I. Reminiscências sobre um cinema sobre-humano
The Human Hibernation (2024) de Anna Cornudella Castro
A primeira longa-metragem da artista espanhola é como que um penso medicamentoso encostado à pele durante um dia inteiro. Arrefece e aquece a temperatura do corpo ao mesmo tempo. Para além das suas aspirações (o idílico) e demais qualidades anti-inflamatórias, há muito que se esperava um filme que é sobre-humano no sentido em que rejeita a ideia da possível soberania do cinema feito sobre/para/por nós. Finalmente. Descoberto no Fórum da Berlinale, a poesia etérea do filme é tão palpável quanto aquela do sonho de onde ele parte: a reconfiguração do ecossistema, dando aos humanos a capacidade de deprimir o seu metabolismo para economizar energia e assim sobreviver ao inverno. Desde El Mar La Mar (2017), de Joshua Bonnetta e J.P. Sniadecki, que não havia um filme que replicasse o sentimento de olhar para um globo de neve como este, enquanto se é embalado na tranquilidade entre a percepção e a reacção. Num equilíbrio conseguido entre animais, plantas e humanos, um irmão acorda cedo demais da sua hibernação e parte à procura da irmã, numa sequência coberta pela noite, a mesma de El Mar La Mar: “o céu é como um telhado de luz, uma sala iluminada”. E assim aterramos no reino do cinema mais atmosférico, algures entre a meditação sonambulista e um comentário sobre como navegar espaços de co-habitação. É a melhor das prisões imagéticas (porque arrebatam) do mundo onde já poderíamos viver. À saída do cinema Arsenal, ouvi uma crítica italiana perguntar a um colega, “este é um mundo alternativo, certo? É ficção científica!” Garantido que é utopia, claro, mas Anna Cornudella Castro nunca separa, divide ou individualiza. Não há sinal de antropocentrismo nos seus enquadramentos. Dias mais tarde acabaria por ver Arcadia (2024), de Yorgos Zois, encabeçado por Angeliki Papoulia, talvez uma das actrizes europeias que mais enfeitiçam o ecrã (A Little Love Package e Human Flowers of Flesh, ambos de 2022, provam isto mesmo). Nele, há um polícia e um cão presos um ao outro por um amor que só The Human Hibernation compreende. O ar está paralisado. Não há intenção de convencer. Tudo pende, para evoluir. Este belíssimo filme é um convite a olhar esse todo colectivo, esmagador e feliz, e um que cabe no ecrã sem quaisquer artifícios; uma utopia que é facilmente filmada e podia começar a ser vivida por todos a qualquer momento. Um filme-pérola que re-confirma a electricidade que só uma primeira obra consegue embeber.
Sasquatch Sunset (2024) de Nathan Zellner e David Zellner
O olhar concentrado de The Human Hibernation encontra em Sasquatch Sunset o seu par, que inspecciona e apalpa de forma mais aproximada e expansiva. Escondidos por trás de um casal pé-grande Americano e a sua tribo estão Jesse Eisenberg e Riley Keough, Nathan Zellner e Christophe Zajac-Denek e com eles passaremos o equivalente de um ano na natureza. Em Berlim, era o filme-espectáculo do dia, tão bruto quanto elucidativo, espraiado no grande ecrã como poucos outros filmes da edição deste ano. Há comer em excesso e vómitos. Há sexo e trabalho de parto. Há outros fluídos corporais e comportamentos levianos, como a toma de cogumelos mágicos, que elevam a moral e aliviam a tensão. Mas mais do que tudo isso, há uma resposta directa ao filme da jovem artista espanhola, em particular a uma passagem que diz respeito à falta de verbalidade por plena falta de necessidade. “Temos que ser mais como os animais. Aprender a ler as mentes uns dos outros sem termos que falar.” E o arguto Sasquatch Sunset faz exactamente isto. Responde, mostrando, em silêncio. Onde se vivia uma utopia vive-se uma dimensão pós-apocalíptica, onde se mantém a mesma meditação e comentário. Para além disso, o objecto do filme-aventura e dos seus ciclos evolutivos, que coloca mais oxigénio nos pulmões mas produz um maior nó na garganta, usa mesmo a não-verbalidade (o filme é desprovido de sons que não sejam grunhidos ou banda sonora) para salientar quão feroz é a vulnerabilidade de todo aquele cinemascope livre de muralhas ou abrigos, onde para cada predador há uma presa. Revemo-nos no pé-grande feral, nas suas necessidades básicas e rituais, desejos e interacções com outros animais e com os vestígios de humanos. Basta um encontro com um tigre ou uma estúpida brincadeira a aliviar o aborrecimento para que a morte bata à porta e o futuro se veja alterado sem retorno. No final, o pôr de sol é sempre igual, e pertence a todos. Com isso, sim, podem sempre contar.
II. O cinema independente norte-americano continua a reinventar a vida a dois
Between the Temples (2024) de Nathan Silver
Onde há Matt e Mara (Matt and Mara, 2024), e Julia e Pedro (La Cocina, 2024), há também Ben (Jason Schwartzman) e Carla (Carol Kane), um cantor judeu (lidera a comunidade judaica ortodoxa com o seu entoar e ensinar das preces sagradas) que, em luto pela mulher Ruth, perde a capacidade de cantar ao mesmo tempo que a sua professora de música da escola primária re-entra na sua vida e decide estudar para fazer o Bar Mitzvah. Entre golpes cómicos sobre a refeição kosher e a proibição de misturar carne com lacticínios, ou espirros que se transformam em bocejos, Between the Temples é a comédia screwball espinhosa que se espera de Nathan Silver, um dos potenciadores da cultura e energia indie nova-iorquina, ou seja que eleva o constrangimento a níveis nunca antes explorados, com direito à sua voz muito distintiva: tudo permanece imprevisível e a tocar no cómico-amargo associado ao tipo de cinema que Silver faz desde Stinking Heaven (2015), obras delicadas que facilmente coagulam ou ganham grumos de tão francas. Noutras palavras, vencedoras do seu humanismo. É como que uma entidade que se foca na especificidade do retrato cultural, neste caso da comunidade judaica em Nova Iorque – “We don’t have heaven or hell, we just have upstate New York”, – para tocar no que é universal entre os humanos, a forma como independentemente de idade ou background, as pessoas reentram na vida umas das outras e desenvolvem relações de carinho que ultrapassam quaisquer barreiras. Mais uma vez, Between the Temples contempla o agigantar do todo, do cinemascope que invade a nossa visão, um desejo por uma certa proximidade que se aplica na perfeição ao timbre invasivo da linguagem visual de Silver que aqui se encontra na companhia de outros imperdíveis da escola de Brooklyn: Sean Price Williams (direcção de fotografia), com o seu granulado 16mm e os apertados close-ups filmados usando a técnica split diopter, e a composição desse “caos” por John Magary (montagem). “Eu ensinei-te, agora ensina-me tu.”, ressoa nos ouvidos. Um filme encantador a rebentar dos paroxismos que unem o melhor de Hal Hartley à comédia de Albert Brooks.
Janet Planet (2024) de Annie Baker
Onde Nathan Silver pressiona a extravagância a negrito, Annie Baker suaviza e humedece-a, num filme raramente visto porque se debate nas reviravoltas abruptas da vida de uma filha de uma mãe solteira. Mais uma primeira obra, desta vez da dramaturga vencedora de um Pulitzer, Janet Planet conquista o coração do espectador com a sua melancolia mordaz, por um lado difícil de localizar, por outro preso a um mundo temeroso que cheiramos antes de nele cairmos, o imaginário Americano em New England na década de 1990: a realidade suburbana isoladora onde se ouvem grilos de dia, e a mistura entre o cheiro a relva, asfalto e fast food do centro comercial local, e como estes acompanham os movimentos diários dos que ali vivem e jantam em pequenos terraços durante o crepúsculo. É um filme feito do tecido de memórias revividas, frouxo no seu desenvolver, mas sempre muito sanguíneo. E hilariante. Através de vinhetas, o tempo vai passando enquanto pessoas, estranhas para Lacy (Zoe Ziegler) de 11 anos, vão entrando e saindo da vida da mãe Janet (Julianne Nicholson), sejam estes namorados ou amigos que vão viver lá para casa. A jovem Zoe Ziegler cria uma personagem que já não se via no ecrã desde Lucy em The Goodbye Girl (Não Há Dois Sem Três, 1977), de Herbert Ross. Ela é precoce e tem os olhos abertos a tudo, especialmente à feroz e estóica neurose que a protege das reacções adversas da vida que partilha com a mãe, e daqueles que a vão invadindo (quando a conhecemos, ela ameaça que se irá suicidar se a mãe não a for buscar ao campo de férias). É um exercício tonal sobre o crescimento desta rapariga, que por sinal surge de mãos dadas com o seu desapaixonar pela mãe ao longo de um filme que quer falar sobre o romance (será um casamento até?) vivido com as nossas mães. Lacy apercebe-se rapidamente que a quantidade de tempo vivido não equivale de todo ao albergar de sabedoria. Esse olhar oferece um entendimento do que é o “crescer-de-idade”, fórmula que o filme rejeita, e com ela as convenções do contar de uma história – já chega do peso dramático da narrativa. Em vez disso, Janet Planet está, tal como Between the Temples, focado em eternizar o lugar onde queremos viver, mas que por via de uma intensidade sui generis, é também o lugar onde não podemos ficar.
III. As visíveis linhas de costura do cinema auto-ficcional artesanal
Tú me abrasas (2024) de Matías Piñeiro
Matías Piñeiro regressa com outro filme sobre como estar alerto ao acto de fazer cinema. As explorações teatrais que o autor Argentino nos tem oferecido nas quase duas décadas de trabalho, com uma clara propensão para variações e iterações, resulta nos mais solarengos exercícios, filmes-meta sobre performance, romance e o desejo feminino, que navegam e brincam com a forma cinemática, logicamente comparados à energia conjunta de Éric Rohmer e Jacques Rivette. É aí que também encontramos Tú me abrasas, enraizado no texto literário e no desejo imparável de o traduzir para o ecrã na sua voz. É tanto ensaio lírico-visual como é poema (há claras sílabas visuais) e/ou colagem, para o que será nada mais do que literatura filmada e a tensão do controlo do que é deixado ao acaso (filmar com uma Bolex 16mm é só o início). Voltamos à feitura do cinema elástico, formalmente inventivo, conseguido manualmente e modestamente produzido, mas desta vez o foco é a relação entre Sappho (Gabi Saidón) e a sereia Britomartis, do capítulo Espuma do Mar do livro de Cesare Pavese, Dialoghi con Leucò (1947). Durante 60 minutos, este cinema que é sobre Piñeiro, é projectado na intertextualidade das línguas, linguagens, paisagens, corpos, objectos e no permanente acender de todos estes (mais uma vez, aqui está o todo esmagador); na repetição, o filme vai reaquecendo as ideias para quebrar com a superfície das coisas e abrir uma dimensão espiritual, daquilo que é tanto um pintar de uma cena de época como se revela atemporal. Juntando sequências filmadas por Piñeiro e outras espontaneamente conseguidas por Tomás Paula Marques, directora de fotografia, o filme permanece auto-reflexivo e sem saber bem como é que há-de ser o que é; cinema infinito que nunca acaba de se fazer e que é sempre mais sobre o que dele tiramos. Numa primeira vez, deixo-me levar. É a terapia que tantos não sabem que existe. De uma segunda ou terceira vez, uso o bloco de notas para tentar colocar no meu presente o que vive apenas na cabeça de Piñeiro. Esse convite está sempre ali. O filme existe mesmo para o espectador. E este é particularmente belo, aninhado na nostalgia do mar e da espuma produzida pelas suas ondas.
Hors du Temp (2024) de Olivier Assayas
Por cima do último filme de Olivier Assayas está a mesma camada fina que em Tú me abrasas. Será substância assim que para ela olharmos, como quem vê o seu reflexo num lago que afinal é casa para muitos seres. Talvez seja por influência da leveza cómica de Vincent Macaigne, ou o sempre desagradável uso de voz-off para localizar um filme que não tem razão para existir a não ser enquanto apêndice-paixão do seu realizador francês, mas a verdade é que há desde logo uma sugestão de debilidade, que se vai confirmando na falta de poder atmosférico para agarrar o espectador e criar uma relação emotiva com ele. Aquela casa, os espaços verdes que a rodeiam, os subúrbios onde está inserida, nunca alimentam um espaço que também se torna nosso. É sempre só daqueles personagens. É tudo sempre só superfície. Em retrospectiva, depois de muitos dias passados desde o meu cruzar com Hors du Temp, este torna-se um filme surpreendente porque não alimenta as expectativas que advêm da química com o espectador. O filme não parece querer saber dele. Ainda que parecido com um filme de Mikhael Hers ou Mia Hansen-Løve, este não partilha as mesmas feições, luz ou textura. Exactamente como o pequeno filme de Piñeiro, as peças que o formam são sempre visíveis. É um filme sobre um homem divorciado Paul (Macaigne), um realizador de cinema desgrenhado, neurótico e amedrontado, que partilha uma filha com a ex-mulher, e vai viver com o irmão, a namorada e a namorada do irmão para uma casa de campo durante o tempo de isolamento que assolou o mundo durante a pandemia de Covid-19. Vivem-se tempos de incerteza, de deambulação no vazio. Por um lado, há piadas recorrentes sobre uma panela de aço inoxidável comprada durante o surto consumista de Paul, que ficou chamuscada e que este tenta limpar diariamente. Mas o resto é alimentado por intervalos de meditação sobre o alívio que o período de inactividade forçada acciona em Paul. O medo pode comandar os seus pensamentos, mas entre sessões online com a terapeuta, discussões com o irmão e adiamentos das suas filmagens, o muito privilegiado Paul parece feliz. O filme-devaneio de Assayas quer falar sobre essa mudança de percepção do que poderá realmente significar estar na vida afinal, e se existe uma outra forma de a viver. Enquanto Assayas despe o todo e regressa à base das coisas – “imobilidade não pode ser uma utopia (…) é o vazio.”, voltaremos ao início deste herbário com Anna Cornudella Castro que o irá vestir, num assumido triunfo à co-existência entre todos os seres que habitam o mesmo mundo.