XXX (2011). Esta é a quarta incursão do projecto Fucking Different, e a primeira a tornar explícito o sexo. Aliás esse foi o objecivo de Kristian Peterson que é organizador de um festival pornográfico na Alemanha e através do qual encontrou os vários realizadores (as quais deu um orçamento de 500 euros) para fazerem uma curta pornográfica de tema livre. O resultado é mais ou menos o esperado, oito filmes pornográficos, a maioria a perpetuar uma série de estereótipos(todas as lésbicas têm pelos nos sovacos). Claro que há excepções, Blümshensex que encara o fistng a duas mãos como acto bucólico e romântico, New Kid On The Bolck filme de época (anos noventa) onde adolescentes intercalam o sexo e os videojogos, ou ainda Offing Jack a curta de Bruce LaBruce [que os mais atentos ao festival recordam-no de L.A. Zombie (2010) com o François Sagat ou Otto; or, Up with Dead People (2008)] que se interessa mais por um dispositivo semelhante ao de Dogville (2003) do que no sexo propriamente dito. Em qualquer dos casos, é de pornografia de que estamos a falar e mais que isso, por muito inspirados que os realizadores fossem, 500€ é uma quantia ridícula para fazer cinema. Mas a questão é mesmo essa…
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[…] Andrew Haigh, respectivamente. A Britcom de culto vira agora filme e Andrew Haigh, realizador de Weekend (2011) e de 45 years (2015), quando viu a série homónima cancelada conseguiu que a HBO […]