Tem-se falado muito do Senhor Narrativa e das coloridas palavras que lhe saíram da boca. Aliás, essas palavras têm sido como pão para a boca dos comentadores semanais – uma espécie de respiração assistida (boca-a-boca) de comentarismo político, ou melhor, como se Sócrates fosse a mãe-pássaro que, para alimentar as crias, regurgita a refeição directamente para a boquinha dos petizes. Digo isto apenas para poder repescar a narrativa da boca do mestre torturador, sem o estigma de usar uma palavra coçada, e explaná-la sobre a mesa. A narrativa que nos vem sendo oferecida desde o início da crise – e mais sistematicamente a partir do momento em que este governo entrou em acção – é a de que há qualquer coisa de apuramento na recessão, esta ideia de que com a destruição de empresas e postos de trabalho se abre espaço para uma nova e florescente manta de ideias e empresários que, qual fénix, nascerão das cinzas puros e preparados para o que der e vier. Este mantra liberal, que encara a economia como coisa de fé e a finança como instrumento de dor purificadora, tem sido a luz iluminadora dos cortes, impostos, taxas e demais meios de mortificação.
Talvez o que incomode mais seja o facto de que – e custa-me tanto dizer isto… – se calhar eles têm razão. Em teoria, das duas uma: ou se segue a opção da espiral recessiva, que era arma de arremesso em qualquer debate político há uns meses – e que, como frisou a ministra das Finanças recentemente, desapareceu do léxico debateiro da Assembleia e demais espaços de confronto de ideias -, ou se segue (por oposição) a opção de o massacre ser tal que, como nos incêndios, permite que as plantinhas mais frágeis possam crescer sem a sombra dos enormes eucaliptos.
Tudo isto são intróitos que servem para introduzir um caso estranho no mercado da distribuição de cinema em Portugal. Quando os espectadores abandonam as salas à taxa de um milhão por ano e quando as grandes distribuidoras têm dificuldades em manter a sua posição (perdendo quota de mercado – o caso da Pris ou da CTW – ou mantendo-a à custa de uma avalanche de estreias – Zon), é de facto inesperado que no ano transacto tenham surgido no meio português vários novos intervenientes. A saber: Vendetta, que distribuiu Frances Ha de Noah Baumbach; Lanterna de Pedra, que distribuiu Enter The Void (Enter the Void – Viagem Alucinante, 2009) de Gaspar Noé e The Innkeepers (Hóspedes Indesejados, 2011) de Ti West; Outsider Films, que distribuiu o filme Animal Kingdom (Reino Animal, 2010) de David Michôd; Nitrato, que está previsto distribuir o filme O Som ao Redor (2012) de Kleber Mendonça Filho; e Projectos Paralelos, que distribui para a semana a sessão Bela Vista x 3 com Cama de Gato (2012) e Bela Vista (2012) de Filipa Reis e João Miller Guerra, a par de Um Fim do Mundo (2013) de Pedro Pinho – e não refiro as produtoras que também distribuem, como acontece com a Be Active, a Som e a Fúria ou a Ukbar.
Ou seja, em total contracorrente àquilo que seria expectável pelos apoiantes da espiral recessiva (onde me incluía – note-se a conjugação no imperfeito, imperfeito duas vezes), o mercado estilhaça-se em quase uma dezena de pequenas e médias distribuidoras (a acrescentar às novatas temos a Midas, Alambique, Leopardo, Big Picture e a Pris e CTW em contenção de despesas), com um elemento desproporcional a reger o mercado – a Zon, à qual pertencem cerca de 50% das estreias. Esta desmultiplicação dos pequenos concorrentes dá origem a um panorama cada vez mais esquizofrénico para o espectador nacional que, ao longo deste último mês, teve 43 novas longas e 6 curtas nas salas à sua disposição. Se somos por um mercado plural, onde desejamos que todos os públicos encontrem os seus filmes (e portanto a variedade e a concorrência dão espaço à estreia de filmes que doutro modo ficariam esquecidos ou sairiam directamente para o mercado de home cinema – DVD ou VOD – caso dos filmes referidos no parágrafo anterior), aquilo de que estamos cientes é de que tal estado de coisas impossibilita que os filmes cheguem aos seus devidos espectadores.
Num típico pesadelo neoliberal, a concorrência não beneficia os consumidores, pelo contrário, prejudica o seu acesso ao produto e consequente consumo – sim, porque o período de exibição reduz-se cada vez mais para se poder alocar às salas disponíveis o crescente número de estreias. Tal situação é evidentemente insustentável (ainda que certamente seja lucrativa a curto prazo, caso contrário não surgiam tantas novas distribuidoras) e está a levar para o esquecimento uma série de filmes que surgem no mercado para logo dele desaparecerem, sem que nesse intervalo surjam os espectadores devidos. Mesmo desconsiderando as questões económicas, há um dever moral da parte do distribuidor em fazer o melhor possível para que os filmes que coloca nas salas alcancem um mínimo de espectadores e isso está a acontecer menos vezes do que seria desejável.