Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Herberto Helder, em A Colher na Boca
Nós não pensamos nada, não há um homem propriamente
‘pensante’, nós ‘ouvimos’.
Eduardo Lourenço, em Da Música
A exemplaridade (ou se lhe quisermos chamar o tom por que afinou a intervenção e a obra) de Eduardo Lourenço que, no entender de Maria Filomena Molder, “é uma das forças maiores deste pensador”, radica em “ter-se convertido num deserdado por decisão própria”.
Em reacção à sua morte, Maria Filomena Molder acrescenta: “Ficamos órfãos da ‘voz que nos ensaia’, que ele atribuiu a Montaigne, aquela voz que, segundo ele, não foi escutada na aventura espiritual portuguesa. Em Eduardo Lourenço, ouço ainda essa voz que nos ensaia. E isso é um exemplo.”
Mas dado que, como assevera Eduardo Lourenço, uma atitude como a dos Ensaios de Montaigne não podia estar presente entre nós enquanto “cultura laica e primeira expressão de modernidade”, tal como “não é certo que possamos integrá-lo, mesmo a título póstumo”, maior é ainda o alcance, no “lugar vazio da nossa cultura”[i], dessa atitude vicariante de Eduardo Lourenço posta com talento e generosamente em prática em nossa vez e para nós.
O que quer dizer que lhe coube, por sua vez, ser “como fermento activo e perturbador da vida espiritual de uma época” e “inventar a sua própria figura” no exercício de uma liberdade de espírito cuja fidelidade “empresta à sua escrita e à sua voz tão familiar um tom novo, a voz que ensaia, que não está mais certa do que afirma do que do que nega, navegando sem pânico, mas também sem socorro celeste, entre céu e terra”[ii].
“No diálogo subterrâneo com a própria obscuridade”, já outros modos de comunicação tinham sido ensaiados para abordar a nossa condição, entre eles, a confissão, o diário íntimo, as cartas, mas a curiosidade por conta da qual, nos Ensaios de Montaigne, a aventura realizada ao invés da cronologia no interior do labirinto humano, “como se a percepção da sua singularidade acompanhada do desejo de a ‘pintar’ o fizesse existir duas vezes em vez de uma”[iii], encontra fértil prolongamento no dispositivo cinematográfico associando à “metamorfose” moderna da experiência interior “uma nova maneira de ver o mundo”, segundo a fórmula usada por Eduardo Lourenço para caracterizar a invenção do cinema, em entrevista conduzida por Anabela Mota Ribeiro.
Já outros modos de comunicação tinham sido ensaiados para abordar a nossa condição, entre eles, a confissão, o diário íntimo, as cartas, mas a curiosidade por conta da qual, nos Ensaios de Montaigne, a aventura realizada ao invés da cronologia no interior do labirinto humano, encontra fértil prolongamento no dispositivo cinematográfico associando à “metamorfose” moderna da experiência interior “uma nova maneira de ver o mundo”, segundo a fórmula usada por Eduardo Lourenço.
É, aliás, nessa mesma entrevista, que Eduardo Lourenço, não sem causar espanto, convoca o seu encontro com Charles Péguy para afirmar que, sendo um “nome que hoje não diz muito”, foi a “pessoa que mais o influenciou, no pensamento sobre a História”. Vale a pena atentar na explicação:
“[Péguy] trava uma batalha quixotesca contra a visão dominante [visão positivista da História] para [defender] a ideia de que uma acumulação de factos não cria um sentido. Nunca criará um sentido. O sentido tem de vir sempre de uma outra fonte, que não é a da sequência”. Eduardo Lourenço esclarece:
“O problema do Péguy: como é que o que nós somos, como realidade temporal, adquire sentido? A colecção de instantes é sempre uma maneira de se ser eterno. A eternidade não é uma coisa, um sítio final para onde tudo conflui. Ela está implicada na sucessão de instantes. E isso, [com ele], aprendi para sempre”.
O efeito de uma tal aprendizagem terá, porventura, determinado o nexo que o próprio encontra entre as suas diversas abordagens da realidade: “No fundo é a procura de um só tema. E, de facto, se virmos bem, o fio condutor do que venho fazendo, e procuro ainda fazer, é uma reflexão constante sobre o tempo. Ou melhor, a temporalidade.”
A prática diarística de Eduardo Lourenço fornece uma indicação adicional sobre o uso da cronologia que, talvez, não seja de menosprezar:
“Numa primeira fase ainda havia alguma cronologia. Intermitente, mas ainda havia. Depois, deixou de haver. Há períodos imensos, anos, em que não há nada. Coisa nenhuma. Depois, volta a haver, noutros períodos. Quer dizer, não é um diário no sentido banal da palavra. É mais uma coisa de reflexões, de comentários, de glosas, de fait-divers”[iv], em que, perante a eventualidade da sua publicação, o que mais importa é preservar “a espontaneidade e a força de algo do momento”.
Não foi apenas através das referências que trouxe para o seu livro Notas sobre o cinematógrafo que Robert Bresson demonstrou a sua dívida para com Montaigne. Jean-Luc Godard aludira à mesma nos seguintes termos: “Considero-me um ensaísta, faço ensaios em forma de romances ou romances em forma de ensaios. Só que os filmo em vez de os escrever. (…) O cinema, como dizia Truffaut, tem o lado espectáculo ― Meliés, e o lado Lumière ― a pesquisa. Hoje em dia, se eu me analisar, vejo que, no fundo, sempre quis fazer um filme de pesquisa sob a forma de espectáculo”[v]. Robert Bresson ― para quem também existem “duas espécies de filmes: os que recorrem aos meios do teatro (actores, encenação, etc.) e se servem da câmara para reproduzir; e aqueles que empregam os meios do cinematógrafo e se servem da câmara para criar”[vi] ― ao contrário, no seu filme Pickpocket (O Carteirista, 1959) segue outra via. Por isso, faz notar desde o cartão inicial que não se trata de um filme de “estilo policial”, mas de uma “aventura interior” em que a emoção se alimenta primordialmente dos recursos da imagem e do som.
Dir-se-ia: com o primeiro plano, de dez segundos, todos os dados estão lançados. Grande plano da página de um caderno em que, à mão, é escrita a última de cinco linhas, enquanto uma voz sobreposta no-las faz ouvir.
Entre este e o último plano do filme há um ínvio caminho em que um complexo jogo de desdobramentos, desfasamentos temporais e muitas outras fragmentações entre a narração em off, os diálogos e as imagens irão ocorrer.
No primeiro plano, a voz é a de um narrador que conta na primeira pessoa uma “história passada”, dir-se-ia, recorrendo o uso do flashback. No último plano, escutamos a bem conhecida declaração: “ ― Oh Jeanne, pour aller jusqu’à toi, quel drôle de chemin il m’a fallu prendre”, de que dou a minha tradução: “ ― Oh Jeanne, para chegar a ti, que ínvio caminho me coube percorrer”.
Entre o gesto do início (mão que escreve) e o encontro do final (mão que é beijada) o avanço no desconhecido faz-se através do desenvolvimento do “poder mágico da mão”[vii]: mão que se torna de tal modo hábil que permite estreitar os limites, levar a audácia ao último grau, encontrar a melhor maneira de se aproximar lentamente e reduzir a distância ao mínimo para fazer deslizar qualquer coisa tentadora do corpo de outrem. A sensação de não ter os pés na terra e dominar o mundo, afirmada pelo protagonista, só encontra equivalente no “faro táctil”[viii] e no virtuosismo necessário ao seu exercício, permitindo-lhe tornar-se imperceptível, livre de ser apanhado.
A sensação de não ter os pés na terra e dominar o mundo, afirmada pelo protagonista [de Pickpocket], só encontra equivalente no “faro táctil” e no virtuosismo necessário ao seu exercício, permitindo-lhe tornar-se imperceptível, livre de ser apanhado.
À questão, aparentemente sem baias, formulada pelo protagonista sobre a admissibilidade de “certos homens, inteligentes, dotados de talento, indispensáveis à sociedade, em vez de vegetarem durante a vida inteira, serem livres em certas circunstâncias para desobedecer às leis”, poder-se-ia contrapor esta outra: como “existir duas vezes em vez de uma?”
Conhecemos a resposta de Montaigne: “No momento em que me apercebo da brevidade da vida procuro sublinhar quanto a aprecio. Quero suster a rapidez da sua fuga com a minha presteza para detê-la e compensar quanto possível a transitoriedade com a intensidade”[ix]. E poderíamos invocar a de Henri Focillon: “O gesto criador exerce uma acção duradoura na vida interior”[x].
Arrisco, no entanto, uma outra a partir do filme: no momento em que, depois da ideia de partir, que subitamente lhe veio à cabeça, Michel entra na carruagem do comboio com destino a Milão, enquanto se aproxima da janela, ouvimos em off: “aquele instante deixou-me uma lembrança inesquecível”. Não dispomos de outras indicações, apesar do registo no caderno, para aferir de que instante se trata. Contudo, na última cena, como que antecipando a declaração final, quando Jeanne vai ao encontro de Michel, pudemos escutar a voz deste afirmar: “Algo iluminou o seu rosto”.
Apesar de não termos indícios de que o flashback tenha acabado, é essa luz que anuncia o presente do momento em que abatida, afundada na “crença” de que Michel era um ladrão, Jeanne se atira para os braços dele. Há nas declarações de amor uma promessa: viver a dobrar.
Tal como para escrever os Ensaios Montaigne se exilara na sua torre, e o protagonista de Pickpocket se exercita no seu quarto a passar do exterior ao interior ou viaja para o estrangeiro para elevar a sua audácia ao mais alto grau, assim também se confinado o espectador se extravia, segue por uma via não previamente traçada, a bem dizer, um caminho ínvio: à sua volta, entre livros e filmes, é o Elogio da mão que o retém, 25 páginas com muitos sublinhados antigos, a preparação ou ainda um adiamento de “encontros que podem ser decisivos”, capazes de propiciar uma outra visão, distinta da visão natural e ingénua que é a nossa, uma vez que Vivre sa Vie (Viver a Sua Vida, 1962) não pode ficar esquecido, enquanto anota um último apontamento de Montaigne:
“Somos todos feitos de retalhos, entretecidos tão disformemente que cada elemento e cada momento age por conta própria. E tanta diferença há entre nós e nós mesmos como entre nós e outrem”[xi].
[i] Eduardo Lourenço, «Montaigne como lugar vazio da nossa cultura», em Hetrodoxias, vol. 1, Obras Completas (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012), 455–62.
[ii] Eduardo Lourenço, «Montaigne ou a vida escrita», em Hetrodoxias, vol. 1, Obras Completas (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012), 539.
[iii] Lourenço, 536–37.
[iv] Eduardo Lourenço, «Estou em dívida para com a humanidade inteira» – Entrevista a Eduardo Lourenço por Carlos Vaz Marques, Revista LER n.o 72, Setembro de 2008.
[v] Jean-Luc Godard, «A Sinceridade da Nova Vaga – Entrevista com Jean-Luc Godard [Cahiers du Cinéma, n.o 138, 1962]», em Jean-Luc Godard (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1985), 133,149.
[vi] Robert Bresson, Notes sur le cinématographe (Paris: Gallimard, 1975), 11–12.
[vii] Henri Focillon, Vie des Formes suivi de Éloge de la main, [1943] (Paris: Quadrige / PUF, 1981), 119.
[viii] Focillon, 108.
[ix] Michel de Montaigne, Essais – III, ed. Pierre Michel (Paris: Gallimard / Folio, 1965), 410.
[x] Focillon, Vie des Formes suivi de Éloge de la main, 128.
[xi] Montaigne, Ensaios – Antologia, trad. Rui Bertrand Romão (Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2016), 147.