Jeune & jolie (Jovem e Bela, 2013) começa com um plano subjectivo: o contorno de umas lunetas enquadra uma rapariga, jovem e bela, que se banha no mar, que sai da água e sobre quem os binóculos – t(r)emerosos – nunca soltam a vista; vai até à toalha, despe-se e deixa-se banhar totalmente pelo sol – a câmara agita-se e nós com ela. Segundo plano, agora objectivo, vemos um menino ainda na pré-adolescência, entre os arbustos, com os referidos binóculos observando ao longe essa bela jovem. Terceiro plano, picado impossível, em que olhamos muito de cima para a moça desnuda; de repente, entra em cena uma sombra, a sombra da mão do menino que atravessa o corpo dela, que lhe cobre o peito e que continua para o pescoço e face. Ela acorda sobressaltada com a sombra que a envolve, veste-se, ele é afinal apenas seu irmão. Afinal nada havia de sexual neste jogos de vistas: o que sentimos é de outra natureza, sentimos o prazer da caça, desse jogo de encontrar e guardar imagens, imagens dos outros, imagens que não queremos esquecer – clarões rápidos de carne, de partes de corpos, de gestos e expressões. Mas insisto, tudo isto vem quase totalmente despojado de desejo, apenas o jogo pelo jogo.
Mas se calhar antecipo-me e encontro nos primeiros planos aquilo que os que depois virão acabam por confirmar ou tornar (demasiado) evidente. Jeune & jolie é pois um filme que se constrói nesse prazer próprio de muitos realizadores de guardar pela câmara as carnes de actores e actrizes – sem nunca tomarem por engano os seu corpos. François Ozon não faz senão outra coisa neste filme, quer pela câmara quer pelos personagens que inventa, tudo e todos desejam guardar para si a imagem da carne de Marine Vacth e da sua princesa ‘Lea’, mas muito poucos (ou mesmo nenhuns) desejam o seu corpo – nem a ela lhe interessa muito vendê-lo. O gosto de Isabelle, explica-nos ela mais à frente, não é tanto o prazer do sexo ocasional com estranhos nem sequer a questão económica da prostituição, aquilo que a agarra ao sexo pago, como vício, é sim o prazer do desconhecido, de não saber o que encontrar… e uma vez encontrado, o prazer de poder fodê-lo (leia-se filmá-lo). Mas Ozon não consuma nada – como podia… – e este jogo de constante frustração (auto-imposta, está bem de ver) faz do filme uma explosão sempre em vias de acontecer, uma antecipação que nunca se quer concretizada – porque a nós nos bastam as imagens da carne.
Recentrando-nos, Jeune & jolie trata de uma ano na vida de uma rapariga de 17 anos, em quatro episódios e quatro canções – um/uma por cada estação do ano. O Verão faz as honras de abertura em duplo sentido, isto porque serve tanto para nos introduzirmos ao núcleo familiar que acompanharemos ao longo do filme, como serve também para que pela primeira vez algo se introduza na rapariga (e daí desperte o referido vício). Cada estação virá com a costumeira saturação emocional, o Verão é alegre e jovial (um conto de Verão), o Outono é momento de recomeço e descoberta, o Inverno altura de culpa e tortura e a Primavera surge para que tudo se alegre de novo. Isto é o que mais incomoda, a sensação de que a linha narrativa que o realizador toma é uma segura, sem lampejos de originalidade ou surpresas para o espectador [há certamente quem ache que isso é o melhor do filme, já que aqui Ozon não se põe a brincar aos filmes e opera toda a sua maquinaria clássica – e bem oleada – sem grandes demonstrações de virtuosismo]. Mas eu confesso: tenho um gosto especial por filmes falhados e desequilibrados e Ozon tem permitido nos últimos anos que esse gosto se satisfaça, lembro por exemplo o enorme e suculento peru que é Ricky (2009) – editado entre nós directamente em DVD -, daí que objectos mais compostos como Jeune & jolie ou o anterior Dans la maison (Dentro de Casa, 2012), embora me surpreendam pela elegância da construção, resultam sempre numa malograda expectativa.
Em Ozon o que mais me interessa é essa opção de trabalhar muitas vezes dentro dos géneros e dos formatos estabelecidos, conseguindo mesmo assim enchê-los de uma estranheza inesperada. Aqui isso também acontece, não tanto pelo género ou formato, mas pelo tom: qualquer realizador filmaria uma história de prostituição juvenil com um peso (mesmo que não necessariamente de forma moralista) que a Ozon pouco importa. Jeune & jolie trata-se quase de uma comédia sexual (muitas vezes a câmara surpreende os personagens a masturbarem-se ou em sexo clandestino, e não podemos deixar de sorrir), e se o episódio do Inverno parece agrilhoar a coisa a um melodrama quasi-televisivo, o certo é que pouco leva a que tudo regresse à mesma fragrância leve e divertida de sexo adolescente. É nesse choque de expectativas que o Ozon vem (de filme para filme) deixando a sua marca de tarefeiro inconformado – ou pondo noutras palavras, o seu cinema é o equivalente cinematográfico de alguns dos familiares pratos do restaurante chinês – Família Feliz -, que não sabendo bem o que são nem o que levam, satisfazem sempre.