Wong Kar-Wai é um dos homenageados da edição deste ano do Lisbon & Estoril Film Festival. A propósito da retrospectiva (não integral) de um dos mais importantes nomes do cinema actual, evocamos agora a obra do autor de Hong Kong e destacamos quatro dos seus mais importantes filmes, que passarão no festival.
Pousa um momento, / Um só momento em mim, / Não só o olhar, também o pensamento. / Que a vida tenha fim / Nesse momento! *
Wong Kar-Wai, também conhecido pela pronúncia do seu nome em mandarim, Wang Jiawei, nasceu em Xangai em 1958 mas foi em Hong Kong que viveu a maior parte da sua vida e é a Hong Kong que seu o cinema está inextricavelmente ligado.
Como tantos outros autores, Wong não começou a carreira no cinema, tendo estudado design gráfico em Hong Kong e trabalhado primeiro em televisão. A estreia no cinema deu-se com Wong gok kaa mun (O Sabor da Ambição, 1988). Protagonizado por duas estrelas em ascensão – hoje dois pesos-pesados do cinema asiático –, Andy Lau e Maggie Cheung, o filme foi mostrado em Cannes e Wang tornou-se famoso internacionalmente.
No entanto, só no seu filme seguinte, A Fei zheng zhuan (Days of Being Wild, 1990), entrou em cena uma das figuras-chave do cinema de Wong, Christopher Doyle, o director de fotografia australiano que se estabelecera na Ásia nos anos de 1970. O encontro dos dois é certamente das colaborações mais importantes que o cinema já conheceu e é, em parte, devido à mestria e ao experimentalismo visual de Doyle que o cinema de Wong Kar-Wai se tornou… o cinema de Wong Kar-Wai.
Não houve uma só longa de Wong Kar-Wai que não tivesse sido nomeada ou arrecadasse prémios aqui ou ali: Cannes, Veneza, Hong Kong, Taipé… O sucesso foi tal que Wong se tornou, provavelmente, no mais conhecido realizador da “Grande China” no mundo “ocidental”, o que não o tem isentado de críticas de filmar para uma audiência ocidentalizada e para os festivais. Preferimos olhar para o seu cinema como internacional, ou talvez de uma globalização chinesa – veja-se os actores de Hong Kong, China, Macau, Taiwan, etc. que Wong filma, veja-se a relativa polifonia dos seus filmes (cantonense, mandarim, inglês, espanhol, japonês, etc.), as referências à Ásia do Sueste. Veja-se o tema constante da viagem e da fuga, a ideia de um mundo onde todos os lares são temporários.
Em 2007 e à semelhança de outros realizadores de Hong Kong, como John Woo, Wong foi filmar nos Estados Unidos o injustamente denegrido My Blueberry Nights (O Sabor do Amor). Após quase duas décadas a filmar actores-cantores estrelas de Hong Kong, Wong fez o mesmo na América, temas e imagens rimando com a sua obra anterior, mesmo que o inglês predominasse.
Em 2012 voltou à Ásia para filmar o belíssimo Yidai zongshi (The Grandmaster), evocação do reverenciado mestre de artes marciais Ip Man, num filme onde a memória de deslocamento da China moderna é focada como nunca até então na sua obra.
Wong Kar-Wai já filmou uma série de géneros e personagens-tipo, do wuxia [Dung ce sai duk (Ashes of Time, 1994)], a filmes com gangsters, juventudes inquietas, polícias, dramas, um filme com laivos de comédia romântica e outros com um quê de road movie. Mas todos eles têm muito mais em comum do que os actores com quem Wong frequentemente trabalha.
No olhar a alma também / Olhando-me, e eu a ver / Tudo quanto de ti teu olhar tem. / A ver até esquecer / Que tu és tu também. *
O cinema de Wong Kar-Wai é o cinema do instante. O momento que se experimentou e logo se perdeu, a fugacidade de um encontro, de um toque, de uma ilusão de felicidade. Mas o momento passa sempre. Os filmes de Wong são, talvez por isso, também filmes sobre memórias imaginadas, recriadas, repetidas mas sempre adulteradas – da memória da ex-namorada que não volta em Chung Hing sam lam (Chungking Express, 1994) à memória de uma “homeland” em Yidai zongshi. Ou a memória persistente de Fa yeung nin wa (Disponível para Amar, 2000) que ecoa até em 2046 (2004).
Essa insistência nas memórias fragmentadas das personagens remete-nos para outra das obsessões presente nos filmes de Wong: o tempo. Planos de relógios são recorrentes [por exemplo em A Fei zheng zhuan ou Chun gwong cha sit (Felizes Juntos, 1997)]. O tempo que passa, cada minuto como a eternidade que se sela, tem sido também associado, sobretudo nos filmes anteriores a 1997, a uma ansiedade colectiva pré-handover. A incerteza do futuro de Hong Kong reflectida também no futuro sempre incerto das personagens de Wong.
Outro dos temas latentes em todo o cinema de Wong é o desejo e a impossibilidade da sua concretização. Talvez isso seja mais evidente em Fa yeung nin wa mas atravessa toda a sua obra. O cinema de Wong é, por isso, um cinema de permanente expectativa. Quase poderíamos dizer que é um cinema de preliminares. De caminho e ânsia por algo que nunca chega a acontecer, por uma meta que não se alcança, um reencontro que nunca ocorre.
Fica, pois, o caminho que nunca chega ao destino. A estrada aberta de Chun gwong cha sit ou de My Blueberry Nights. A viagem, a fuga. Que se sabe inútil porque o que consome é o que ficou para trás, a memória que nunca se esquece.
Nesse cinema de fogo (que arde sem se ver?) há também água. A água que o jovem polícia tira do corpo com sessões de jogging em Chung Hing sam lam para que não reste para lágrimas. Mas no cinema de Wong a água abunda, expiando as mágoas dos seus incompletos personagens.
Falámos de fogo e de água, mas o cinema de Wong talvez seja sobretudo um cinema de cores. Fluorescentes, amarelados, vermelhos, verdes e azuis, as possibilidades multiplicam-se, num arraste de espaço-tempo irreal, arrítmico, fragmentário – múltiplo como a experiência da memória que vive na transformação, na personalização do que se percepciona. A Hong Kong de neóns, a Argentina a preto-e-branco, a China de neve e sombras. As mil cores de um quarto, de rachas de paredes, de escadas, de corredores, de espaços semi-abandonados, exíguos, desertos ou cheios de gente mas onde cabem essencialmente os dois corpos que interessam à câmara.
Estamos perante um cinema de imagens soberanas mas onde a palavra é voz de uma intimidade que duvida, de frases de antologia. Mas há outro vértice neste espectáculo de sentidos: a música. Os filmes de Wong Kar-Wai são peculiares filmes musicais, as bandas sonoras reforçando a construção da nostalgia – seja nas partituras de Shigeru Umebayashi ou na reinvenção de “Siboney”, de “California Dreamin’” ou de “Quizás, Quizás, Quizás”.
Repetidas, as músicas e as memórias do cinema de Wong Kar-Wai. Mas sempre únicas, porque cada recordar já só atinge uma parte da promessa incumprida de eternidade do momento. Como os cigarros que quase todas as personagens de Wong fumam incessantemente, o presente dura um instante e esgota-se depressa.
Só tua alma sem tu / Só o teu pensamento / E eu onde, alma sem eu. Tudo o que sou / Ficou com o momento / E o momento parou. *
* Fernando Pessoa, “Pousa um momento,” (1919)
Destaques da homenagem a Wong Kar-Wai no LEFFest:
A Fei zheng zhuan (Days of Being Wild, 1990)
Um filme de cruzamentos e relações fugazes, uma literalmente “de um minuto”, A Fei zheng zhuan (cujo título original remete para a tradução de Rebel Without a Cause para chinês) gira em torno de Yuddy (Leslie Cheung), um irascível playboy obcecado em conhecer a mãe biológica. Pelo caminho vai despedaçando o coração a uma série de mulheres, uma delas (Maggie Cheung) terá um outro momento de eternidade com um polícia de giro (Andy Lau), outra (Carina Lau) atrai a afeição não correspondida de um amigo dele (Jackie Cheung).
Na sua obra Hong Kong: Culture and the Politics of Disappearance, Ackar Abbas refere que o A Fei zheng zhuan foi o mais caro filme de Hong Kong à data de produção. A reconstituição de Hong Kong algures nos anos 1960s e o final nas Filipinas, ambos filmados em tons amarelados como se de velhas fotografias de certos cenários coloniais se tratasse, indicam o cuidado da produção mas não parecem excessivos.
A Fei zheng zhuan é um dos filmes mais violentos de Wong mas é-o a um nível sobretudo emocional, que será matizado nos filmes seguintes. Há, realmente, uma certa “fúria de viver” no Yuddy de Leslie Cheung que o filme não procura conter mas explorar nas suas contradicções. O que prevalece, no entanto, não é tanto essa fúria emocional mas o “mood” construído pela fotografia jazzística de Christopher Doyle e ilustrada na precisão de movimentos dos actores, artificialidade da cor e tratamento único da ideia de fugacidade do tempo e da torrente de emoções expressas ou reprimidas dos momentos em que estes seres pousam o olhar uns nos outros.
A Fei zheng zhuan passa no Monumental dia 12 de Novembro, às 14:30.
Chung Hing sam lam (Chungking Express, 1994)
Chung Hing sam lam já foi chamado o filme de auto-paródia de Wong Kar-Wai mas, embora o humor e as piscadelas de olho estejam lá, também está lá um dos mais importantes filmes de Hong Kong das últimas décadas.
Há correria e languidez, crimes e escapadelas, noites e manhãs num território onde quase todos estão de passagem. Wong e Doyle captam os extraordinários ritmos e cores de Hong Kong naquele que é um dos mais fascinantes retratos da metróple.
O título remete-nos para as icónicas Chungking Mansions de Hong Kong, bloco de apartamentos onde todo o tipo de actividades ocorre e gente circula. É nesse microcosmos de línguas e pessoas que se dão os encontros fugazes do filme. He Ziwu é um jovem polícia (um novíssimo Takeshi Kaneshiro, hoje uma estrela do cinema asiático) à espera da namorada que o deixou, normalmente na casa de fast-food da esquina, “Midnight Express” (daí o Express do título internacional). Uma mulher de peruca loira (a magnífica Brigitte Lin, hoje afastada da representação) que opera no submundo de Hong Kong cruza-se no seu caminho. Menos de uma noite, é o que dura o seu encontro num encontro falado no mandarim natal de ambos, um encontro sonolento numa cidade que não dorme.
Também frequentador do estabelecimento local é o polícia 663 (Tony Leung Chiu-Wai). A nova empregada, Faye (Faye Wong, hoje uma super estrela da música chinesa) observa-o e deseja-o no silêncio ensurdecedor de “California Dreamin’”. Ele pensa só na namorada hospedeira que voou dele – incapaz de ver que as suas percepções estão erradas e é Faye quem lhe arruma a casa, não a ex-namorada que voltou. Quando se apercebe já é tarde e é Faye quem vai voar – outra das viagens de fuga e autodescoberta do cinema de Wong. O reencontro acaba numa nota mais upbeat que outros filmes de Wong, mas é ilusório. Afinal, ela partirá de novo no dia seguinte. Uma vez mais, nada resta senão o instante, com um prazo de validade tão (in)certo como o das latas de conserva que surgem em cenas importantes do filme.
Chung Hing sam lam passa no Espaço Nimas, dia 10, às 21:30, e no Casino Estoril, dia 12, às 21:30.
Chun gwong cha sit (Felizes Juntos, 1997)
Um passaporte, uma chegada. Assim começa Chun gwong cha sit. Ho Po-wing (Leslie Cheung) e Liu Yu-fai (Tony Leung Chiu-Wai) chegam a Buenos Aires de Hong Kong. Amantes problemáticos, a sua Buenos Aires é de separações e reencontros. Yu-Fai está irremediavelmente preso a Po-Wing, rebelde, e auto-destrutivo como o Yuddy de A Fei zheng zhuan (não por acaso encarnado pelo mesmo actor). Um momento de fragilidade leva ao período destinado a não durar, o tempo fugaz em que são “felizes juntos”.
A nocturna Buenos Aires parece saída de um noir, mas não anda assim tão longe de Hong Kong. Há uma intemporal modernidade latente nas ruas, nos quartos, nos relógios e telefones públicos que povoam o filme.
Tudo no filme acentua a transitoriedade da experiência dos dois homens. Empregos temporários, engates ocasionais, incerteza financeira. Mas a suprema incerteza é a da sua felicidade a prazo, tentando tornar compatível o impossível. Há imagens de eternidade – talvez a mais bela seja a do tango na cozinha comunal deserta – mas o que resta é a memória do que poderia ter sido, aquela que Yu-Fai nem consegue verbalizar para um gravador.
Leslie Cheung, um actor extraordinário que recordamos com saudade (assinalam-se este ano dez anos do seu suicídio) está quase tão bem como em A Fei zheng zhuan mas o filme pertence a Tony Leung Chiu-Wai. O introvertido, sofredor e apaixonado Yu-Fai é uma das figuras mais pungentes da filmografia de Wong. Um jovem Chang Chen compõe uma interessante alma em trânsito mas pouco acrescenta à intensidade dos momentos dos dois protagonistas.
Tal como Yidai zongshi viria a fazer de uma maneira diferente, Chun gwong cha sit é também uma reflexão sobre a pertença a um lugar, a memória de uma “casa”, um país que se deixou e da solidão de uma meta que se atinge sem a pessoa com quem se quisera fazer a jornada.
O filme valeu a Wong Kar-Wai o prémio para melhor realizador em Cannes em 1997.
Chun gwong cha sit passa no Monumental dia 11, às 14h, e no Casino Estoril dia 14, às 21:30.
Fa yeung nin wa (Disponível para Amar, 2000)
Já quase tudo se deve ter escrito sobre Fa yeung nin wa mas o hype é justificado. Este hino à impossibilidade de concretização de um amor total é um dos mais poéticos, mais tristes e mais belos filmes alguma vez feitos.
Na Hong Kong de 1960s (ou como ela é recriada noutros locais por Wong), dois vizinhos (Maggie Cheung e Tony Leung Chiu-Wai) descobrem que os seus respectivos cônjuges têm um caso amoroso. Da empatia de uma solidão partilhada, os dois descobrem a possibilidade de um amor de que os seus adúlteros companheiros lhes fizeram questionar. Recusando-se a ceder e “ser como eles”, os dois desenvolvem uma cumplicidade silenciosa de desejo crescente nunca consumado, que Wong sugere com sensuais planos em câmara lenta, nomeadamente os das descidas das escadas íngremes.
A direcção de fotografia do filme, assinada por Christopher Doyle e por outro nome de peso do cinema asiático, Mark Lee Ping-bin (colaborador habitual de Hou Hsiao-hsien) é um dos triunfos de Fa yeung nin wa.
Todo o filme é uma lição de elegância que teve um considerável impacto artístico posterior em áreas tão improváveis como a moda. Os qipao que Maggie Cheung exibe ao longo do filme (uma das peças de roupa mais importantes da história da China moderna) conheceram um certo revivalismo após a película.
Os dois protagonistas, ambos actores superlativos, têm uma das prestações mais subtis e ao mesmo tempo mais poderosas das suas carreiras. Mas é a ambiência, o mood do título internacional que mais fascina no filme. O cinema existe para que se filmem coisas assim. O desejo das personagens pode ser reprimido, mas o espectador, esse, conhece aqui o êxtase cinematográfico.
Fa yeung nin wa passa no Casino Estoril, dia 9, às 22h, e no Monumental dia 13, às 21:45.