“O mundo está cheio de pessoas iguaizinhas, que fazem tudo para não se distinguirem da média. Os psiquiatras passam o tempo a tentar obrigar as pessoas diferentes a saltarem a barreira para a já sobrepovoada média, com o objetivo de as transformarem em pessoas normais de que se possam orgulhar. Acredito que deve ser permitido às pessoas explorarem até ao fim as suas perversões, anormalidades, infelicidades e construção ou destruição. As pessoas loucas são as únicas pessoas activas. Elas é que constroem o mundo. Os loucos, os génios construtivos, só devem ter a quantidade de inteligência normal que lhes permita escapar às forças que querem normalizá-los” (1).
Patricia Highsmith
Este novo ciclo de crónicas, intitulado Europa-América, terá Patricia Highsmith (1921-1995), e as adaptações dos seus romances, como protagonista, em estradas que esticarão para outros lugares e outros autores, dos dois continentes. Patricia Highsmith, desde jovem adulta, empreendeu viagens para a Europa, com estadas cada vez mais prolongadas, sendo que em 1964, então com 43 anos, passou a residir em Inglaterra, antes de acostar em França e finalmente na Suíça, onde viria a morrer em 1995. Essa relação privilegiada com a Europa seria uma tradução de um acolhimento mais caloroso da sua obra, onde era olhada como uma das grandes autoras do seu tempo, enquanto nos EUA, em grande medida, era classificada como uma escritora de policiais, uma entre muitos. Estes textos, sobre as adaptações ao cinema dos romances de Highsmith, serão municiados por entradas dos seus Diários e Cadernos (Patricia Highsmith: Her Diaries and Notebooks 1941-1995), uma obra publicada em 2021, que coligiu as oito mil páginas que a escritora deixou, resultantes de um diário confessional, que manteve durante mais de 60 anos.

Este vai e vem Europa-América está repleto de ambiguidades e contradições, como veremos em alguns destes textos, mas o ano de 1977 assinala duas entradas nos diários da escritora, que enunciavam, por um lado, uma Europa que comunicava, enquanto do outro lado do Atlântico, a América colapsava. Do lado da Europa, Highsmith usava uma imagem, a que assistira em Viena, durante a construção de uma estação de metro, em que o desaterro de uma árvore deixara à vista um volume de terra de “dois metros e meio de diâmetro”, que se constituía como “uma bela visão, cheia de esperança”, na relação com a “eloquência dos edifícios e a exuberância das estátuas” em redor, que comunicavam uma tradição e um volume generoso de “discurso humano”, de “desejo de comunicar” (2). No contraponto diarístico, a América era representada por Las Vegas, por uma cidade que submergia, devido ao abaixamento do nível freático, que Highsmith antecipava como “um belo fim”, para “aquela cidade corrupta”, afundada “nas areias do deserto humedecidas pelos seus próprios excrementos”, que arrastaria “as suas prostitutas e os seus bares e casinos” (3).
Na primavera de 1989, Patricia Highsmith dirigiu uma carta ao reputado psiquiatra Karl Menninger, onde confessava que a mais eficaz forma de “pôr” a sua “imaginação a trabalhar”, era adoptar a concepção de que “qualquer pessoa que passe por nós na rua poder ser um sádico, um ladrão compulsivo, um assassino até” (4). Desde o seu primeiro conto vendido a uma revista, “Uncertain Nature”, em 1943 – em que dois homens se perseguem mutuamente, antecipando Strangers on a Train – , que a escritora se abeirou da obsessão pelos “temas da culpa, do pecado e da transgressão” (5). Com uma vida atribulada, com um pé na casa dos pais, mas já a participar da comunidade homossexual que se juntava em determinadas residências em Nova Iorque, a tentar vingar com a publicação de contos em revistas reputadas, Patricia Highsmith ganhava a vida, desde 1942, a redigir guiões de livros de banda desenhada.
É neste contexto que Truman Capote, que acabara de publicar o seu primeiro romance, Other Voices, Other Rooms, recomenda a Highsmith que se candidate a uma residência na Yaddo, uma colónia de artistas, em Saratoga Springs. Auxiliada pelas cartas de recomendação de Capote, de Rosalind Constable (jornalista e curadora) e Mary Louise Aswell (coordenadora de ficção da Harper’s Bazar), a jovem escritora ingressou em Yaddo em Maio de 1948. Em apenas seis semanas, terminou a primeira versão de Strangers on a Train, o seu primeiro romance, publicado em 1950 e adaptado no ano seguinte por Hitchcock, o que lhe rendeu a fama do dia para a noite e a ligou ao discurso cinematográfico e à sua história. Uma primeira obra, então, em que desde logo a autora trespassou um conjunto de fronteiras impostas ao género policial, desvalorizando o desfiar da intriga que conduz, invariavelmente, nesta tipologia de romance à identificação do criminoso, para se lançar de forma audaciosa na construção de personagens de sofisticado conteúdo psicológico, privilegiando as caracterizações amorais e a alienação da culpa inerente ao ato de cometer um crime.
Da estada em Yaddo, despontou a relação com outro jovem escritor, Marc Brandel, de quem ficou noiva, tendo também iniciado um processo de psicanálise para se “curar” da homossexualidade. Patricia rapidamente rompeu o noivado, por entre viagens à Europa, e já com o romance seguinte na cabeça, The Price of Salt (1952), que escreveu, por receio, sob o pseudónimo de Claire Morgan. Este segundo romance, a que voltaremos nestas crónicas, na leitura da adaptação de Carol (2015), de Todd Haynes, acompanhava a viagem de duas mulheres pela América, uma história de amor entre lésbicas, com final feliz, que se tornaria um livro icónico para a comunidade homossexual.

Na primeira sequência de Strangers on a Train (O Desconhecido do Norte-Expresso, 1951), a câmara de Hitchcock detalha, em montagem alternada, o percurso de dois homens numa estação, em direcção ao comboio. Estabelecem-se, desde logo, as diferenças entre os dois homens, sem lhes conhecermos os rostos: um deles, determinado, com velozes movimentos de pernas, assentes nuns sapatos onde se realça uma base branca e brilhante; o outro, desloca-se com alguma destreza, mas de forma menos impetuosa, com as calças e os sapatos dominados por tons neutros e escuros. Já sentados no compartimento do bar do comboio, ocorre um toque acidental entre os sapatos dos dois homens, que permite que Bruno (Robert Walker) reconheça Guy Haines (Farley Granger), um tenista.
A primeira linha de diálogo, disparada por Bruno – “Eu certamente admiro pessoas que fazem coisas” – define um dos mandamentos da Literatura de Highsmith: o carácter decidido dos seus protagonistas. O protagonismo é entregue aos ímpetos de Bruno e às linhas de diálogo, que servem de forma eficaz o enunciar da trama, mas que têm como principal objectivo a descrição dos personagens, a exibição do seu carácter. Depois dos sapatos, voltamos a prestar atenção a outro objecto: um isqueiro, que Guy passa a Bruno, para este acender o cigarro. No isqueiro lê-se “A to G”, sendo A de Anne Morton, a filha de um senador de Washington, pretendida por Guy, conforme Bruno confessa ter lido nas colunas sociais: Guy casará com Anne, quando se divorciar da mulher, Miriam, que ficara para trás, na pequena cidade de Metcalf.
Os dois homens almoçam no compartimento de Bruno, que começa a desfiar as suas histórias de rebeldia, de expulsões de várias universidades, de inclinação pela bebida e pelo jogo. Esse esmiuçar serve para Bruno introduzir o ódio que supostamente o pai tem por ele, um ódio e um acumulado de ressentimentos que ele objectivamente destila pelo pai. O isqueiro permanece em cima da mesa, ao lado do álcool, numa associação do personagem Bruno com o vício. Bruno assume, então, o desejo de matar o pai, a sua forma de fazer algo, de avançar em determinada direcção. Remata: “Tenho uma teoria de que se deve fazer tudo antes de morrer”.
Durante a escrita do romance, Highsmith confessou ao diário a sua adoração pelo personagem, o quão “contente” ficava “quando o Bruno” aparecia no livro, na sua escrita (6). No Outono de 1951, em Munique, a escritora encontrou o filme de Hitchcock e a sua satisfação com o filme resolveu-se no respeito por Bruno, pois é o personagem que “faz o filme, assim como faz o livro” (7). Bruno é a exaltação da importância que Patricia Highsmith atribuía à singularidade do individuo, pois “só um número muito reduzido de pessoas tem consciência da sua individualidade e vive para se desenvolver e aperfeiçoar”. Ao invés, o grosso da população procura “desesperadamente mostrar, de todos os modos, que são exactamente iguais a todas as outras”, para assegurar “uma espécie de segurança, de autoconfiança e satisfação” (8).
Bruno impõe, então, a sua amizade a Guy. Enquanto inclina o corpo para a frente, a reforçar simbolicamente o seu interesse e a sua determinação, afirma que tudo fará por ele. Com Guy quase a sair na Metcalf natal para visitar Miriam, Bruno segreda-lhe que algumas pessoas estariam melhor mortas, como por exemplo o pai dele e a mulher de Guy; depois, enuncia a teoria para um homicídio perfeito: “Dois tipos encontram-se, como você e eu. Nunca se tinham visto antes. Cada um quer livrar-se de alguém. Então… trocam de vítima! (…) Um vai cometer o assassinato do outro. Cada um mataria um desconhecido. Eu cometo o seu assassínio, e você o meu”. Os dois homens despedem-se, com Guy junto à porta da saída e os dois personagens em cenas diferentes: Bruno diz-lhe que eles falam a mesma linguagem e o tenista, para se livrar do outro, assente, confirma que a teoria dele é boa, e agradece o almoço. A sequência termina com Bruno e o espectador a darem conta de que Guy se esqueceu do isqueiro.
A antecipar a ida de Bruno a Metcalf, Hitchcock juntou duas pequenas sequências. O encontro de Guy com Miriam, em que a mulher se recusa a conceder o divórcio, serve para a retratar como promíscua (está grávida de outro homem) e chantagista, no prenúncio do arrastamento do espectador para as motivações futuras de Bruno e para a activação do complexo de culpa de Guy. No contra-campo do bloqueio de Guy surge a sua antítese, Bruno e a sua mãe, que providencia uma manicure ao filho, a revelar uma dupla intencionalidade de Hitchcock: uma mãe que cuida do filho, da importância das suas mãos, importância reiterada ao longo do filme, para atribuir às mãos a qualidade de uma arma letal; uma mãe que parece condescender perante a loucura evidente do filho, dos seus planos tão imaginativos quão malévolos, e que pede a Bruno para fazer a barba antes da chegada do pai. Como confirma Richard Schickel, Hitchcock tinha tendência para retratar as “mulheres de meia idade como monstros”, ao revelarem “uma espécie de gosto doentio pela ordem”, para, como no caso da mãe de Bruno, se projectarem no apelo pela loucura, pela desordem comportamental do filho (9).


Bruno, em Metcalf, vislumbra Miriam, que entra no autocarro às gargalhadas, acompanhada por dois homens. A ideia da promiscuidade associada ao personagem de Miriam é intensificada pela escolha do destino: um parque de diversões. Durante a sequência, várias vezes surgirá a figura esguia e poderosa (com o auxílio de um ligeiro contra-picado) de Robert Walker, no contra-campo de Miriam e dos dois homens que a acompanham: a mulher seduzida, então, a evidenciar uma ligeireza juvenil, uma lascívia, que se exemplifica quando Miriam devolve o olhar de Bruno, enquanto lambe uma bola de gelado. Bruno continua a mostrar-se a Miriam e na cena do martelo mecânico, ele olha com orgulho para as suas mãos longas, recordando-nos a manicure da mãe, para depois demonstrar a sua força ao impulsionar o dispositivo do parque até ao topo.
Entretanto, Miriam desafia os dois homens para o “Túnel do Amor”. Os parceiros apalpam Miriam durante o percurso no túnel e Hitchcock lança sobre a diversão e a embarcação deles a sombra de Bruno, como uma antecipação do castigo definitivo, a intensificar os motivos de Bruno: ela é uma má pessoa, uma mulher indecente e desonesta, que não concede o divórcio ao seu amigo Guy e, por isso, merece ser assassinada, tal como o seu pai, que quer interná-lo e privá-lo de uma fortuna que é sua por direito.

O estrangulamento de Miriam é projectado pelas lentes dos óculos dela, o traço distintivo do seu rosto e dos seus comportamentos obscenos, os óculos através dos quais ela respondera à sedução de Bruno. Os óculos, caídos sobre o solo, tornam-se, então, a lente que testemunha o homicídio, num caso exemplar do poder significativo das imagens, da fotografia de Robert Burks. A sequência termina com Bruno a auxiliar um cego a atravessar a rua, que permite estabelecer o sistema de valores do personagem, o evidenciar de um código moral peculiar, distorcido. Bruno cruzara-se na entrada do parque com um rapaz que lhe apontara uma pistola, ao que Robert Walker respondera, como se de uma ameaça de um inimigo se tratasse, com o rebentamento do balão do rapaz, ao encostar-lhe o cigarro. Bruno assassinara Miriam, porque ela merecia, pois era uma mulher adúltera, enquanto que aquele homem cego dependia da bondade dos outros.
Se o assassinato de Miriam fecha o primeiro acto de Strangers on a Train, o segundo acto é preenchido pela perseguição de Bruno a Guy, para que este cumpra a sua parte do acordo. Bruno sussurra o nome de Guy e mostra-se junto à entrada do portão da residência daquele, na primeira das suas aparições, como uma sombra que insinua a presença do mal. Bruno traz a Guy a notícia da morte de Miriam e reforça a importância dos objectos no filme, como comprovativos das acções e das motivações dos personagens: ele oferece a Guy os óculos de Miriam (com uma das lentes estilhaçadas), como um vestígio do traço lascivo marcado no rosto da mulher, mas também como prova da concretização do homicídio.

Os dois personagens, separados pela grade do portão, estão em lugares opostos na cena e no desenvolvimento da trama: Bruno cheio de confiança, pela boa execução do assassinato, por não ter deixado pistas, na concretização do plano perfeito; a postura de Guy é feita de insegurança e pânico, medo pela figura de Bruno, pela acção que ele possa ter cometido. Bruno corporiza o carácter resoluto, Guy, a hesitação, o bloqueio. Várias vezes durante o filme, o personagem de Guy recordou-nos uma anterior interpretação de Farley Granger para Hitchcock, em The Rope (A Corda, 1948), em que o actor foi um dos estudantes que concretizara uma tentativa de homicídio perfeito, tendo sido o primeiro dessa dupla a fraquejar, perante o exame de um professor de ambos, interpretado por Jimmy Stewart.
A notícia da morte de Miriam é transmitida a Guy, nessa mesma noite, pela família do senador e pela irmã mais jovem de Anne, Barbara, interpretada por Patricia Hitchcock, filha do cineasta. Desde logo a câmara de Hitchcock instala a culpabilidade de Guy através do rosto de Anne, que funciona como o espelho da culpa do namorado. Essa presunção de culpa surge, do ponto de vista de Anne, devido ao telefonema que Guy fizera de Metcalf a afirmar que ficara com vontade de partir o pescoço de Miriam, mas principalmente pelo facto do tenista retirar um benefício da morte da mulher, ao libertar-se do compromisso que tinha com Miriam.

Num mundo irracional e repleto de ambiguidades, em que todos os personagens se apresentam fascinados por homicídios, Barbara será a primeira porta-voz desse movimento ao voltar-se para Anne: “Imagina um homem que te ame tanto que está disposto a matar por ti”. Todos passam a agir como se Guy fosse culpado, desde logo a polícia, quando o alibi dele revela falta de firmeza, contaminado pelas características do próprio personagem. Estas dúvidas e a projecção de culpa activada por Anne em várias sequências, permite a Hitchcock a exposição de um dos preceitos de Highsmith, ao arrastar-nos, por um lado para o fascínio pela figura sociopata de Bruno, tal como para a culpa de Guy, que é também um dos temas de Hitchcock: o falso culpado, resultante de uma eficaz transferência da culpa.
Fiódor Dostoievski foi uma das influências assumidas por Patricia Highsmith. A autora partilhava da necessidade, explicitada nos romances do escritor russo, de “viver a sua própria destruição”, na procura de aceder a uma possibilidade de “purificação da alma” (10). Os seus personagens partilham com os de Dostoievski o anseio de convocar “demónios, luxúrias e paixões” (11), como uma metáfora, uma projecção da presença do “bem e do mal”, em disputa pelas “vidas individuais” (12). Esse diálogo entre o bem e o mal, “a construção e destruição”, são ingredientes para alimentar a psicologia do assassino e a transformação no outro, que resulta na canalização da “força de uma mente e um corpo vigorosos”, na concretização de um homicídio (13). Highsmith assumia uma clara empatia pelos loucos e pelos criminosos, até porque se revelavam “as melhores personagens”, que contrariavam o aborrecimento instalado pela “normalidade” e pela “mediocridade” (14). Os seus personagens combatem a “indecisão, essa grande fonte de infelicidade que atormenta o animal humano” (15). Por isso, sempre entregou o protagonismo dos seus romances a personagens com “ambições, objectivos”, que tudo fazem para concretizar, constituindo-se, em suma, como “criaturas activas”, determinadas (16).

Na base de um edifício de grande escala, em Washington, sustentado por colunas esguias, a figura de Bruno, do ponto de vista de Guy, desponta como uma ameaça, uma imagem do mal que se projecta, uma figura imóvel, mas que se propaga como um anel, comandada pelo movimento circular da câmara de Hitchcock, que coloca o personagem num ligeiro contra-picado. O cerco de Bruno aperta para que Guy execute o homicídio que lhe compete; a sequência do treino do campo de ténis é exemplar: enquanto os espectadores mexem a cabeça na direcção da bola que saltita para os dois lados do court, Bruno olha fixamente na direcção de Guy. O papel de cada um dos personagens permanece revelado nos seus rostos: o de Bruno traduz determinação, o de Guy, medo, passividade. Bruno infiltra-se em festas e recepções organizadas pela família do senador, onde se cruza com Barbara, e os óculos delas recordam-lhe Miriam e o homicídio. Há mais objectos a chegarem às mãos de Guy: depois da planta da casa da família de Bruno (que tinha mais força no romance, pois o protagonista era arquitecto) e da chave da porta da entrada, uma pistola.


Hitchcock dedicou porções generosas do filme em sequências que parecem não contribuir para o avanço da narrativa, designadamente as festas, mas o realizador preencheu-as de situações que comentam o fascínio pelas ideias homicidas, em conluio com os conceitos do romance de Highsmith. Numa dessas festas, Bruno declara a umas senhoras da alta sociedade que “todas as pessoas têm alguém que poriam fora do caminho”. Voltado para uma delas, insinua que talvez o marido dela fosse a escolha. As demais senhoras em volta sorriem, complacentes. Depois, num “e se” que associa a imaginação ao homicídio, pergunta-lhes como fariam, como executariam o crime. Ele rejeita o uso de uma arma, devido ao ruído produzido, e o veneno, pois demora muito tempo. Bruno afirma conhecer a melhor ferramenta: mais uma vez, exibe as suas mãos com vaidade, como no parque de diversões. É um método simples, silencioso e rápido, insiste. Propõe-se demonstrar e pede a uma das senhoras o pescoço por uns momentos. Mas, ao alcance do olhar de Bruno está Barbara e a reminiscência de Miriam faz com que Bruno entre num transe febril, que o impede de largar o pescoço da senhora. Mais tarde, Barbara dirá à irmã que Bruno, enquanto estrangulava a senhora, parecia estrangulá-la a ela. Anne observa os óculos nas mãos da filha de Hitchcock e adivinha o que terá acontecido no homicídio de Miriam.

Anne confronta, então, Guy e pergunta-lhe como convenceu Bruno a fazê-lo. Guy confirma que Bruno matou Miriam e conta-lhe a história do plano do duplo homicídio. É uma das alterações mais substanciais que a adaptação de Hitchcock produziu em comparação com o romance, que iliba o protagonista da solidão que Highsmith devotava aos seus protagonistas. No romance, Highsmith estabeleceu na acção de Anne uma espécie enlevo por Bruno, fascinada pelo seu carácter resoluto, em contraste com os bloqueios do noivo arquitecto, que intensificavam a categorização de Bruno como um homem de qualidades, inteligente e inventivo, que o faziam escapar da mera categorização como vilão, e que colocavam Bruno como adversário de Guy, também na possibilidade de seduzir Anne, enquanto se insinuava a inclinação homossexual de Bruno por Guy, na geometria dinâmica de um triângulo.
No filme, subsiste algum deslumbre de Anne nas primeiras aparições de Bruno, mas é algo fugaz, desde logo transformado em temor, intensificado pela revelação da autoria do assassinato de Miriam. No romance, Guy mata o pai de Bruno, na demonstração de que todos poderíamos, em determinado contexto, cometer actos irracionais, concretizar um homicídio. Se Hitchcock não perde o rasto à ambiguidade moral do romance, ao transferir a culpa para Guy, de um crime que ele não cometeu, a liberdade da adaptação, que isenta Guy de assassinar o pai de Bruno, vai permitir o almejado happy ending para o filme produzido nos armazéns de Hollywood. Na antecâmara da resolução do filme, do seu terceiro acto, Guy sugere a Bruno que procure tratamento, insinuando a sua patologia mental. Bruno, consciente de que Guy não cumprirá o seu homicídio, passará a olhá-lo como um inimigo, como alguém que o atraiçoou e que, por isso, merece a punição: “Eu tenho um crime na consciência, mas não é o meu! É o seu! Uma vez que beneficia dele, deve pagar por isso”.
Antes da resolução, no regresso ao Parque de Diversões de Metcalf de Guy e Bruno, Hitchcock juntou os dois personagens, através de duas sequências dispostas em montagem alternada. Guy e Anne anteciparam que Bruno poderia plantar o isqueiro no local do crime, para transferir a responsabilidade legal do homicídio, para castigar Guy, numa constatação de que um objecto pode decidir a sorte dos personagens. Essa hiper-valorização dos objectos e da inspiração da escrita através de imagens – “uma casa, uma mala, uma luva na sarjeta”, foi assumida por Highsmith nas páginas dos seus diários (17). Mas há um jogo que Guy deve participar, que permitirá aclarar uma das vantagens que Hitchcock retirou da transformação do protagonista num tenista. O ténis permitirá um ritmo, num jogo que pode ser teoricamente curto na duração, ou ver o seu fim adiado indefinidamente, uma questão de tempo, de duração (característica do cinema), associada aos corpos e ao seu movimento, que poderá ser decisivo na resolução da narrativa.

Guy terá de decidir o jogo em três sets, para chegar a Metcalf antes do cair da noite. Ao contrário do que os comentadores preveem, pois descrevem Guy como um jogador ponderado, calmo e metódico, que não apressa a resolução dos pontos, aqui o tenista surge decidido, como uma metáfora para a possibilidade de Guy conquistar o lugar de protagonista de Highsmith, um herói determinado, à altura de enfrentar Bruno. O comentador: “Guy Haines está a bater a bola com mais força, e mais rápido… arriscando como nunca. É uma estratégia completamente oposta à sua habitual”. Em paralelo, o isqueiro cai acidentalmente das mãos de Bruno, através da tampa de uma sarjeta. São dois homens decididos: enquanto Guy vence o seu jogo, Bruno, perante a impossibilidade de ajuda, alcança ele próprio, com as suas mãos, o isqueiro no fundo da sarjeta e resgata o objecto precioso. Os dois homens parecem evidenciar super-poderes nas suas missões. São os heróis de Patricia Highsmith.
Nos próximos meses, estes textos continuarão a gravitar em torno do espírito da obra Patricia Highsmith, por vezes em volta da adaptação dos seus romances, mas sempre a apontar aos desafios morais que arrastam o leitor e o espectador para os perigos que envolvem os protagonistas, em narrativas que esbatem “as fronteiras entre o bem e o mal, a inocência e a culpa, a compreensão e o ódio, confrontando os leitores com os seus abismos mais escuros e mais profundos” (18).
Notas:
Diários e Cadernos (Patricia Highsmith: Her Diaries and Notebooks 1941-1995): (1) p.204, (2) p.943, (3) p.944, (4) p.21, (5) p.22, (6) p.442, (7) p.587, (8) p.91, (10) p.529, (11) p.455, (12) p.463, (13) p.537, (14) p.681, (15) p.964, (16) p.968, (17) p.317, (18) p.1014
(9) edição em DVD de Strangers on a Train (Warner Brothers, 2004)