Ainda há menos de um mês estava eu a olhar para nefertitis, polvos gigantes de olhos fofinhos e céus rosa shocking e a pensar qual o papel da animação no filme de Ari Folman. A quem engano eu? Estava a pensar no papel de toda a animação, tout court, e que esta “derrota” de Bazin proclamava precisamente que o cinema mostrava, em todo o seu esplendor, o contraste entre as cores maravilhosas e os triunfos futuros da química (“live your dream”, logo, “no more dream”) e o quarto-de-arrumos desolado e destruído em que se tornaria o mundo não animado. Em The Congress (O Congresso, 2013) é essa “nostalgia da desaparição” do corpo real que está em causa e esse insuflar da animação 24/7 num corpo imaterial, sem limitações, sem sono.
Pode parecer ridículo (e até de mau gosto) comparar essa desaparição nostálgica que detectamos genericamente como traço do avanço técnico e da cultura com o desaparecimento – esse, concreto, brutal, factual – que Rithy Pahn experimentou na sua infância e que exorciza neste seu terceiro tomo da trilogia sobre o massacre cambojano, L’image manquante (A Imagem Que Falta, 2013). Os primeiros foram S-21, la machine de mort Khmère rouge (2003), onde foi entrevistar guardas e prisioneiros de uma das prisões mais mortíferas do regime de Pol Pot, e Duch, le maître des forges de l’enfer (2011), o principal mentor da dita prisão e do dito genocídio. O que impressionava nestes filmes é que uma pessoa que aos treze anos foi enviada juntamente com a sua família para campos de trabalhos forçados pelo partido comunista dos Khmers vermelhos e que a viu praticamente toda morrer de fome à sua frente, pudesse, anos depois, pegar numa câmara pronta a “disparar” 24 fotogramas por segundo e ainda tivesse a humildade, o respeito, de deixar que fosse o Duch e outros assassinos a “disparar” sobre si próprios. Esse era também o respeito por outra coisa que entretanto se tornara importante na sua vida: o cinema e, mais especificamente, uma ética documental.
Mas volto ao sacrilégio para completar as comparações entre o desaparecimento dos corpos reais de Folman e o desaparecimento das imagens que sempre voltam a Rithy Panh. No início do filme vemos bobines destruídas pelo tempo e percebemos que as imagens que faltam são as que testemunham os crimes em massa que assassinaram um quarto da população do país. Quem as registava foi executado e as que sobram são de propaganda, mostrando um sorridente Pol Pot batendo palmas, abraçando homólogos chineses e promovendo a sociedade mais “justa e igualitária” do mundo. Mas como diz a narração na primeira pessoa (Panh escreveu-a a meias com Christophe Bataille): “para sobreviver tens de esconder uma força qualquer dentro de ti, uma memória, uma ideia, ninguém ta pode tirar. Se uma imagem pode ser roubada, um pensamento não”. E essas imagens pessoais, as de família, tinham sido roubadas e por isso L’image manquante é um “documentário” de evocação desses pensamentos interiores de sobrevivência e a sua exteriorização nas imagens possíveis. Essas são extraídas dos elementos naturais, da terra e da água (a “escrita” da população era feita nos campos de arroz com as enxadas; na lama, que por vezes tinham de beber, eram enterrados em valas comuns) surge a argila com que o escultor Sarith Mang (a quem apenas vemos as mãos) modela as figuras com que Panh se revive e documenta o horror da sua infância e do regime comunista cambojano. Neste exercício que tem mais de catarse do que de processo judicial histórico é a “animação não animada”, as figuras, que, como em The Congress, vêm tentar colmatar uma desaparição, procedendo a uma substituição. Se não há imagens de família, se não há vídeos de família, façam-se agora. São essas imagens “manquantes” que o cineasta está condenado a criar, como um preenchimento de uma falta, a reposição de uma verdade.
Ainda como em The Congress (prometo que é a última vez) está em causa uma ideia de contraste. Se aqui há uma imagética rica de mares psicadélicos e trips de ácido com o oposto do cinzento das zonas não animadas, no filme do cambojano esse contraste é – além do óbvio, entre o assunto sério do genocídio e o uso de bonecos, símbolos de inocência – entre uma imagética falsamente “pobre” na sua imobilidade e uma extrema mobilidade da emoção humana, que humildemente aquela permite veicular. Essa é a tensão do filme, entre o que se mexe e o que fica, entre um acto de memória e um acto de esquecimento, entre a reconstituição humana de argila e a fragilidade humana da carne. Como diz Panh, “não há verdade, só há o cinema, o cinema é revolução”. Se para ele o cinema constitui uma “fuga” (fuga aparente, uma vez que, como o melhor dos autores, está condenado a ficar preso, a fazer para sempre o mesmo filme sobre o fantasma que o assombra), é aquele que permite essa genial transfiguração dos bonequinhos em personagens, do retrato que, pelo extremo detalhe, deixa entrar a barbárie pela inocência adentro (a cor da camisa do jovem Rithy Panh sobressai resistente perante as faces dos bonecos que, esquálidos, emagrecem de fome, a única coisa que se partilha; o filho que condena a mãe à morte ao denunciá-la por roubar mangas). Perante todas estas imagens interiores de terror, a “revolução do cinema” não as esquece mas antes mostra-as por via de mãos novas que criam, de vozes calmas que recordam, da presença dos mortos que permanecem, leves, pairando, sobre a terra, sobre a argila.
Quando um auto-retrato apenas consegue invocar imagens de morte, quando revisitar a infância obriga a construir um ensaio político, apetece continuar a inversão começada em L’image manquante. Se a animação é a imagem-trauma para o desfalecimento da condição humana, nada nos impede de pensar num tempo em que tudo isto já só pertença à mais pura das animações. Porque o cinema, esse, é a revolução.