So, for the second time, [the Pharisees] summoned the man who had been blind and said: “Speak the truth before God. He knows this fellow is a sinner”. “Whether or not he is a sinner, I do not know”, the man replied. “All I know is this: once I was blind and now I can see.”
Agora, consigo ver. O cumprimento desse desejo é algo que nos leva incessantemente à sala de cinema para nos entregarmos aos filmes. O que faríamos sem eles – ou melhor, o que faríamos sem a projecção daquilo que somos e do que sonhamos ser? Na escuridão da noite, somos involuntariamente entregues ao caminho irreal dos sonhos; de dia, o nosso olhar leva-nos para além da realidade concreta para divagar nas imagens do nosso pensamento. Como se, nessa mesma vida, andássemos entre a escuridão, e algo no nosso corpo nos pedisse para darmos mais um passo para vermos uma luz, levados por aquilo que não vislumbramos na realidade e o que perturba o nosso pensamento.
“O teu corpo é feito para isto”, ouve-se alguém dizer a uma mulher, em Post Tenebras Lux (2012), quando esta entrega o seu corpo nu aos outros que o rodeiam e que concretizam a sua fantasia de abandono, de eliminação das barreiras entre o que o seu físico deseja e o que não lhe é permitido sentir – por convenção, por imoralidade, por limites que o seu próprio corpo se impõe ao saber que, com o prazer mais forte, vem o abismo da maior abstracção (a morte). O cinema não será também isso – a entrega do nosso corpo a um filme para ficarmos imersos no prazer mais puro dos sentidos (e que ele faça qualquer coisa connosco)? Ou para abandonarmos os nomes a que chamámos às coisas (como a criança começa por fazer, na sequência inicial do filme, ao descobrir o mundo) e esquecermos a neurose que desenvolvemos na idade adulta – mágoas, arrependimentos e culpas, longe da inocência perdida da nossa infância?
O diabo, aqui, entra numa casa e percorre o espaço da família. Pára em frente a um jovem rapaz e continua depois, indiferente à sua presença, para entrar no quarto dos seus pais, os adultos “monstros” que lutam e discutem, e cujas raízes de amor e violência se batem contra o mundo e uma maior proximidade com a natureza (a fonte de todas as vidas). Para a personagem do filme que cita Tolstoy – um homem, dominado pelas razões erradas, que deixou a cidade para procurar uma nova razão no campo -, a sua revelação apenas surge perante a proximidade com a morte, ao confessar, no espaço familiar (o único espaço que existe), os seus erros e a sua cegueira, e como nunca viveu tanto até ao momento em que está prestes a fechar os seus olhos. “Agora sei aquilo que vivi, agora sei que vi tudo”. Once I was blind, and now I can see.
Talvez seja essa uma das fontes do nosso desencontro com a vida: o facto desse entendimento e dessa luz – a luz que vem depois das trevas – nunca surgir quando estamos de olhos abertos. E daí vir, também, a fonte de toda a nossa criatividade, das nossas interrogações.
No cinema, esse espelho maior da vida, é também um espaço, tal como o familiar, onde crescemos e onde podemos, por momentos, ultrapassar uma barreira já conhecida dos nossos sentidos. E descobrirmos que a luz que nos espera, depois das trevas que vivemos, é o único sentido que existe; que o cinema vem de nós mas se destina ao outro, tal como as nossas vidas apenas ganham razão na partilha de um caminho e das suas emoções – como um jogo colectivo ou o râguebi deste filme (“eles são indivíduos, mas nós somos uma equipa”), rumo a uma vitória final.
É também esse o gesto maior que os realizadores podem fazer, como fez agora Carlos Reygadas – entregar-nos um testemunho sobre as suas questões e as suas dúvidas, sobre as trevas que o atormentam, e confessar-nos tanto os seus desejos como os seus fracassos íntimos, as suas fantasias mais secretas e o seu amor por uma vida que cresce quando se ultrapassa através da criação. E que usa o cinema para nos fazer crescer, a caminho do céu que se atormenta sobre o espaço onde a inocência se perde. Once I was blind, but now I can see. Post Tenebras Lux.