Foi a força da memória que atrasou a chegada deste texto. Ao revermos La Femme Infidèle (A Mulher Infiel, 1969), designadamente a sequência central, a do homicídio, esse primeiro texto foi deixado de lado para permitir o regresso a Dial M for Murder (Chamada Para a Morte, 1954), o Hitchcock a que nos dedicámos na crónica do mês passado.

Mais para a frente voltaremos ao início do filme, mas para já vamos situar-nos nessa sequência fundamental, na visita de Charles (Michel Bouquet) a Victor (Maurice Ronet), amante de Hélène (Stéphane Audran), esposa do primeiro. A sequência é longa, são cerca de 15 minutos, dispostos no mesmo lugar, o apartamento do amante, que dialoga com o domicílio conjugal de Dial M for Murder, e a tal sequência de quase meia hora, que partilha com esta a gestão do tempo do cinema, no desenho do espaço para o adultério e o homicídio como ingredientes propícios à imaginação, ao desenvolvimento de narrativas que dão a ver características do humano, encobertas pelas convenções sociais.
Chabrol instala uma gramática próxima da de Hitchcock, em Dial M for Murder, e coloca os dois personagens sentados, numa disputa proporcionada pelo ritmo do campo-contra-campo, uma contenda por uma mulher, mas também por universos apartados: de um lado, a conjugalidade do matrimónio, do outro, os prazeres dos encontros casuais, proporcionados pelo sexo.
Quando Charles visita Victor, era evidente, tanto para a personagem do marido como para o espectador, que Stéphane Audran mantinha há algumas semanas uma relação extraconjugal com Maurice Ronet, sendo aquele apartamento o lugar preferencial para os encontros. Por isso, é surpreendente, tanto para o espectador como para Ronet, a forma como, à entrada do apartamento, Charles se apresenta sorridente, no papel de marido de Hélène. Ainda debaixo da ombreira da porta, o rosto do amante assume o incómodo e a desconfiança, perante um marido amistoso que não hesita em meter os pés no apartamento. Charles passeia-se pela sala, detém-se a observar a biblioteca do amante, como um cientista abnegado, como um alter-ego de Chabrol, o analista da burguesia, que ambicionava expor, em grande parte da obra, a autópsia daquela classe, representativa de um status quo que aquele tempo, os ares do Maio de 1968, parecia disponível para derrubar.



Numa clara afinidade com o personagem de Ray Milland, em Dial M for Murder, também Charles é o protagonista de Chabrol, o personagem que parece ditar a narrativa enquanto age, como um dramaturgo que pensa alto. O marido diz ao outro que ele e Hélène têm uma relação aberta, uma vida amorosa independente e, por isso, depois da mulher lhe ter falado dele, resolveu visitá-lo. Tal como o personagem de Swann no filme de Hitchcock, também Victor se equilibra entre a surpresa e um aparente alívio, assente na benevolência demonstrada pelo marido da amante. Quando Charles diz a Victor que ele é um privilegiado, pois Hélène acumulara vários casos amorosos, mas nunca tão duradouros, recordamo-nos da trama de Deep Water (1957), romance de Patricia Highsmith, que foi adaptado por Michel Deville, em Eaux Profondes (1981), com Jean-Louis Trintignant como marido de Isabelle Huppert, que interpretou Mélanie, uma mulher adúltera, que dentro de uma relação aberta, começara a humilhar o marido com sucessivas traições.
Os personagens de Audran e Ronet conheceram-se no cinema, o lugar apontado à escuridão, à libertinagem e ao ócio, num prenúncio de hedonismo, que dialoga com insistência com os personagens dos dois actores, como vimos em crónicas anteriores, em Les Biches (As Rivais, 1968), da parte de Audran, em La Piscine (A Piscina, 1969) e em Plein Soleil (À Luz do Sol, 1960), em que Ronet rivalizou com Alain Delon, sempre com o homicídio e o ciúme como motes. Victor encostara-se a Hélène, no lugar ao seu lado, e sentira uma espécie de disponibilidade. Com Charles como um ouvinte dedicado, Ronet passa-lhe a ideia de que a ligação entre ambos foi expedita, pois no final da sessão foram beber um copo e, poucos dias depois, iniciaram os encontros no apartamento do escritor, uma profissão que completa o retrato de deboche, associado ao vício do personagem, do ponto de vista do marido.
Chabrol instala uma gramática próxima da de Hitchcock, em Dial M for Murder, e coloca os dois personagens sentados, numa disputa proporcionada pelo ritmo do campo-contra-campo, uma contenda por uma mulher, mas também por universos apartados: de um lado, a conjugalidade do matrimónio, do outro, os prazeres dos encontros casuais, proporcionados pelo sexo. Charles procura desconcertar o outro e pergunta-lhe se está satisfeito com Hélène. Ronet, um pouco desorientado, acaba por responder afirmativamente. Como contraponto ao encontro furtuito do cinema, Charles reconta ao outro a sua história de 11 anos com Hélène, com quem partilha um filho de 10 anos. O matrimónio é definido não apenas como uma relação conjugal, mas antes um universo intocável, que não deveria ser corrompido. O amante alinha na encenação e diz a Charles que ele é um sortudo, por ter casado com uma mulher como Hélène, pois a ex-mulher dele era péssima, principalmente quando comparada com a ternura, com a mulher doce representada por Audran. De forma espontânea, Victor diz a Charles que, para Hélène, viver em Versalhes, no campo, longe de Paris, é um pesadelo, numa alusão que faz com que o espectador reitere a ligação entre o sexo e a cidade, espaço para a degeneração expressa pelo adultério: Hélène é uma mulher da cidade, como se estivéssemos em Sunrise (Aurora, 1927), de Murnau. Charles é apanhado de surpresa, como um dramaturgo que não reconhece o seu texto, pois confessa ter sido Hélène a preferir viver no campo, apartada da cidade.


Victor desafia a sua visita a conhecer o apartamento. Charles agradece e diz-lhe que assim ajuda a imaginar. O amante volta-se para o outro, exclamando a surpresa: um pouco pervertido, não? O nosso protagonista continua a escolher os caminhos da narrativa e diz que não é tanto uma perversão, é apenas divertimento. Os dois homens penetram, então, no quarto e o espectador observa Charles, que por sua vez observa a cama desfeita – como se os amantes a tivessem desocupado há minutos – numa oposição à ordem burguesa. Charles oculta do outro um esgar de asco e o seu olhar identifica um isqueiro metálico enorme, que está pousado no quarto. Enquanto Charles ergue o isqueiro, Ronet diz-lhe que foi Hélène quem lho ofereceu, depois de o ter trazido de casa, com o pretexto de que o marido o esquecera. Charles pega no assunto e como um solilóquio diz que aquele isqueiro fora o seu presente no terceiro aniversário do casamento. Este isqueiro recorda-nos Strangers on a Train (O Desconhecido do Norte-Expresso, 1951) e a forma como Hitchcock valorizara os objectos inscritos no romance de Patricia Highsmith. Também aqui, o isqueiro e o seu simbolismo afectivo parecem tornar-se num gatilho, na deambulação de Audran entre os dois homens, naquela partilha do objecto, que participara do domicílio conjugal e estava agora no quarto dos amantes adúlteros.


A câmara de Chabrol enquadra um aparente mal-estar e desorientação de Charles, que sua abundantemente. Mas, rapidamente, o marido ergue-se para atacar o amante com uma estatueta de madeira, com que desfere uma forte pancada na fronte do outro. Victor tomba, inanimado. O sangue banha a estatueta e Charles vai à casa de banho para a lavar. A peça de madeira é uma espécie de busto feminino, que parece decalcado da beleza de Hélène, que sublinha a importância significativa dos objectos e nos põe a pensar que a denominação de Hélène para o personagem de Audran é também intencional, transacionada a partir da Helena de Tróia, a mais bela mulher do mundo na mitologia grega, uma beleza capaz de arrastar o mundo para a guerra.
No centro do quadro, Chabrol parece desejar congelar a imagem, com o casal e o filho como a figuração de uma burguesia entorpecida nos seus privilégios, mas talvez com a transformação à espreita, fora de campo, para reconfigurar o quadro através do desejo e do homicídio.
Charles, após limpar as impressões digitais em vários objectos, lava, então, o sangue do pavimento, o que nos recorda o esmero da limpeza de Norman Bates, no Psycho (Psico, 1960) de Hitchcock. As acções tomam tempo, simulam um tempo real, na exposição do labor resultante do que se segue a um homicídio, e também como uma espécie de catarse da tensão advinda para Charles daquele encontro e das suas revelações, daquele leito maculado pelo objecto com que celebrara o aniversário do matrimónio. Depois, o protagonista lava o balde e o pano utilizado na limpeza, na conclusão da tarefa, como se fosse o laborioso trabalho de uma mulher a dias numa casa burguesa. A fechar a sequência, Charles usa os lençóis da cama dos amantes para envolver o cadáver, em mais um uso figurativo dos objectos.

La Femme Infidèle começara com uma sequência em que a mãe de Charles visita a família. Depois de uma conversa entre Hélène e a sogra, enquanto observam as fotografias de Charles na infância e na juventude, as mulheres comentam que Charles fora um rapaz magro. Na despedida, a velhota diz ao filho que ele deveria fazer mais exercício, caso contrário engordará. Para lá da ironia do comentário, se pensarmos no desafio físico a que Charles será desafiado para se libertar do corpo do amante da mulher após o homicídio, a resposta do filho enobrece o status burguês: está óptimo assim, pois uma mudança, no seu ritmo de vida, seria muito perigosa. É a introdução a um mundo cristalizado, o matrimónio no contexto burguês, uma idealização que Charles tudo fará para conservar, nem que para isso o protagonista tenha que promover uma acção que tudo destrua, em algo aproximado ao extremar dos exemplares do romantismo.
Chabrol dedica-se a retratar este idílio romântico, como se fosse uma paisagem, ao demorar-se nos enquadramentos amplos da casa burguesa, e o seu extenso relvado, ladeada por um bosque, numa França apartada de Paris. No centro do quadro, Chabrol parece desejar congelar a imagem, com o casal e o filho como a figuração de uma burguesia entorpecida nos seus privilégios, mas talvez com a transformação à espreita, fora de campo, para reconfigurar o quadro através do desejo e do homicídio. Um pequeno ecrã televisivo é também um sintoma da alienação da casa burguesa, como se exemplifica numa sequência em que, enquanto mira a televisão, Charles ouve os planos da mulher para o dia seguinte: uma limpeza de pele e um corte de cabelo, e talvez uma ida ao cinema. Nessa noite, no leito conjugal, eles miram-se, mas não há sexo: Audran tem calor, está destapada e abre a janela, enquanto o marido se mantém coberto pelos lençóis, como uma barreira inibidora do desejo, que apenas deve ser concretizado de quando em quando, como um exercício de contabilidade organizada.
A suspeita de adultério é instalada na mente do protagonista e do espectador, com recurso à intercepção de telefonemas inconvenientes, como Hitchcock fizera em Dial M for Murder. No final do dia que Hélène passara na cidade, Chabrol sinaliza a suspeita do seu protagonista ao colocá-lo a remover a cortina “hitchcockiana”, enquanto observa a chegada da mulher, a partir da janela do seu gabinete, onde gere uma agência de seguros. Na noite anterior, o espectador fora informado, através dos diálogos do casal, que Audran não iria conseguir almoçar com o marido, num claro sinal, para nós e talvez para Charles, que a essa hora a mulher infiel estaria a partilhar o leito do amante. Numa das noites, Charles permanece acordado, ao lado de Hélène que dorme, como se observasse as suspeitas ao vigiar o sono profundo da mulher, no somatório dos pequenos e subtis indícios que o filme recolhera até então. Por outro lado, Charles parece tudo fazer para oferecer a felicidade à esposa, ao proporcionar-lhe, por exemplo, uma ida a uma discoteca com amigos, onde a beleza de Hélène é cobiçada por todos. Hélène, no fim dessa noite, agradece ao protagonista, o que proporciona um acrescento de ambiguidade no filme, no retrato de um casal feliz, de uma mãe afectuosa e dedicada ao filho, numa harmonia que emparelha com o hedonismo, que identificamos no contexto de Les Biches, e que, até certo ponto, parece acolher as possibilidades do adultério, mas que navega num equilíbrio instável, que pode convidar ao homicídio, a uma resolução que quebre o triângulo e renove o matrimónio e a plenitude do domicilio conjugal.
O equilíbrio da casa burguesa põe o pé no cadafalso quando Charles contrata um detective, para saber o nome e a morada do amante de Hélène; o protagonista insiste no desejo de saber a verdade, quando o investigador insinua que haverá sempre a possibilidade de nada encontrar. Dias depois, o detective apresenta o relatório: Hélène visita o amante três vezes por semana, com estadas de cerca de duas horas. Até na transgressão, o mundo burguês obedece a uma certa disciplina, a um ritmo controlado, submetido à moderação. Charles, depois de um percurso em que carrega a certeza de uma história de adultério, chega a casa e Hélène e o filho esperam-no com champanhe: o rapaz tinha sido premiado como o melhor aluno de História. La Femme Infidèle está impregnado de uma ironia sagaz, como se essa distância fosse uma forma de sobrevivência para a família, para o contexto burguês do matrimónio. Eles brindam a um dia maravilhoso.

Chabrol mostra apenas uma vez o adultério em acção. Como um contra-campo da narrativa, o protagonista observa o apartamento, ensopado pela tarde de chuva, em mais uma analogia com Dial M For Murder e a sequência em que Ray Milland mirara da rua Grace Kelly e o amante na cozinha, apaixonados, na partilha da confecção de uma massa. No leito do adultério, após uma dose generosa de sexo que o espectador apenas pode intuir, Hélène e Victor partilham um pequeno lanche. Enquanto comem, Chabrol aproveita para solidificar o papel de Hélène como mãe dedicada que, em oposição ao amante (divorciado, que apenas vê os dois filhos uma vez por mês), seria incapaz de viver longe do filho. Hélène acrescenta que decerto Charles sentirá o mesmo. Esta sequência parece demonstrar a firmeza daquele casamento, associada à dedicação de Charles, pois mesmo considerando o triângulo uma figura instável, o adultério insinua-se como conveniente para todos. Há apenas algo que prepara o espectador para a visita do protagonista ao amante e o consequente homicídio. Chabrol detém-se em extensos travellings do bosque, ao largo do domicílio conjugal, acompanhados por um piano melancólico, funesto, como um prenúncio da derrocada daquele cenário, que coloca em contra-campo Charles a assistir sozinho a uma emissão televisiva, com aquele pequeno ecrã a ultrapassar o estatuto de mera latência, para anunciar o eminente derrube daquele equilíbrio.



Propomos uma nova elipse, para reencontrar Charles após o homicídio do amante de Hélène. Depois de preparar a mala do carro, o protagonista arrasta com esforço o cadáver embrulhado nos lençóis da lascívia. O espectador sente o peso daquele corpo e o tempo que passa, na correspondência de um percurso que atravessa o logradouro, nas traseiras da casa, até à rua. O cansaço é manifesto no corpo vergado e no rosto suado de Charles, como se fosse uma proporcionalidade matemática com o peso de um homicídio. Em movimento, observamos de dentro do carro o cartaz de Les Biches na fachada de um cinema da cidade, como se Chabrol procurasse intensificar a relação entre os dois filmes, pois também no filme anterior o equilíbrio do universo burguês fora quebrado por um Ripley do sexo feminino, como vimos na crónica anterior.
Durante vários segundos, Chabrol enquadra o rosto estafado de Charles, enquanto este arrasta o corpo, antes de o lançar ao rio. O rosto do protagonista não sinaliza qualquer remorso, nunca saberemos se alguma vez o terá, é apenas a fadiga resultante do desgaste daquela refrega. Mais uma vez o fantasma de Psycho, e de Norman Bates, cai sobre o filme, quando observamos o cadáver a hesitar afundar-se no rio, para pouco depois acabar engolido pela superfície esverdeada do curso de água.
Pouco depois de regressar a casa, Chabrol coloca-nos no ponto de vista de Charles, que observa o movimento de Hélène no exterior da casa: uma imagem romântica, um ideal de beleza a despontar da natureza, como uma parte apensa ao idílio do bosque burguês. O plano é fixo e longo, mas não chegamos a ver Hélène bem definida, no seu caminhar em direcção à câmara colocada no limite do edifício. Observamos, então, a silhueta da mulher infiel como um quadro intangível, com a forma decalcada da estatueta que Charles usara para matar o amante.



Na noite da primeira visita da polícia ao domicílio conjugal, depois da dupla de detectives saír, o casal abraça-se, no desejo de partilharem a culpa. O espectador intui que nem foi necessário Charles descrever os detalhes do homicídio, pois Hélène recebeu, como uma corrente de consciência, toda a informação sobre o desfecho de Victor, tal como viramos em La Piscine, com Romy Schneider a adivinhar a culpa, para depois proteger Alain Delon, que afogara o rival Maurice Ronet. O abraço de Charles e Hélène enlaça o matrimónio, o adultério e o homicídio. No dia seguinte, Audran encontra o retrato de Ronet no bolso do casaco do marido. Ela queima a fotografia. A culpa estende-se naturalmente de Charles a Hélène, ele pela execução material do homicídio, ela pelo adultério, que fez perigar o universo burguês. Concretizara-se, então o homicídio conjugal, um esforço partilhado para aceder a um reequilíbrio, para repor a figura geométrica, a constância da família. Desfeito o triângulo, o casal, com o filho ao lado, dentro do bosque mágico, renovará um amor recíproco, sem tempo, sem termo.
Como nota de rodapé, valerá a pena referir que dois anos depois de La Femme Infidèle, Chabrol estreou Just Avant la Nuit (Remorso, 1971). O filme repete o casal de protagonistas – Michel Bouquet e Stéphane Audran, que mantêm os nomes dos personagens e em grande medida as demais características, e que reincidem no enredo do adultério e do homicídio, sendo que desta vez é Charles quem promove o adultério. Se Chabrol não fez sempre o mesmo filme, foi seguramente um dos cineastas que fez mais vezes o mesmo filme, a procurar acrescentar camadas nos jogos e desafios morais que implicam o espectador. Como um eco do filme anterior, e da culpa partilhada dentro do matrimónio, já próximo do final de Just Avant la Nuit, perante a confissão do homicídio proferida por Charles, Hélène enlaça o marido: ninguém é culpado do que acontece num pesadelo.
