Dos 75 títulos como actor que o IMDB dá a Bill Murray não é claro achar o momento que partiu a sua carreira, agora com 40 anos, em dois: na primeira parte ele foi um actor, na segunda é um ícone. Não é possível não incluir Wes Anderson nesta metamorfose, mas se tivesse de arriscar dizia que são o road movie interior pelos amores falhados de Broken Flowers (Flores Partidas, 2005) de Jarmusch e o apagamento do spotlight da fama e da juventude de Lost in Translation (O Amor é Um Lugar Estranho, 2003) de Sofia Coppola os filmes desse mudança. São eles as razões pelas quais olhamos hoje o rosto cansado e – deixem-me cá ver uma palavra elegante – poroso, de Bill Murray, não como um mapa de rugas where-is-the-next-party, marca de um mero envelhecimento cool, mas como uma certa atitude/postura perante a vida.
O jovem realizador Theodore Melfi sabe bem disso, dessa importância, e foi ela que quis usar como material plástico na sua primeira longa metragem, St. Vincent (Um Santo Vizinho, 2014). Nesta comédia dramática – que coloca lado a lado um menino, temporariamente sem presença paternal devido ao divórcio da mãe e o seu baby sitter improvisado, o vizinho do lado, o bebedolas comedor de “sushi” improvisado a partir de latas de sardinha, o grumpy old man Murray – o que interessava era sobretudo saber como iria gerir, como compreendia Melfi a figura, a posição de Bill. Talvez o excesso de adoração (religiosa) o tivesse feito resvalar para a “beatificação”. Um dia na escola, em St. Patrick, Olivier é interpelado pelo professor para fazer a oração diária. O menino diz que não dá pois acha que é judeu. O professor-padre faz uma prelecção sobre como naquela sala há lugar para todas as religiões do mundo mas que a católica é a melhor, a que tem as melhores regras. Foge a boca para a verdade a Melfi que muitas cenas à frente conclui que o melhor a fazer àquela figura do bêbado, amante de prostitutas de leste (Naomi Watts com sotaque), apostador de corridas de cavalos (mas que há não sei quantos anos lava a roupa da mulher que sofre de demência) é mesmo “canonizá-lo” na boca do menino para quem o velho não devia estar mais longe do modelo de vida a seguir. É, convenhamos, uma clausura muito catolicazinha aquela de glorificar os pobrezinhos que vivem na sombra, os heróis do dia-a-dia, os enjeitados, os infelizes.
Mas como uma das virtudes do catolicismo é o perdão, perdoe-se a Melfi que entretanto já tinha filmado Bill Murray, de cigarro no canto na boca (e o outro canto imobilizado devido a um avc), a fazer corridas de cadeira de rodas com Oliver no hospital, e ainda ia filmá-lo, na melhor cena, sentado no quintal a regar uma plantinha com uma bandeira americana espetada no vaso e a cantar “Shelter From the Storm” do Dylan. São os momentos de descompressão e gozo aqueles que melhor mostram o que representa Bill Murray para nós: uma espécie de homem sem qualidades ou particulares expectativas, amargo q. b., demasiado ocupado a viver o presente, demasiado ensinado pelos falhanços do passado, para esperar o que quer que seja.
Nesse retrato, que vai além do “hard outside e soft inside” dos heróis modernos [de Dirty Harry ao Walt Kowalski do Grand Torino (2008), para ficar apenas noutro recuperado e com uma personagem próxima de Vincent] Melfi compreendeu ainda a postura laid back (figural e metafórica) de Murray. Outra cena: Murray, desta vez deitado – é dessa postura que falo, a postura da “inactividade serena” – a dormir de phones nos ouvidos enquanto o miúdo trabalha. Essa é a postura que já não santifica instituições como o trabalho: se já não há nada para fazer, se o trabalho já deu o que tinha a dar, para quê levantar? Finalmente, há outro momento em que Vincent vai fechar a conta no banco e em que percorre lentamente o labirinto composto pelas baias de segurança para os clientes fazerem fila (mas onde agora não há vivalma) até chegar à caixa. Nessa cena, ele, nós, estamos conscientes que a funcionária não tem culpa nenhuma da situação dele, e por isso ele não a manda “fuck herself” pois é apenas uma marioneta. E no entanto, manda. Pois ela faz parte da mesma fauna dos “mangas-de-alpaca” que lhe telefona para casa para vender coisas via telemarketing. Tudo isso também está em Murray, uma certa atitude de desprezo pelas burocracias e constrangimentos absurdos de uma excessivamente regrada civilização.
Estes são só alguns traços, genericamente pensados, do que pode explicar ou incorporar a persona de Bill Murray. Estes, parece-me, só fazerem sentido quando, fazendo um pouco de sociologia de polichinelo, se acrescentar o argumento da idade. É que os textos, as visões críticas que construíram a importância icónica de Bill Murray, pertencem aos críticos, autores, espectadores hoje na casa dos trinta/quarenta anos que antevêem e projectam nele uma velhice que se anunciará assim, pela primeira vez, “sem qualidades” ou complexos de culpa. Finalmente, não haverá velhinhos nos bancos do jardim bem comportados à jogar à sueca ou amarrados à santidade do matrimónio. E isso é Murray que nos diz: ele é, nesse sentido, o primeiro de uma geração de velhos foliões que se anuncia. Tudo sem qualquer espécie de pompa, claro. Fim de parágrafo de polichinelo.
Tentando recuperar alguma dignidade nesta ponta final acrescento que St. Vincent, não sendo um grande filme, é um objecto simpático, um filme que quando não resvala para o julgamento moral da vida, merece a simpatia dos que o vêem. Sobretudo dá vontade de deixar que Murray projecte a sua aura enquanto vamos avançando pelas cenas, deixando que quem venha a seguir explique o que acontece. Explicar como quem tem de cortar a relva quando já não há relva para cortar, quando à volta já só há terra. Afinal de contas há um último whisky para beber e alguém tem de o fazer.