Blinking red light seems to
brush off the illusion
Traffic Jam giving me hard time
getting to my destination
Gentleman, would you move out my way
‘Cause I gotta find
‘Cause I gotta find my destination
Gotta get me to my Gypsy Woman
Before I get out of my mind
Driving to my Gypsy Woman
She’s got a mystic crystal ball
Strawberry Path, “Gotta see my Gypsy Woman”
O papel da, não tão famosa como devia ser, Art Theatre Guild (ATG) foi capital para entender o desenvolvimento e expansão do cinema independente japonês correspondente aos últimos anos da década de 60 e primeiros da de 70 numa era em que a maioria dos estúdios estava ligada à máquina de suporte de vida e a qualquer altura alguém ou algo podia puxar a ficha da tomada. Tratou-se de uma produtora e distribuidora, de facto, revolucionária, capaz de assegurar a continuidade do projecto estético da tão equivocadamente apelidada Nouvelle Vague Japonesa (ou Nûberu Bâgu), agora dissidente das hierarquias e dos centros de decisão do costume. Não houve praticamente nenhuma figura pertencente a esse “movimento não alinhado” de cineastas que não estivesse relacionada de uma forma ou de outra, expressa ou tangencialmente, com a ATG, fazendo uso de uma liberdade artística sem precedentes para nesse berço fabricar as mais marcantes obras de cada “carreira” individual. Olhando retrospectivamente, atendendo ao escopo e à capacidade agregadora, torna-se inclusive difícil encontrar paralelos na história do cinema, ontem como hoje. Nunca uma produtora foi tão decisiva na criação de um movimento cinematográfico, movimento esse que chegou mesmo a transfigurar os preceitos daquele que lhe precedia, como a ATG. Ela preside como a depuração ulterior de todas as Novas Vagas internacionais, sem dúvida representando a sua faceta mais organizadamente radical. Na verdade, apenas um olhar desatento seria capaz de consultar o catálogo de 1966-1974 e nele ver filmes dispersos de mentes incomunicáveis, apoiadas arbitrariamente pelos dinheiros e chancela de uma companhia. Pelo contrário, a lógica específica de produção, bem como o ar dos tempos afectavam decisivamente (com poder causal, diríamos) o momento criativo, estabelecendo pontes e diálogos imprevisíveis, em suma, solidificando um projecto comum e quase inconsciente entre cineastas tão diferentes. É caso para esquecer os constrangimentos da individualidade autoral, chupar a pastilha da ATG, e alucinar colectivamente com os filmes.

O projecto estético da ATG não tinha outra pretensão do que percorrer, escalpelizar e esgotar as potencialidades do cinema, esquecendo a História do medium e as suas lições como se de uma tabula rasa se tratasse. Para satisfazer semelhante requisito holístico, seria necessário recorrer à velha razão da dialéctica, aquela que cria identidade através da tensão do seu oposto. Resistindo a conceptualizações sem a exemplificação prática, eis que o catálogo da ATG se bifurcava em dois tipos de cinema logo na sua génese. O primeiro (também cronologicamente falando) promovia o logos a determinação fundamental do real – e, nesse sentido, o real é huis clos da mente, fundado e provado apenas por um jogo de espelhos interior que é possível exteriorizar, manipular e montar pelo demiurgo, profundidade insondável, anti-psicologista, de um personagem descarnado de identidade como se observa em Kôshikei (Morte por Enforcamento, 1968) de Nagisa Ôshima ou fatalismo encenado, transfigurador da própria materialidade do décor (o décor como cosmos, mens agit molem) como sucede em Yûkoku (Patriotism, 1966) de Yukio Mishima ou Shinjû: Ten no amijima (Double Suicide, 1969) de Masahiro Shinoda, entre outros. Um cinema denso, de reduções metafísicas, teatral no sentido de tudo se emparelhar numa certa bidimensionalidade fechada, palco com as fronteiras a sair das costuras e duplos artificialmente imanentes necessitando de um olhar abstracto que tudo apague e considere o que se encontra dentro dos limites como tudo o que há. Um cinema enclausurado no estúdio, laboratorial e subjectivo, em que o vazio enche. Chamei a essa primeira dimensão sistólica por me parecer que no movimento recuado de uma contracção se revelava o segredo primordial do alquimista que pretendia superar a confusão dispersa da actualidade múltipla do real, recriando-a para a interpretar a uma nova luz.
É aqui que Arakajime ushinawareta koibito-tachi yo (Lost Lovers, 1971) se destaca como sendo o mais marcante exercício cinematográfico da tabi (jornada ou viagem em japonês) e aquele em que essa dimensão é suficiente para germinar raízes diastólicas. Um road-movie on the road, se Kerouac fosse japonês.
Ora, o cinema diastólico, nos antípodas do sistólico, encontra primazia na exterioridade do mundo. Identificamo-lo várias vezes nessas cenas do catálogo ATG em que as paredes do estúdio são derrubadas e o peso do que se encontra lá fora nos faz estremecer por nos apercebermos que as ficções não bastam. É preciso pô-las em causa, não por via de um acesso ao real enquanto tal (como se semelhante petição se pudesse concretizar quando mediada por um aparelho de registo – nenhum destes cineastas é cândido a este ponto), mas mergulhando no caos da dialéctica sujeito-objecto, perder o pé narrativo; nas ruas querer abolir os ditames da razão, temporalizar e datar a metafísica com os ares do presente. A diástole corresponde ao cinema de documentários falsificados – Ningen jôhatsu (A Man Vanishes, 1967) de Shôhei Imamura – ou a um em que essa linguagem não se destrinça de nenhuma outra e só o jogo da síntese entre registos conta – Shinjuku dorobô nikki (Diary of a Shinjuku Thief, 1968) de Ôshima, Bara no soretsu (Funeral Parade of Roses, 1969) de Toshio Matsumoto ou Sho o suteyo, machi e deyô (Throw Away Your Books, Rally in the Streets, 1971) de Shûji Terayama são claros exemplos desta tendência. Mas a estética da diástole, da distenção que antecede ou sucede à contracção sistólica, também se consubstancia narrativamente (nas magras diegeses que resistem à sua anulação) na errância, na fuga e deslocação através de uma câmara volátil e dispersa que a nada se apega, tal e qual um beatnik americano anos antes ou um membro dos, sem dúvida mais contemporâneos, futenzoku (literalmente “tribo dos vagabundos”, uma espécie de versão japonesa do hippie). É aqui que Arakajime ushinawareta koibito-tachi yo (Lost Lovers, 1971) se destaca como sendo o mais marcante exercício cinematográfico da tabi (jornada ou viagem em japonês) e aquele em que essa dimensão é suficiente para germinar raízes diastólicas. Um road-movie on the road,se Kerouac fosse japonês.
Realizado a quatro mãos por duas figuras da contra-cultura que nunca mais arriscariam filmar para o grande ecrã como quem o manda “ir dar uma volta ao bilhar grande” por já terem ardido tudo o que havia para arder, o currículo de Soichiro Tahara e Kunio Shimizu era também revelador de alguma coisa. O primeiro, jornalista de fama, polemista e responsável pela criação de uma série de documentários rodados para televisão no fim dos anos 60; o segundo, um dos arautos do novo movimento teatral underground (ou angura, como se decidiu transliterar no Japão), obcecado pela força bestial da performance desviada do texto, individualidade sem concessões que, no limite, se torna anti-social e nega todas as estruturas de poder. Se bem que poderia ser legítimo vermos contemplada nesta associação de um homem da actualidade jornalística com um rigoroso e virulento dramaturgo a própria consumação da dialéctica da diástole e da sístole com todas as dicotomias já assinaladas; é o passado de ambos nas Produções Iwanami (uma influente produtora de documentários activa sobretudo nos anos 50 e 60) que ilustra a vontade indómita (e, acima de tudo, diastólica) de Lost Lovers projectar o cinema para fora de si próprio (provem-no a quase ausência de décors fechados, a equipa técnica com formação na área documental, etc.), ao mesmo tempo que rabiscava, pelas linhas vagas de um trio de vagabundos na areia, o retrato de uma geração quiçá em vias de se extinguir.

Mas, que trio vem a ser este? Saltador com vara frustrado, Takeru (sublime Renji Ishibashi) é agora um meliante, caminhando sem destino nas zonas costeiras do arquipélago. Fala-barato viciado na sua própria voz (para, de algum modo trapacear a extrema solidão em que se encontra), vemo-lo logo na cena de abertura no chão, abraçado ao saco com a sua tralha, prometendo juras de amor a uma velha amante que parece existir unicamente na sua cabeça. De seguida, queixa-se à frente do mar num misto de patetice absurda e estranha tragédia. A linguagem empregada pelo pregador desconchavado é semelhante à sua vida: poética, improvisada e privada ao ponto da incomunicabilidade. Grita para as ondas turbulentas que nele residem mundos, cidades, sonhos, multiplicidade a perder de vista; que, no fundo, ele é a humanidade e que, por conseguinte, não precisa da outra com agá grande. O êxodo civilizacional começa logo aqui. Esta existência, pelo seu modus vivendi, prescinde da sociedade, não conseguindo porventura desfazer-se do seu mais precioso signo: as palavras. Lost Lovers, portanto, numa primeira fase dedica-se a confrontar Takeru, o viajante solipsista, com o mundo que o rodeia, seja através de longos solilóquios sem resposta, ou pelo tratamento hostil das populações face aos comportamentos exóticos do vagabundo. Numa pequena praça, encontra um casal de surdos-mudos despidos, fazendo de estátua para observadores que aproveitam a condição física dos artistas de rua para vociferar piadas porcas e nomes feios. Perante a discriminação bruta da populaça, a reacção deles, ataráxica se fosse observada por um tragediógrafo Grego, banhada a satori aos olhos de um monge zen Japonês, fascina Takeru. Dali em diante, ele seguirá as pisadas do casal na areia morna do deserto, esse casal que substituiu a mente pela epiderme. Juntos caminham com o mundo às costas. Mas para onde vão e porquê?
A rouquidão vocal e as guitarras bluesy de Strawberry Path, projecto musical único que juntou Jimmy (Shigeru Narumo) e Hiro Tsunoda, pontuam a caminhada vadia dos três personagens. Têm o efeito do coro num drama grego, uma voz extrínseca, altamente reminiscente da de Jimi Hendrix se ele tivesse dificuldade em dizer os erres, que fura os céus, prega para os ouvidos mais distraídos e comenta a acção narrativa. Nas várias faixas do álbum When The Raven Has Come To The Earth (quase todo presente em Lost Lovers) encontramos um eco-sistema específico, um mapa-múndi da vi(d)a nómada: amor impossível, nostálgico e fracassado, daqueles que nos fazem despedir de um emprego e da vida comunitária em “Mary Jane on my mind”; sentido metafísico da mendicância em “Five more pennies”; ansiedade da partida e urgência da chegada (da chegada que antecipa uma nova partida) em “I Gotta see my Gypsy Woman”, enfim, encontros avassaladores capazes de desenquadrar velhas perspectivas, como por via da magia de uma mística bola de cristal. Rapidamente percebemos que a viagem em causa, sem destino, pende para a redescoberta daquilo que poderíamos chamar de um carpe diem na era psicadélica. Mas essa veneração pelo tempo presente tem de ser posta à prova, mesmo tratando-se de uma pequena comunidade improvisada composta por três pessoas. A necessidade de pertença do pequeno ladrão ao reino estritamente sensorial dos dois surdos-mudos levitantes revela-se quase fatal para o estabelecimento de uma nova e mais profunda intimidade com eles (e com o próprio). A projecção por parte de Takeru da amante fantasmática na rapariga (Kaori Momoi na sua estreia em cinema, suave como uma felina) revela igualmente uma vontade de posse (mascarada por um narcisismo onanista) contrária ao ethos de quem se tentou libertar dos tiques idealistas da mente, tiques que criam significado antes da experiência e condicionam a realidade privada através da linguagem, sujeitando-a a um uso público. Os seus ciúmes pela liberdade radical do jovem mudo também quase deitam tudo a perder, no entanto se foi o erotismo que quase destruiu esta comunidade, é também ele que a salvará no final.
É no derradeiro embate com as populações locais, consequência da separação anterior com o casal, que a exasperação das fronteiras da comunicação linguística se tornam finalmente evidentes para Takeru. Um verdadeiro manifesto pela rejeição de todas as línguas do mundo sucede-lhe. São elas que precisam ser abolidas, mesmo quando a intenção seria a de ir com elas até ao fundo da subjectividade, como anteriormente ele tinha tentado fazer frente ao mar. Na perspectiva deste ex-tagarela convertido agora ao silêncio permanente, a maior revolução equivaleria a reverter a arte na vida, a impressão na expressão, a interioridade na exterioridade, a sístole na diástole. Entregando-se a um novo erotismo, não o da posse mas o da imanência, descartando o seu nome e o próprio conceito de um “eu reflexivo”, ele pode agora novamente juntar-se aos outros dois misteriosos personagens e tocarem-se nas dunas enquanto a civilização os tenta anular. Neste ponto, Tahara e Shimizu, embrenhados pelo espírito dos tempos, tentam mitificar o exemplo destes resistentes, tornando alegóricos os últimos dez minutos de película e recusando, desta vez em definitivo, qualquer traço verosímil. Os três mendigos são elevados, em simultâneo, ao estatuto de mártires, super-humanos e falsários. Nunca pretendendo ser um documentário, nem sequer um pseudo-documentário, Lost Lovers contém tanta ou mais carga diastólica do que outros filmes da ATG feitos nesses outros registos. Extrapolando as coisas, poderíamos dizer que o trilho deste trio (nesta anulação radical do logos em virtude da adopção do mauna hindu que possibilita uma pululante vitalidade daquilo que escapa à influência e hegemonia da mente sobre a matéria), deveria servir como metodologia cinematográfica para os restantes sucessores do movimento. E ter-nos-íamos enganado se pensássemos que esse não foi o caso.