Claude Chabrol afirmou por altura da estreia de Les Biches (As Rivais, 1969) que o homicídio era algo que lhe interessava explorar nos seus filmes, mas esse interesse não se inclinaria para o desenho de narrativas decididas a solucionar um puzzle (Whodunit), mas antes na promoção do estudo do comportamento humano, através de personagens envolvidos em homicídios. Poderia ser um testemunho proferido por Patricia Highsmith. O guião de Les Biches foi escrito por Chabrol em parceria com o seu guionista favorito, Paul Gégauff, que trabalhou com o cineasta francês em catorze filmes, em algo que culminaria com Une partie de plasir (1975), que seria protagonizado por Gégauff, sendo decalcado da sua biografia, como iremos explorar numa crónica futura. Paul Gégauff escreveu o guião de Plein soleil (À Luz do Sol, 1960), na primeira adaptação para cinema de The Talented Mr. Ripley (1955), o primeiro de cinco romances que Highsmith dedicou ao seu Tom Ripley. O filme de Chabrol é identificado como uma adaptação livre do primeiro Ripley, mas com uma subversão do triângulo, agora composto por duas mulheres e um homem. Les Biches está povoado de trocadilhos, numa riqueza de elementos disponíveis para a interpretação, desde logo no título, pois Les Biches pode ser traduzido por As Corças, mas na gíria francesa é lido lesbiches, que força a semelhança fonética com o alemão lesbisch, que significa lésbica. Esta associação de um animal às protagonistas do filme, também auxilia a abertura de um alçapão para a presença do mundo animal e do instinto no desenvolvimento da narrativa e nas acções dos personagens, apetrechados de uma consciência que foi sendo apartada da evolução do humano.

O prólogo do filme apresenta as duas mulheres protagonistas: Why (Jacqueline Sassard), uma jovem sem eira nem beira, que se dedica a pintar corças em passeios no espaço público e a recolher as moedas que os transeuntes ali deixam; Frédérique (Stéphane Audran), uma mulher um pouco mais velha, à volta dos 30 anos, que se apresenta com um chapéu masculino, numa estranha mescla, numa espécie de androgenia que comunica com o seu nome, pois Frédérique deriva do masculino germânico Frédérick, que encontramos amiúde entregue a homens da nobreza ao longo da História.
Se o espectador começa desde logo a ligar Why a Ripley, pela paixão da pintora pelo belo, que a equipara ao herói de Highsmith, um personagem com qualidades, a apreciar a arte e a música, que executa no cravo, há uma pequena sequência, pouco depois de as mulheres se conhecerem, que estabelece uma primeira conexão intencional. As duas param junto a um quiosque onde se vendem pequenas gravuras e Frédérique pergunta o preço de alguns dos desenhos. Há dois que parecem iguais, mas um é bastante mais caro que o outro. O vendedor diz que um é original, o outro a cópia. Frédérique observa um deles e diz “claro, esta é a cópia”, mas o vendedor diz que não, aquele é o “original”. É o primeiro indício, no paralelo com a redacção de Highsmith, que permitiu ao seu herói tornar-se uma cópia de Dickie Greenleaf, um jovem rico e mimado, numa cópia destinada a superar o original.
O valor da cópia e a adoção e valorização do simulacro são um dos eixos das narrativas policiais de Patricia Highsmith. Exemplificamos com Ripley Under Water (1991), em que a substituição de um pintor (Derwatt) por um falsificador (Tufts) é o mote da ação, servindo também para enriquecer o personagem de Ripley, um apreciador de arte, que manipula os acontecimentos dentro desse universo: “Ocorreu-lhe que Tufts se misturava de tal modo com Derwatt que era artisticamente impossível separá-los, pelo menos nalguns, ou quase todos, daqueles desenhos. Bernard Tufts tornara-se Derwatt em mais de um sentido. Bernard morrera num estado de confusão e vergonha por causa, de facto, do seu sucesso, por se ter transformado em Derwatt, por ter adotado o estilo de vida de Derwatt nas pinturas e nos desenhos de preparação. Nos trabalhos de Bernard, pelo menos nos que se encontravam na Galeria Buckmaster, não havia sinais de hesitações nos desenhos a lápis ou nos esboços a cores” (Ripley Debaixo de Água, p. 174). Para Ripley, os trabalhos de Bernard Tufts já não são meras imitações do trabalho de Derwatt, são antes quadros “igualmente bons” e que poderiam revelar o “desenvolvimento que o verdadeiro Derwatt poderia ter tido” se não tivesse morrido. E, por isso, do ponto de vista comercial, Ripley argumentava que essas obras não poderiam “perder valor” quando comparadas com os originais, e isso acontecera de facto, embora motivadas pela morte precoce do artista e por os quadros produzidos pelo falsificador serem agora catalogados como obras que até então não tinham sido encontradas (Idem, p. 175).



O pretexto para Why subir à casa de Frédérick é o de a jovem mulher precisar de um banho, a dar a senha, a sinalizar os seus parcos recursos, num paralelo com Tom Ripley, um norte-americano de origens pobres e raízes inferiores, mais ainda quando comparado com a riqueza e os privilégios dos Greenleaf. Why inicia o questionamento da relação master and servant, quando diz a Frédérick que quer tomar um café ali mesmo, enquanto está mergulhada na banheira da outra. No capítulo inicial desta luta de classes, a patroa Audran apelidará a outra de caprichosa quando ela rejeita o café, por estar demasiado doce. Com o olhar de Frédérick e de Chabrol a percorrer as pernas molhadas da jovem mulher, Why continua a subverter o estatuto das duas e ordena a Audran que se retire, para que ela possa sair da banheira, pois está nua. A patroa diz não compreender e, enquanto acende um cigarro, ensaia um periclitante equilíbrio: afinal, estão entre mulheres. Audran cede e sai da casa de banho, deita-se no sofá e observamo-la, talvez a imaginar o corpo nu e molhado de Why a erguer-se da banheira. A sequência fecha com o reencontro das mulheres, a normalizar a relação, mas de uma forma perversa, a satisfazer as duas, cada uma a enveredar por acções que se esperam delas, como os movimentos de um jogo de xadrez, que antecipa estratagemas futuros. Frédérique pede, então, a Why que se aproxime e arranja-lhe a camisa, enquanto lhe acaricia o abdómen ainda molhado. Depois, desaperta-lhe o botão das calças. O resto da sequência é engolida por uma elipse e fica na imaginação do espectador. Esta variação de Ripley, num corpo de mulher, que se envolve com outra mulher, é coerente com a percepção de que o Ripley de Highsmith tem também atributos de homossexualidade, com capacidade de se envolver com homens e mulheres.
A união é celebrada com álcool e a gramática de Chabrol coloca a câmara inebriada pela volúpia de Frédérique: a imagem desponta coberta por um véu (que a desfoca ligeiramente) sobre o rosto e o deleite da mulher que ocupa o centro do plano, remetendo Paul para o canto da imagem, replicando a ideia de que o arquitecto é apenas o objecto da luta de classes, protagonizada pelas duas mulheres.
Depois deste prelúdio, que apresenta a intriga e as duas personagens, Chabrol intitula o segundo capítulo com o nome de Frédérique, transferindo a acção para Saint-Tropez, lugar de hedonismo, um lugar com uma clara equivalência com a Mongibello imaginada por Highsmith para soltar o seu primeiro Ripley. Na primeira vez que as duas mulheres entram na casa de Frédérique, Why comenta as carcaças embalsamadas dos animais expostas na parede, cabeças e cornos, troféus de caça, que emparelham com artefactos e armas, como lanças e punhais. Frédérique diz que as trouxe de vários países africanos, enquanto exclama: “Adoro caçar”. Chabrol adensa, então, camadas sucessivas: à luta de classes já esboçada, junta a prática da caça, uma metáfora do jogo da sedução, da arregimentação de parceiros sexuais. Frédérique descreve a Why uma vida de ócio a tempo inteiro, uma letargia disseminada em jogos de cartas, festas e compras, em lojas e feiras. As cenas sucedem-se em evidências do estatuto das duas mulheres. Enquanto Frédérique mostra a Why várias embarcações de recreio e lhe fala no negócio que administra, iniciado pelo avô, a jovem mulher pergunta: “Mas isso não é um trabalho de homem?”. Esta insistência volta a recordar-nos a significação à volta do nome masculino e varonil da personagem interpretada por Audran, que esta reforça, pouco depois, ao questionar a virgindade de Why, pois imagina que ela já tenha dormido com alguém por necessidade, num claro paralelo com a baixa condição social de Tom Ripley. Esta fatia da narrativa é encerrada intencionalmente por Chabrol com a colocação das duas mulheres na cama, não apenas como amantes, mas como um casal, num domicílio conjugal peculiar: a patroa lê o jornal, a serviçal pinta as unhas e chega à outra um copo de água.

Paul, o personagem interpretado por Jean-Louis Trintignant, desponta no filme com a narrativa já adiantada, na condição de intruso, um elemento que testará a relação entre as duas mulheres. À volta de uma mesa de jogo, o hábil Chabrol emparelha dois movimentos: a degradação da relação entre Frédérique e Why, com a patroa a tratar a outra como uma propriedade sua, a quem dá instruções e ordens; e uma segunda articulação, que completa a outra, adicionando ao personagem de Audran os tons de um marido possessivo, que observa o flirt que se desenvolve entre Paul e a serviçal: Frédérique e o arquitecto Paul miram-se como se antecipassem um duelo. A sequência completa-se com um retrato do fim de festa, com mesas corridas a garrafas de álcool vazias e sobras de alimentos, uma sujidade a reclamar uma depravação de hábitos e comportamentos, a imagem da corrupção de um mundo burguês.
A jovem mulher imita o penteado da patroa, o desenho da sua boca, aproxima a sua pele à tez da outra, ensaia a voz, como uma personalidade esvaziada, disponível para ser colmatada. Perante o olhar de Trintignant, a réplica justifica-se: Frédérique empresta-lhe tudo e é óptimo partilharem os objectos e tudo o resto, no esboço de uma irmandade peculiar: é como mudar de pele.
Why envolve-se com Paul, num bosque encenado pelo artifício de uma noite americana, com Chabrol a colocar Why no lado iluminado do plano e o homem envolto pela escuridão, como um acessório que releva que é Why a protagonista, no elogio de Ripley e das suas qualidades. Em algo que a Literatura de Highsmith também reclamou, Why partilha com o espectador o fascínio pelas cambiantes de ver e ser visto, ao comentar com Paul que eles estão a ser observados, a mando de Frédérique. As duas mulheres conhecem as regras de um jogo, em que Audran julga tudo poder reclamar de Why, numa espécie de entretenimento, que a serviçal ensaia subverter, numa sucessão de simulacros, que terão no homicídio o único desfecho plausível.

Se a princípio o encontro de Frédérique com Paul parece convencer o espectador que a patroa pretende reclamar o direito sobre Why, cedo se percebe que se formará um novo par, uma união entre iguais, assente em dois personagens de elevada posição social, como um entreposto comercial, que fica evidente quando Paul faz uma visita guiada a um conjunto de casas junto a uma baía, que o arquitecto concebeu. A união é celebrada com álcool e a gramática de Chabrol coloca a câmara inebriada pela volúpia de Frédérique: a imagem desponta coberta por um véu (que a desfoca ligeiramente) sobre o rosto e o deleite da mulher que ocupa o centro do plano, remetendo Paul para o canto da imagem, com metade do rosto de fora do quadro, replicando a ideia de que o arquitecto é apenas o objecto da luta de classes, protagonizada pelas duas mulheres.
Chabrol dedica o capítulo seguinte a Why, a sua protagonista, que fica sozinha em Saint Tropez, depois do anúncio da partida de Frédérique para Paris, na companhia de Paul. O remeter de Why à solidão é coerente com a caracterização do Ripley de Highsmith, que enriqueceu o seu protagonista com um discurso romântico, adoptado também por Chabrol, que enquadra Why em longas caminhadas em bosques, com o mar a estabelecer a profundidade dos planos, e que culmina com a jovem pintora a deitar-se numa vala, como se fosse um leito de uma sepultura.


No regresso do casal é Why quem instiga a figura do triângulo, contra a natureza das coisas, no mundo burguês, no instituído domicílio conjugal da patroa e do arquitecto. Este processo é iniciado numa sequência decalcada de Plein soleil, quando Alain Delon se transformava no outro, se duplicava no espelho. Mas aqui o guionista, Paul Gégauff, enriqueceu a sequência com uma variante: ao invés do alvo da cópia, é Paul quem surpreende Why a transformar-se em Frédérique. A jovem mulher imita o penteado da patroa, o desenho da sua boca, aproxima a sua pele à tez da outra, ensaia a voz, como uma personalidade esvaziada, disponível para ser colmatada. Perante o olhar de Trintignant, a réplica justifica-se: Frédérique empresta-lhe tudo e é óptimo partilharem os objectos e tudo o resto, no esboço de uma irmandade peculiar: é como mudar de pele. Esta vontade de replicar, de atribuir um valor real à cópia, dialoga com insistência com o património de Patricia Highsmith, da vontade de se alinhar com o jogo de reflexos de Tom Ripley, da identidade dos pintores, de Derwatt e do falsificador Tufts, e da obra daí advinda. Apesar de Why tudo fazer para dar volume ao triângulo, ao procurar agradar à dupla de patrões, Chabrol demonstra a parca fiabilidade da figura geométrica ao colocar o casal num plano apertado e o rosto de Why no outro, como um contra-campo da solidão de Ripley. Mas Why adapta-se, aninha-se na sua condição de serviçal, como o Delon felino de Plein soleil, tomada por uma doce doença, uma solidão enganada por um circuito de ideias, de imaginação, de acções no devir, com a paisagem marítima lá ao fundo.
Why é, então, colocada por Chabrol num pedestal, como um ícone de uma qualquer religiosidade de tempos remotos. Numa madrugada, o cineasta enquadra em close-up o rosto de Why tomado por uma luz branca, potente e límpida, na transição do sono (e do sonho) para um acordar que olha nos olhos o espectador, um exercício de empatia, mas também um elogio da personagem, da sua beleza e espírito transgressor, no prólogo de uma missão: promover a ruptura, a implosão do conservadorismo e do status quo da burguesia, marcada pela mácula da apatia, parcela de um universo inerte, cristalizado. Why passeia-se pelos corredores da casa, como uma entidade insondável, isenta das amarras da moral, apenas alimentada pela imaginação, pelo devir e por um planeta de disputas na sua cabeça, para depois se encostar à porta do quarto do casal, à escuta da volúpia dos patrões, que as imagens de Chabrol evidenciam, um deleite talvez alimentado por Frédérique e Paul pressentirem a proximidade de Why.


Quando Why se passeia, uma última vez, junto à parede que expõe os troféus da caça, revela um especial interesse por um punhal, no desenho da tangente entre o seu pensamento e a acção, na antecipação do desfecho da narrativa, no acerto de contas que o próprio Chabrol verbalizou: “Os ricos usam os seus privilégios na relação com os pobres, tiram vantagens dessa relação desproporcional. Eles podem comprar as pessoas, para depois as submeterem, até que se dá a revolta, e a única revolta é a destruição”.
