Quando terminamos 12 Years a Slave (12 Anos Escravo, 2013) há algo que fica connosco. E não, não é necessariamente o sentimento de raiva visceral e injustiça sobre a dúzia de anos que Salomon Northup (homem negro livre raptado em Washington), trabalha como escravo nas plantações do Louisiana. O que fica é a ideia de que há qualquer coisa que parece perdida no cinema de Steve McQueen com esta sua oscarizável terceira longa-metragem. O que se terá perdido: a liberdade? Um “escravo” ao serviço de um filme sobre escravos? Film within a film? Ou melhor, reality within a film? Talvez o trocadilho seja tão mais sugestivo quanto verdadeiro para explicar esta sua adaptação das memórias de Solomon, escritas em 1861.
Seja como for, a co-produção do cinquentão Brad Pitt (que tem aqui uma breve aparição como carpinteiro benevolente), as cenas-episódio de Paul Giamatti ou mesmo de Paul Dano vão denunciando que o orçamento à disposição do cineasta britânico mais do que triplicou em relação a Shame (Vergonha, 2011) e com ele a entrada em pleno no que muitos norte-americanos chamam cinema (vulgo “traditional storytelling”) e desembaraço desse horror de “principiante” que era o “umbiguismo” estético e autoral, ainda para mais com exploração decadente dos corpos em processo de sacrifício e auto-aniquilação que tinha começado com o excepcional Hunger (Fome, 2008).
Essa sombra sadomaso também tem perseguido 12 Years a Slave, sobretudo por parte daqueles que acham o filme desrespeitoso: que comprazimento é este na dor?; como pode a câmara de McQueen comportar-se de forma tão fria e plácida quando enquadra Solomon (Chiwetel Ejiofor) a desfigurar a beleza, a chicotear brutalmente as costas da jovem escrava, Patsey [é The Passion of Christ (A Paixão de Cristo, 2004) do sedento Mel Gibson novamente? Ou será que a abjecção de Rivette chegou finalmente aos Estados Unidos com cerca de 50 anos de atraso, paralisando tudo e todos?]; mas por outro lado, que neutralidade e indiferença são essas ante um assunto tão importante?
O curioso é que, mais interessante do que o filme em si – assente em valores mais ou menos consensuais e naturalistas que o histrionismo da personagem de Fassbender (que transporta o filme para uma lógica mais abstracta da dominação e subjugação); ou a dimensão algo literária dos diálogos – procura, por vezes, contrariar – é perceber como a recepção do mesmo comporta uma auto-análise esquizóide de tecido emocional do Uncle Sam que oscila entre o melhor filme sobre escravatura jamais alguma vez feito (e que dará, possivelmente, pela primeira vez na história um óscar de melhor realizador a um homem de raça negra) e aquele pedaço de “slavery porn”, exercício de horror que não comporta nenhum tipo de esperança ou optimismo. No Way out.
Que o cinema tenha de ser portador de céus azuis numa paisagem histórica carregada é uma estranha ideia. Ainda para mais, quando isso de facto sucede, por exemplo, sob uma forma meio tresloucada de redenção, ou fabricação de um lado B da história [vide Django Unchained (Django Libertado, 2012), o outro filme recente sobre o tema, infinitamente superior, diga-se, e com várias cenas e personagens semelhantes, desde logo a relação Pats (Fassbender) / Calvin (DiCaprio)], as acusações de desrespeito continuam a chover pela seita dos realismos. Mas a expressão “no way out” faz sentido no cinema de McQueen, não propriamente como falta de um “bright side of life”, mas sobretudo porque a prisão é o seu tema. Era-o fisicamente para a decadência meticulosa de Bobby Sands e os outros prisioneiros do IRA em greve de fome e em greve de espaço. Era-o para a prisão interior e emocional dos esgares de prazer de Brandon, quando confrontados com a largura dos espaços (e Shame é um filme dos travellings sobre as ruas, a correr, a andar, a desesperar…). Ele dizia à irmã como ela o tinha encurralado: “You trap me. I got nowhere else to go”. E é-o certamente para a prisão física e social a que é devotado Solomon que, como o Baltazhar de Bresson [Au Hasard Balhasar (Peregrinação Exemplar, 1966)] vai mudando de dono, dependendo a sua sobrevivência da manifestação da sua “burrice” (isto é, escondendo a sua origem letrada, de homem de negócios, livre).
Se a escravatura é ainda uma issue e traz para 12 Years essa ideia de que a história de Solomon é a história de um povo, de que o tema deve ser tratado com pinças, então estamos a falar da escravatura como tema aprisionante. E não é outro o problema do filme. McQueen disse uma vez que nunca poderia fazer filmes americanos pois eles gostavam de happy endings. Esqueceu-se contudo que o peso da narrativa histórica (e de traços arqueológicos para a psyche nacional) o obrigariam a um polimento descritivo que ia muito para além dos finais. Assim sendo, além dos orgasmos secretos pela noite em planos emparedados, dos sons do barco que leva Solomon (a escravatura como sistema mecânico em funcionamento), pouco mais fica além de um filme-tese que expõe os horrores de uma marcha de dominação racista.
Talvez fosse preciso que McQueen tivesse maior liberdade para filmar essa prisão.