Nascido em Skopje em 1943, na antiga Jugoslávia, Karpo Godina (agora com nacionalidade eslovena) distinguiu-se como director de fotografia de filmes como Rani radovi (Early Works, 1969) e Crni film (Black Film, 1971), de Želimir Žilnik, ou Okupacija u 26 slika (Occupation in 26 Pictures, 1978) de Lordan Zafranovic, mas principalmente como realizador, e sempre no centro do movimento New Yugoslav Film (também conhecido pelo termo Black Wave) do cinema jugoslavo, com uma filmografia irreverente e na vanguarda do experimentalismo, sobre a qual incide o foco da retrospectiva que o Beast International Film Festival lhe dedica (como parte de destaque sobre o cinema da Eslovénia). Uma carreira que atravessou várias décadas e diferentes estilos visuais mas também períodos conturbados da história jugoslava e europeia, este percurso cronológico pela obra de Godina permite também acompanhar as diferentes fases do seu cinema, desde uma espécie de descoberta do cinema e um encantamento com as suas possibilidades além da narrativa, ao desenvolvimento de uma linguagem mais politicamente envolvida, um anti-autoritarismo e uma consequente desilusão com o estado do mundo (o cinema como arma de resposta, de “desarmar” a realidade).

Os primeiros três filmes podem ser agrupados não só pela sua semelhança visual (a preto-e-branco e de câmara irrequieta), mas também temática, já que, sendo primeiros filmes, parecem corresponder a um momento (1965-1966) de namoro e entusiasmo pela câmara e pelo cinema: os movimentos desta são a peça central, os grandes protagonistas destes filmes. É impressionante a forma como Godina usa os movimentos, oscilações, zooms, alterações de velocidade ou perda de foco, que parecem quase truques num número de magia, para recriar uma sensação de êxtase ou até desorientação sensorial. Apesar das semelhanças, cada um destes três filmes é distinto, e apresenta variações dentro de um registo próximo, característico de um autor a “afinar” a sua arte.
Em Divjad (Game/Wildlife, 1965), assistimos a uma espécie de paisagem urbana, com imagens da vida nas ruas de uma cidade jugoslava, ou melhor, retratos das pessoas que a câmara de Godina segue compulsivamente, ou melhor, os rostos e expressões das figuras que se atravessam no caminho do realizador. Se a câmara parece interessada em registar o “momento”, rapidamente se distrai e foca-se numa figura feminina que segue compulsivamente; a irrequietude da câmara é notável, tal como é a forma como Godina consegue partilhar uma ideia de vitalidade e descoberta (ao que não é alheia uma banda-sonora contagiante), mas também tentando desde logo seguir as suas próprias regras (filmando o que lhe interessava, e como queria); esta será a primeira geração do pós-guerra a crescer sem conhecer a guerra, e as possibilidades pareciam infinitas.
AP Anno Passato (1966) é um exercício de escala menor, mas por isso mais íntimo: o filme segue de perto os movimentos de uma bailarina num pequeno estúdio, enquanto esta ensaia diferentes coreografias – aqui o trabalho de câmara é ainda mais vertiginoso, pela proximidade com que detalha a expressão corporal da bailarina, através de repetições e improvisos e sobreposições, numa mistura quase anárquica de movimentos, e pela forma como se perde no rosto e mãos desta figura até esta se multiplicar por várias versões – é uma dança a dois, entre a câmara e esta rapariga, que parece concretizar a sua própria fuga do filme, adiantar-se à vontade da câmara.
O terceiro filme, Pes (Dog, 1965), ligeiramente diferente dos anteriores, mas em tudo ainda enamorado com as potencialidades do cinema como cenário de descoberta, assemelha-se a um jogo de sedução godardiano, entre as personagens mas com o espectador pelo meio: focado nos rostos de um casal, de uma mulher e um homem, em espécie de diálogo visual, em lados opostos do ecrã numa série de vinhetas (outra vez a música contagiante, outra vez as repetições: a beber, a dançar, etc.), sempre sozinhos no enquadramento, até que uma garrafa que é passada para trás e para a frente, serve para finalmente juntar as duas figuras no mesmo plano, concretizando um innuendo erótico. Espécie de improviso ensaiado, ritual de preliminares do qual a câmara faz parte, é o mais poético destes três primeiros filmes, que volta a filmar os detalhes do corpo mas com outra consequência, transformando-se num abismo inesperado.

Os três filmes seguintes (que também podemos agrupar por questões estéticas), e que surgem alguns anos depois dos três anteriores (1970-72) representam uma mudança de estilo de Godina, que abandona o preto-e-branco e a câmara sempre em movimento como elemento fulcral, para aproximar-se mais de um registo documental e performativo, ou utilizando os mecanismos do documentário, como a câmara fixa, enquadramentos estáticos e entrevistas e depoimentos de não-actores, para substituir um aparente entusiasmo inocente por um distanciamento crítico. A posição da Jugoslávia neste período de tempo, fora da Cortina de Ferro soviética, mas também à margem da Europa Ocidental, representava uma espécie de limbo, de sítio de indefinição, pressionado quer pelo regime comunista, quer pelo regime capitalista americano, que resultava numa mistura singular de influências, evidente nos filmes deste período de Godina. Esse confronto de imaginários diferentes é mais evidente no surreal Gratinirani mozak Pupilije Ferkeverk (The Gratinated Brains of Pupilija Ferkeverk, 1970), que na sua composição assemelha-se a um premonitório videoclipe bizarro e abstracto de uma banda imaginária, que através de uma série de planos fixos evoca toda uma súmula da década de 1970, onde se destaca um plano em que uma garrafa de Coca-cola interrompe um beijo.
Os dois outros filmes são muito mais politicamente activos, pelo menos de forma mais directa: Zdravi ljudi za razonodu (Healthy People for Fun, 1971) é um mosaico de retratos dos habitantes de Vojvodina, a região jugoslava com a maior diversidade étnica em termos de população (onde cerca de trinta diferentes etnias coabitavam); num aparente documentário etnográfico convencional, Godina apresenta pequenos quadros-fantasmas de locais a olhar para a câmara, com alguns depoimentos e uma canção de optimismo e bem-estar artificial, falsas declarações de amor que afinal servem para sublinhar e desmascarar uma fragilidade evidente da união do “povo” jugoslavo, cerca de duas décadas antes do eclodir da guerra civil. Ligado ao filme anterior por uma música que atravessa o filme como um comentário, O ljubavnim veštinama ili film sa 14441 kvadratom (About Art of Love or a Film with 14441 Frames, 1972) é ainda mais subversivo que Healthy People for Fun, nem que seja pela sua premissa inicial: feito quando Godina estava no exército Jugoslavo, que quis aproveitar-se das capacidades técnicas de Godina para lhe encomendar um filme para enaltecer o seu poderio bélico, colocando ao seu dispor 20.000 soldados, 60 tanques e 20 aviões… mas o interesse de Godina era muito distante do que o exército lhe pedia. O filme divide a população da pequena cidade de Saramazalino, onde está colocada uma unidade do exército, apresentando de um lado a população feminina, cerca de 2 mil trabalhadoras têxteis, filmadas em grupo e que pela sua voz referem que não há qualquer contacto com os soldados, e que a maior parte destes são rudes, e do outro lado, os soldados em exercícios fúteis nas montanhas circundantes, em movimentos infantis que não levam a lado nenhum, questionando o porquê de neste local não haver lugar ao amor, desarmando de forma hábil a retórica da disciplina militar e expondo a sua inutilidade. Segundo a lenda, Godina escapou por pouco da prisão e teve que roubar o seu filme do exército para conseguir mantê-lo.

Os últimos dois filmes do ciclo representam bem o espírito de comunidade entre artistas e a vontade de expressão através do experimentalismo muito em voga na década de 1970. Durante um festival de cinema em Belgrado, Godina recrutou alguns dos seus colegas (nomes como Tinto Brass, Miloš Forman, Frederick Wiseman, Mladomir Djordjevic, Paul Morrissey e Buck Henry) para o filme-coletânea I Miss Sonia Henie (1971), dando-lhe uma série de regras que tinham de seguir – Godina editou depois as contribuições de cada um. Talvez mais interessante que o próprio filme é The Making of Sonja Henie (1972), que como o título indica, acompanha o processo criativo e colaborativo entre os diferentes realizadores, uma curiosa janela sobre a partilha de ideias e ideais entre artistas, como uma forma política de encarar a arte.
A retrospectiva dedicada ao realizador Karpo Godina – uma oportunidade imperdível de conhecer o trabalho de um autor fulcral do cinema jugoslavo, europeu, experimentalista e acima de tudo cuja ambição de usar a arte como expressão política ainda hoje é uma ideia desafiante e provocadora – é exibida no próximo sábado, dia 30 de Setembro, às 18h, no Porto, na Casa das Artes, como parte integrante do Focus Eslovénia, do Beast International Film Festival.