James B. Harris conheceu Stanley Kubrick nos anos 50 através de um amigo em comum. Queriam ambos singrar nisto do mundo do cinema, portanto criam a “Harris/Kubrick Productions”. Harris convence a “United Artists” a dar 200.000 dólares, junta mais 130.000 e Kubrick realiza The Killing (Um Roubo no Hipódromo, 1956). Depois de Paths of Glory (Horizontes de Glória, 1957) e Lolita (1962), Harris abandona a produção de Dr. Strangelove (Doutor Estranhoamor, 1964) por achar muito arriscado fazer do filme uma comédia (apesar de ter dito depois que era o seu filme favorito realizado por Kubrick), realizando o seu primeiro filme a solo, The Bedford Incident (1965) com Richard Widmark, no ano seguinte. Tendo Kubrick a obsessão de seguir em frente, de fazer sempre coisas novas, talvez se possa dizer que é na obra de Harris e não na sua, que os três primeiros filmes da “Harris/Kubrick Productions” mais ecoam. Até porque se sabe que era uma parceria tão criativa como profissional, levando Harris a dizer que foi Kubrick que o ensinou a realizar e que foi ele que ensinou Kubrick a produzir.
Parece-me ser verdade que B. Harris não é um cineasta vulgar e se escrevo que é na obra dele, e não na de Kubrick que ecoam os temas dos primeiros filmes dessa parceria, não é só por escárnio aos consensos (nomeadamente a genialidade tout-court de Stanley Kubrick, consenso que Harris apoia, já agora), mas por acreditar nisso mesmo. Pelo menos The Killing e Lolita vêem na trilogia pulp de Harris (os três últimos filmes que realizou) e em Some Call it Loving (Alguns Chamam-lhe Amor, 1973), respectivamente, as suas continuações lógicas. E embora aqui talvez já esteja a esticar um bocado a corda, The Bedford Incident é, como Paths of Glory, um filme de guerra. Hoje em dia (e para acabar de uma vez com o assunto), quando se entrevista Harris, o tema de conversa é sempre Kubrick, coisa que me parece muito injusta. Mas se para alguns é difícil transpôr o “mau gosto” dos anos 80 [que transborda de Fast-Walking (Bem-vindo à Terra Prometida, 1982) a Boiling Point (O Preço do Dinheiro, 1993)], a viagem onírica e hipnótica que é Some Call it Loving – onde não é descabido pensar em Resnais e Manoel de Oliveira – é testamento vivo que Harris não foi só alguém que trabalhou com Stanley Kubrick.
Cop (A Arte do Crime, 1988) vem na senda da perícia milimétrica de Don Siegel [Harris produziu-lhe Telefon (Telefone, 1977) nos anos 70], Ted Kotcheff e John Flynn, ou seja: há zero de distâncias irónicas em relação ao género e abraça-se os espaços da acção sem se pedir desculpa por estar a fazer um “filme de género” (que é, regra geral, o que se faz hoje), povoando-os com sacanagem, canalhice e putaria que não pede desculpa por coisa nenhuma. É assim neste filme, é assim com Lloyd Hopkins (interpretado por James Woods). Hopkins é um detective da polícia que pede para investigar um homicídio e acaba por relacioná-lo com outros homicídios arquivados e não resolvidos. Acha que os fins justificam os meios e ninguém na esquadra tem mão nele porque apesar de tudo tem uma folha de apreensões exemplar. Mata suspeitos sem fazer perguntas e fode testemunhas da investigação sem o menor dos pudores. É um mercenário e Cop é bruto e seco como tem que ser um filme cujo personagem principal é assim. Sem muitos rodeios. Há uma cena no início do filme que tenta dar luzes sobre a natureza de Hopkins: chega ele a casa e vai ver a filha, contando-lhe um episódio do trabalho com os pormenores todos, que percebemos ser prática recorrente porque ela já o sabe de cor. A mulher passa-se com ele e vão falar para outro quarto. Ele explica-lhe que as pessoas têm de saber desde muito novas que o mundo é sujo, que não se podem alimentar sonhos nem contar histórias de embalar, que não se pode ter nem semear esperança. Para Hopkins e por qualquer razão – talvez familiar talvez amorosa -, o mundo é um beco sem saída e resta-lhe apenas livrar-se dos assassinos e dos monstros sem pensar duas vezes. É esta sede de limpeza que o isola de tudo: a mulher deixa-o, leva a filha e ele rende-se à sua própria natureza, como o escorpião que mata a rã a caminho da outra margem do rio e por isso se afoga.
No entanto, a interpretação monstruosa de James Woods (um dos maiores actores da segunda metade do séc. XX) faz-me vacilar nisto das naturezas e das limpezas. Das intenções, no fundo. Aquelas explosões na sala de interrogações (acompanhadas exemplarmente pela montagem, nos cortes brutos para Woods), o fade to black final pelo recarregar da arma, o reflexo destroçado de Hopkins atrás de “Dinner’s ready” escrito a sangue no espelho, entre outras coisas, fizeram-me pensar em sete frases fantasmagóricas de Fritz Lang, durante uma entrevista com William Friedkin nos anos 70, que se calhar explicam melhor os porquês enigmáticos de Lloyd Hopkins. Dizia ele, já com a pala no olho direito e uma asserção de pesadelo por viver obcecado com estas questões, o seguinte:
“One day, we walked into an appartment house where a man was accused of murder. We found cut off hands under his bed. Or another one – whom I never met, I heard only about him – who made sausages out of wandering young people, you know? But as long as you haven’t seen what I saw… For example, let me see, a woman in a small shop – where you can buy food and cans and anything – laying killed over the table where she sells things, you know? The blood drops in, drops… drops… Only then you can understand why the police is for capital punishment.“
Quando se abraça o género, quando se faz um esforço concertado por estudar uma personagem a fundo através do brio de um actor enorme – e mesmo que não se chegue aos vôos de um Kotcheff no seu melhor, um Siegel, um Flynn ou um Lang, que é tudo gente da mesma estirpe (com as distâncias óbvias) -, o que acontece transcende a competência e oferece-nos a contemplação e o pensamento. Os U.S. of A. não têm tanto talento nativo assim para se poderem dar ao luxo de desdenhar Cop e James B. Harris.
Sem Comentários
De acordo
Só agora é que percebi que era uma adaptação do “Blood on the Moon” do James Ellroy. Não pude ver na Cinemateca, a ver se arranjo outra maneira de o ver.
É, foi a primeira que fizeram em Hollywood. E li por aí nas internet’s que o Ellroy só deixa adaptarem livros dele se o Harris estiver envolvido. Não sei se é verdade ou não. Nunca li o livro mas o filme vale a pena.
Gostei bastante do filme (como do teu texto, está claro), fez-me lembrar o Siegel e o Eastwood (de “Tightrope” a “True Crime”), muito enxuto e “straight to the point” — e machista q.b., pois claro. Mas quero que se escreva numa pedra uma frase que dizes aí: James Woods, um dos maiores actores da segunda metade do século XX.
O Woods é o maior! E agora anda envolvido em coisas muito abaixo do nível dele, o que é pena. É um homem que trabalhou com o Kazan, com o Carpenter, com o Kotcheff, o Leone, o Flynn, o Cronenberg, enfim, e com o Eastwood também no “True Crime” de que aí falas. Ele simbolizava e incorporava na perfeição essa vaga e essa escola. Não falei no Eastwood no texto, mas podia ter falado, até porque me lembrei do “Sudden Impact” (um dos meus preferidos dele) quando vi este “Cop”.
Metendo a minha colherada: é o filme mais incrivelmente machista sobre o tema do feminismo; parte da solidez do filme parece-me tem muito que ver precisamente com essa circulação entre a fé, a religião, a inocência, a ilusão, a maldade. É um neblina que adensa o filme.
O machismo e o feminismo parece que são questões cada vez mais complicadas, às vezes prefiro nem falar sobre o assunto. Eu tendo a achar que os filmes que são mais machistas ou preconceituosos são os que mais tentam dar certezas sobre o assunto, pelo “bom-senso” e pela mensagem (e o tiro sai pela culatra). O “Thelma e Louise”, o “Erin Brokovich”, sei lá. O “Crash” do Haggis. Mas não senti que o que o “Cop” me estava a dizer era que “os homens são superiores às mulheres”. Como não sinto que seja isso que os filmes do Eastwood ou do Siegel me dizem, também. Acho que no fundo não dizem nada, só mostram, e é por isso que eu gosto deles. Por isso “enxutos” e “straight to the point”, como diz o Luís, são de certeza. E é mais nisso que penso quando falo de “escola”. Lang –> Sturges –> Siegel –> Flynn –> Kotcheff –> Eastwood –> Carpenter – uma coisa assim.
A sociedade parece-me que vê o problema do “machismo no cinema” resolvido com a representação de mulheres de carreira (trabalhos respeitáveis, etc) ou “num mundo de homens” e acho que isso não resolve coisa nenhuma necessariamente. O “How I Met Your Mother”, a série, é machista até à medula e o “Kill Bill” se calhar é uma fantasia machista. Depois há o “Wanda” da Barbara Loden que é daqueles monumentos em que essas questões nem se põem, é um estrondo de filme.
Se calhar estou-me a iludir um bocado, não sei, mas desconfio mais do politicamente correcto de alguns filmes e séries dos nossos dias (mas não só dos nossos dias) do que destes exercícios puramente de género.
Sim concordo contigo sobre a perversidade do lado asséptico e politicamente correcto de alguns filmes hoje que fabricam uma espécie de “igualdade” à pressão. Precisamente porque essas congeminações muitas vezes não estavam nos planos de ninguém em alguns destes filmes dos anos 80, isso permite mostrar abertamente aquilo que cada um pensa através das histórias. Há convenções de género que obviamente colocam “Cop” num dilema masculino, mas nem é disso que falava. É mesmo a “incongruência” da explicitação do tema do feminismo tratado no seio deste ambiente e deste género. Não é para tomar como insulto, é óbvio, é apenas uma simplificação ou contradição caricata. Isto é: não me passa pela cabeça destacar o machismo de Dirty Harry como algo estranho, mas se ele resolver ir a uma convenção de feministas, lhes oferecer flores e ouvir os seus dilemas (e por aí fora), isso já me parece alvo de comédia, pelo contraste. Abraço.
Ah, sim, a escritora feminista é capaz de ser a personagem pior construída do filme. Parece que tem muito pouco de escritora e de feminista também. Não sei como é no livro mas imagino que não seja muito diferente. E o Dirty Harry numa convenção dessas eu pagava para ver. hehe Abraço.