O ciúme é a porta de abertura de La Piscine (1969). Na primeira sequência, Marianne (Romy Schneider) aborda Jean-Paul (Alain Delon), que está estendido no bordo da piscina. Os dois beijam-se e os corpos nus, encostados, escaldam, até que Schneider pede a Delon para lhe arranhar as costas, para pouco depois suspirar: ninguém faz aquilo como ele. A postura, a investida felina que identificáramos no Delon de Plein Soleil (1960), transfere-se para aqui, até que o casal é interrompido pelo som do telefone. O primeiro a suster os movimentos é Delon, mas cedo se percebe que é Schneider quem anseia a chamada. Depois dela atender, Delon iça-se calmamente da piscina e encaminha-se para a casa: do outro lado do telefone está Harry (Maurice Ronet), a caminho, para visitar o casal. Os dois cruzam-se, numa troca fugaz de olhares, e a câmara de Jacques Deray acompanha-os à vez, a elogiar, em plano-sequência, dois dos corpos mais desejados do cinema europeu, corpos bronzeados e ainda molhados, até se fixarem em dois compartimentos distintos onde trocarão frases breves, a emitirem sinais de desconfiança mútua, ou só a estimular um ciúme saudável.


Voltam a reunir-se ao sol, com Delon a tentar mostrar-se desinteressado e com Schneider a espicaçá-lo, a antecipar a chegada iminente de Harry, que traz um motivo adicional: uma filha, que Jean-Paul desconhecia. Logo aqui, inicia-se o esboço da densidade psicológica do personagem de Delon, a que se acrescentará a informação de que tentou suicidar-se, antes de conhecer Marianne. Tínhamos destacado, no texto dedicado a Plein Soleil, a passagem de Romy Schneider pelo set, assinalada por um cameo, que parecia informar o espectador do futuro da relação amorosa de uma parelha de actores em ascensão na década de 1960: ela mais deambulante, a experimentar cineastas europeus, mesclados com Welles e Preminger, que também se passearam pela Europa; Delon a apontar ao coração dos grandes autores do eixo franco-italiano, como protagonista de Visconti, Antonioni ou Melville. Aquela casa com piscina, ao largo da Cote d’Azur, marcaria o reencontro do casal dentro do ecrã, depois da separação em 1963, motivada pela relação de Delon com a também actriz, Nathalie Delon. Há uma vontade, partilhada com o espectador, de contaminar, de adensar o filme com o historial associado à relação entre Delon e Schneider, algo que é intensificado pela informação de que foi Delon quem pediu ao realizador Jacques Deray a contratação dela, numa tentativa de que a rodagem proporcionasse uma reconciliação com a actriz, algo que Delon já perseguira antes e a que Romy Schneider sucessivamente escapou.
Num automóvel desportivo, chegam Harry e a filha de 18 anos, Penelope, interpretada por Jane Birkin, com 23 anos e pouco depois de iniciar a ligação com Serge Gainsbourg, que se traduziria no enorme sucesso de Je t’aime… moi non plus (1969), disco e título do tema da volúpia com mais gemidos da história da pop francesa, no início de uma parceria tão frutuosa como polémica com o músico iconoclasta. Romy Schneider corre a abraçar Maurice Ronet e passa a mão pela chapa do descapotável, como se acariciasse Harry, o seu proprietário. Delon acede calmamente ao exterior da casa, de tronco nu, com uma toalha a cobrir-lhe a cintura e a mirar Jane Birkin. Em oposição do que sucedera com Marianne, é Ronet quem corre para cumprimentar o rival Delon, que se apressa a mostrar-lhe a piscina como o mais belo objecto daquela casa, a concretizar a ideia de que será ali o lugar do âmago da narrativa, no esboço de um oráculo para o seu desfecho.

Nessa noite, na cama, Delon dirá a Schneider que ela lhe falou dos vários amantes que teve, mas nunca de Harry (que era amigo dele, mais do que dela, diz a dada altura Marianne). Esse ciúme parece ser o mote para a volúpia entre eles, pelo menos da parte dela, sendo que Delon parece ensimesmado com o personagem de Ronet, como se o guião, que Deray escreveu a meias com Jean-Claude Carrière, propusesse uma espécie de continuação de Plein Soleil, da disputa entre os dois homens, que na adaptação do livro de Patricia Highsmith colocou Delon como Tom Ripley, a assassinar o herdeiro dos Greenleaf, interpretado por Ronet. Muito depois da produção de La Piscine, Delon confessou em várias entrevistas que evitava voltar ao filme, pois era demasiado angustiante observar os ainda jovens Ronet e Schneider, pois os dois morreram de forma prematura e até trágica: Maurice Ronet morreria na sequência de um cancro, aos 55 anos; Romy Schneider expiraria na Primavera de 1982, aos 43 anos, uma paragem cardíaca como possível sequela de uma operação aos rins, numa espiral que envolvera o abuso no consumo de álcool, a que se dedicara desde a morte do seu filho, David Christopher, aos 14 anos, no Verão de 1981.
Na manhã seguinte, a câmara e o olhar de Delon dividem a atenção por Penelope, uma rapariga reservada e sonhadora, e Harry, que devora com sofreguidão torradas (e geleia), empurradas pelo café da manhã. Perante a ausência de Marianne, Harry comenta que ela sempre gostou de se levantar tarde. Após insinuar que Delon estará a capturar a namorada, pois ela deixou de escrever, Ronet propõe-se acordá-la. Depois de observar por uns instantes o sono e o corpo desnudo de Romy Schneider, Harry abre de súbito as cortinas do quarto, fazendo a luz acordar a antiga amante. Enquanto isso, Delon mira a filha, que se estende junto à piscina, expondo o corpo de adolescente. Pouco depois, na sala, sobre uma base de saxofones arrastados, o esgar guloso de Harry desliza pelo corpo moreno de Marianne, perante a atenção de Penelope, a princípio confusa, a revelar progressivamente um olhar inquisitivo, reprovador da conduta do progenitor.

O filme de Jacques Deray justapõe duas sequências para permitir a competição declarada entre Delon e Ronet. A primeira ocorre a bordo do descapotável de Harry, que o outro conduz a uma velocidade excessiva, com ultrapassagens arriscadas, que a montagem alterna com o objecto da contenda: o corpo deitado e nu de Marianne, percorrido pela câmara, pelo ponto de vista do lento caminhar de Penelope, no bordo da piscina. É como se o som agressivo do motor do potente automóvel, um grito animal que apura a competição naquele habitat, fosse audível pela jovem rapariga, eleita como testemunha preferencial na evolução geométrica daquele triângulo. A segunda sequência coloca os dois homens a disputarem-se ao ritmo das braçadas na piscina, que Ronet vence, numa prova arbitrada por Romy Schneider. Através dos diálogos, também são dadas indicações sobre as profissões dos dois rivais, que contribuem para o seu antagonismo. Harry, um produtor discográfico, censura a nova actividade de Jean-Paul, que abandonara o ofício de escritor, para se dedicar à carreira de publicitário, algo que poderá ser lido como uma contribuição para os seus desarranjos sociais e comportamentais, como a expressão de um tempo em que a paisagem dos media se complexificava, em que as imagens e os ecrãs inauguravam uma omnipresença no quotidiano do público, se misturava a ficção e a realidade, num discurso povoado de simulacros, que no apelo ao consumo também haveria de arrecadar os seus mártires e traumas, como os inscritos na década de 1960, a partir de Hollywood e do seu star system.
Ao cair da na noite, Ronet chega de San Tropez com uma trupe, distribuída por vários automóveis. O ambiente de festa instala-se na casa, à volta da piscina, um hedonismo patrocinado pelo Verão, pela música, pela dança, por aqueles corpos e pelo Harry de Maurice Ronet, que o espectador aproxima ao Philippe Greenleaf de Plein Soleil. Enquanto Delon deambula solitário, como um sucedâneo de Tom Ripley, Jane Birkin observa a dança cúmplice de Harry e Marianne, que evolui para um abraço prolongado e terno. Irritada com o comportamento do pai, Penelope escapa-se para junto da piscina, onde também ocorre Jean-Paul. Ele procura persuadi-la de que não há qualquer problema com a intimidade entre Harry e Marianne: Delon encena essa desvalorização, para ocultar a necessidade de possessão de Marianne, em mais um dentro e fora das paisagens dos media, que joga com o que sabemos da relação entre Alain Delon e Romy Schneider no início dos anos 1960 e da vontade de a retomar, pelo menos da parte dele. Depois, Delon coloca a mão sobre o ombro de Birkin, a fechar um conjunto de planos espelhados pela piscina e testemunhados pela observação de Marianne, na concretização da evolução do triângulo amoroso, promovido ao perigo da forma do quadrado. O espelho de água, que começou como lugar de desejo e de competição, transformar-se-á num pântano, num espelho de incerteza, de morte e de culpa.
Estamos a meio do filme, e não fora a necessidade de passar ao leitor as contaminações advindas dos anteriores encontros entre os protagonistas, dentro e fora da grande tela, o texto deveria começar aqui, no elogio da potência da elipse, na influência sobre a narrativa, na determinação do destino dos personagens e as respectivas leituras do espectador, que ambiciona preencher os buracos com a imaginação. A manhã traz os ecos da noite festiva, na reconfiguração do quadrado, na fractura das duplas originais, Jean-Paul & Marianne e Harry & a filha. Marianne pretende ir às compras e desafia Harry, para experimentar a potência do seu automóvel desportivo. No contra-campo, como uma presa que anseia ser abocanhada pelo caçador, Birkin fareja Delon pela casa, os dois começam a alinhar-se na vontade de punir Harry: o reencontro é suportado pela música, que convida ao movimento dos corpos, a sinalizar a disponibilidade tribal para o sexo. Mas as novas duplas continuam amarradas à anterior configuração, aos parceiros ausentes, a revelar os segredos dos dois rivais: a conversa entre Harry e Marianne versa sobre a adição do álcool de Jean-Paul, da sua insatisfação patológica, forçado a perseguir aquilo que não possui; Penelope relata um pai ausente, que adora que as pessoas pensem que ela é a sua namorada, para concluir com a asserção de que Harry não gosta de ninguém, mas espera que todos o adorem, depois de revelar que o pai lhe disse que deixou que o amigo ficasse com Marianne, mas que poderia recuperar a anterior amante, assim que o desejasse.


Quando Harry e Marianne regressam a casa, verificamos que os outros dois tinham saído, na escavação da primeira elipse, que insinua que um fim de tarde nas praias recônditas da Cote d’Azur pode ter sido o cenário para as intimidades que podemos imaginar com os corpos de Alain Delon e Jane Birkin. Harry e Marianne, como um casal, preparam o jantar, para pouco depois Maurice Ronet cortejar Romy Schneider, que desfila num longo vestido verde: “és maravilhosa”. Harry avança, as mãos atravessam o vestido e cingem o peito dela. Marianne diz que ele é louco, que podem ser apanhados, mas parece anuir e uma nova elipse, esta menos cavada, conduzirá a diferentes interpretações, conforme os anseios do espectador: uns dirão que as vidas anteriores do casal conduziram a uma volúpia ágil e célere, outros suporão que a seriedade de Marianne conteve o parceiro, sendo que alguns poderão ainda invocar que não houve tempo, que o regresso a casa de Jean-Paul e Penelope embargou os preliminares do casal.
Os quatro sentam-se à mesa, há comida chinesa, servida com as suposições dos personagens, e dos espectadores, propiciadas pelas elipses, numa nova organização do quadrado, disponível para todas as variações. Harry identifica as dificuldades de Marianne e ensina-lhe a usar os pauzinhos, o que volta a emparelhar Maurice Ronet com Philippe Greenleaf e Plein Soleil, quando ele humilhara Delon por não saber usar os talheres para comer peixe, para exibir a baixa condição daquele na presença da namorada (Marge, interpretada por Marie Laforêt), no início da longa sequência do veleiro, que conduziria ao homicídio do milionário, às mãos do audaz Tom Ripley. Harry continua a dissertar sobre comida chinesa, vietnamita ou indonésia, a forma de a confecionar e apreciar, sem notar a irritação de Marianne, que se expande para os outros dois quando Ronet pergunta à ex-amante se se recorda dos restaurantes de Amsterdão. Jane Birkin é a primeira a recolher-se, a desfazer a figura geométrica, com cada um dos personagens a seguir o seu caminho, mas com Harry a tornar o seu abandono audível: ouvimos o barulho do motor, o automóvel e a sua potência são a forma como o personagem deseja ser representado.

Jacques Deray começa a preparar o homicídio de Harry, quando nos mostra a chegada de Ronet pelo olhar do embriagado Delon, com o desenho da piscina a esboçar-se ao fundo dos planos, a antecipar o palco do crime. No fim da caçada, a piscina, além de espelho do passado, das características dos personagens e das suas rivalidades, será também o lugar evidente para a resolução do conflito. A morte de Harry traduz-se numa necessidade para Jean-Paul, com afinidades com o Ripley de Delon, na punição de uma presa, no desejo impossível de frear, de punir o passado de Harry, que já começara com a relação com a filha Penelope, mas também na vontade de o condenar por tê-lo privado da beleza de Marianne, num paralelo com a conquista de Marge em Plein Soleil, assegurada pela remoção de Greenleaf.
Como um Ripley de destreza e força, Delon afoga o outro, empurra-o sucessivamente para o fundo da piscina pela cabeça, numa semelhança manifesta com o homicídio central de Deep Water, romance de Patricia Highsmith, adaptado por Michel Deville, em 1981. A tarefa é árdua, são precisas sucessivas investidas, até que Maurice Ronet fica a flutuar na superfície do espelho de água. Depois, Deray, como fez René Clément, como exemplificou frequentemente Claude Chabrol, detém-se em sequências breves, mas explicitas, na revelação do desafio físico, no peso daquele corpo morto que é preciso erguer da piscina. Já depois de procurar ocultar os sinais de homicídio, o corpo de Delon rende-se ao cansaço e o rosto projecta a antecâmara do remorso, como quem se olha de fora para observar um emaranhado de desordens psicológicas, que resultaram naquele homicídio. E é aqui que findam os paralelos de Jean-Paul com Ripley, pois o herói de Highsmith não conhece o arrependimento, nem questiona as acções prévias, a sua única preocupação é prosseguir, manter o domínio da situação.

O terceiro acto é inaugurado com um curioso plano, em que o trio resultante daquela morte se junta no bordo da piscina, no reiterar daquele lugar como um espelho mágico, de divertimento e de sexo, mas também de morte e de trauma. À afirmação de Marianne de que não será mais capaz de nadar ali, Jean-Paul propõe o pronto esvaziamento da piscina. Mas, Marianne diz que essa opção apenas piora as coisas, consciente de que aquele lugar é um envasamento de memórias, que é necessário defrontar, como a catarse associada a um drama. O inspector da polícia visita o casal Jean-Paul & Marianne e, tal como em Plein Soleil, parece farejar a culpa em Delon. As observações do meticuloso inspector fazem instalar a dúvida no olhar de Romy Schneider, que observa Delon, tal como Hitchcock fizera com o rosto de Ruth Roman, como uma evidência da culpa de Farley Granger, em Strangers on a Train (1951), na adaptação do primeiro romance de Highsmith.
Ainda antes de Jean-Paul confessar, já a câmara testemunhara o rosto aflito, em close-up, de Marianne, um rosto como objecto de estudo da câmara, retrato da angústia e do pânico, no contra-campo dos movimentos de Delon, da denúncia da sua culpa, que apenas a Schneider será revelada. Talvez alguns espectadores acreditem que Marianne pudesse denunciar o companheiro, mas ela permanece leal, num primeiro sintoma do contágio da culpa, e acabará a proteger Jean-Paul da justiça dos homens, insinuando que esse pacto seria também uma condição para uma separação do casal. Mas, tal como Delon perseguira Schneider durante anos, também Jean-Paul força uma junção perene do casal, à sombra daquele segredo de morte, pois o que parecia um crime sem castigo é, afinal, uma punição bem mais pesada do que a imposta pela lei, um crime sem redenção possível. No primeiro dos dois últimos planos de La Piscine, Alain Delon e Romy Schneider abraçam-se, dentro da casa, apadrinhados pelo trauma; no contra-campo, o filme responde com o emaranhado infindável de ramificações de uma árvore no espelho da piscina.

