Nos primeiros dois dias da oitava edição do MOTELx Carlos Natálio (CN), Luís Mendonça (LM) e Ricardo Vieira Lisboa (RVL) passeiam-se entre a ameaça da mamãe papão trazida pela australiana Jennifer Kent, o estudo sobre a ganância espanhola de Álex da la Iglesia, a viscosidade dos males sociológicos de Brian Yuzna e o frio terror germânico de Till Kleinert. Vimos ainda o último filme da dupla canadiana mais conhecida como The Vicious Brothers, o thriller psicológico de Tomoyuki Takimoto que António Damásio poderia ter feito, Nô Otoko, e It Follows de David Robert Mitchell.
La comunidad (A Comunidade, 2000) de Álex de Iglesia
Já estamos habituados a que Brian De Palma seja o “imitador” de Hitchcock de serviço, mas quando vemos o genérico inicial desta comunidade com cores garridas (sobretudo os amarelos e encarnados da vizinha Espanha) e os elementos chave – o gato, a faca, as portas, o esqueleto – acompanhados pela música “hermmaniana” e pelas espirais “psicóticas”, pensamos imediatamente num cruzamento entre o suspense do mestre do suspense com a exuberância da fase inicial de Almodóvar. Neste thriller-farsa de humor negro as influências parecem ser infinitas: Delicatessen (1991) da dupla Caro/Jeunet, The Ladykillers (O Quinteto Era de Cordas, 1955) de Alexander Mackendrick, The Tenent (O Inquilino, 1976) de Roman Polanski e mesmo, imagine-se, Rec (Rec, 2007) de Jaume Balagueró e Paco Plaza. São filmes que, por um ou outro motivo, seja o ambiente de vizinhança, a bizarria, a imagética ou a tensão, vão dar ao filme de Iglesia e que, juntamente com El día de la bestia (O Dia da Besta , 1995) e Las brujas de Zugarramurdi (As Bruxas de Zugarramurdi, 2013), compõem a mini-homenagem que o MOTELx presta à obra do cineasta espanhol.
Além do exercício sobre a ganância, no qual Carmen Maura, uma agente imobiliária, é perseguida por toda a vizinhança de um condomínio quando encontra 300 milhões de pesetas que um inquilino recém-falecido deixou, o aspecto mais interessante de La comunidad é a relação entre o indivíduo e o colectivo; não só é visível na forma do apartamento, no sofá de cabedal e no colchão de água que Carmen vem mostrar ao prédio a contrastar com a decadência visual (e humana) do todo, mas também no facto do dinheiro que origina toda a mecânica tensional do gato e do rato estar em pesetas numa “comunidade” onde já vigora o euro. Como se a ganância pudesse ser um movimento que “curto-circuitasse” a noção de comunidade (europeia). Ironia intended. Talvez se produza depois um desequilíbrio entre a produção do absurdo (que nunca chega verdadeiramente a ser hilariante, mesmo com cenas de masturbação de um Darth Vader no duche) e a produção da peripécia que prolonga em demasia as sequências de perseguição. Nesse sentido era preciso talvez investir um pouco mais na caracterização das personagens da comunidade para manter o espaço fechado do filme suficientemente arrebatador até final. (CN)
Nô Otoko (The Brain Man, 2013) de Tomoyuki Takimoto
Não é propriamente o típico thriller de caça ao psicopata que se poderia esperar. De facto, a intriga policial aparece aqui como um pretexto para uma história sobrenatural de um homem sem emoções, detentor de uma força e capacidade cognitiva muito acima da média. Ele servirá, numa primeira instância, de interlocutor de uma raça desconhecida: pessoas para quem dor, ciúme, amor, ódio são palavras esvaziadas de significado. O engenho deste filme está naquilo que será uma inversão de 180º do que são as suspeitas do detective e, acima de tudo, da protagonista: uma médica psiquiátrica que vive acossada pelo assassínio, outrossim particularmente insensível, do seu pequeno irmão. Se no início este filme de Tomoyuki Takimoto parecia seguir a receita de mil e um filmes policiais de mistério, mais ou menos a meio (ou à medida que a backstory do “homem cérebro” nos vai sendo revelada) aquilo que pertencia à descodificação “thrillesca” mais previsível começa a transformar-se na exaltação romântica de um improvável “super-herói de acção”.
Apesar de seguir, até certo ponto, um certo receituário da grande produção norte-americana, este filme japonês surpreende por acabar a falar uma linguagem própria. Para tal, contribui a dinâmica relacional estabelecida entre a personagem do cérebro e a personagem do coração que, ironia das ironias, é a psiquiatra. A certa altura, nasce na sua investigação uma interrogação com uma certa ambição filosófica, que depois o filme não consegue sustentar como seria desejável: será possível haver vontade numa pessoa sem emoções? E sentido de justiça? O “homem-cérebro” vai ser a corporização de uma vontade de ter emoções e de uma vontade de justiça que o distingue dos verdadeiros vilões do filme, ou melhor, cherchez la femme…, das verdadeiras vilãs do filme (construções de um lesbianismo convulso que poderá cair mal nos dias de hoje). Sumariamente, diria que se António Damásio realizasse um thriller muito bem servido de acção e com um romance de emoções controladas, esse não estaria longe de Nô Otoko. (LM)
The Babadook (O Senhor Babadook, 2014) de Jennifer Kent
Confirmam-se as melhores previsões que fiz na antevisão do festival, com base apenas no muito impactante trailer. A surpresa é que o papão se chama maternidade. O tema forte é o horror da mãe e o horror à mãe, como se num The Shining (1980) a perspectiva da acção pertencesse por inteiro a Shelley Duvall e a loucura alucinante se gerasse a partir dela e não do pai, interpretado por Jack Nicholson. Neste caso, temos a história de Amelia (interpretação pujante de Essie Davis) e do seu filho Robbie. O pai será o grande presente ausente nesta história. O seu desaparecimento físico num acidente de carro é o grande trauma que converterá a narrativa de assombração, que o livro protagonizado pelo Senhor Babadook prescreve (isto é, pré-escreve), numa via crucis interior de sacrifício e superação. Superação de quê? Precisamente da imagem do pai, que, fina como papel, será rasgada na sequência dos horrores e fantasmagorias, que percorrem a casa tanto quanto vão “trespassando” os limites da mente. O livro pop-up é, então, uma espécie de objecto fetiche no filme e, mais decisivamente, do filme. A tridimensionalidade do susto em papel e a inocência da história que, de página em página, vai sendo também ela rasgada são elementos que Jennifer Kent transfere habilmente para o próprio “texto do filme” – falo aqui menos de argumento que de mise en scène.
Apetece dizer que não só o filme traduz a simbologia – e estética! – do livro, como, na realidade, o cita muito directamente na acção, como se a disputa pela casa fosse também a disputa pelas fronteiras da mente, da mãe e do filho. O grito final de Amelia, largado no ponto culminante de toda esta aventura tenebrosa sobre a depressão na maternidade, é dirigido directamente no espaço ao monstro espectral de chapéu alto de coveiro, de dedos compridos que lembram Nosferatu e Freddy Krugger, e com um corpo informe e rastejante reminiscente da terrífica mãe em Ju-on (2002). Dizia, esse grito é dirigido no espaço a Babadook, mas no tempo o destinatário é – continua a ser, nesta leitura sempre posta em profundidade – o marido desaparecido. Há como que um “pôr in situ” dos recalcamentos e traumas que assolam uma (como uma qualquer?) mãe solitária. Nessa solidão, The Babadook encontra o ponto alto da sua criatividade, os tais instantes que sobressaem aos nossos olhos como as figuras de papel no livro pop-up. Um deles é o da montagem alucinatória de imagens de filmes mudos assistidos por Amelia na TV, senão de facto, pelo menos na sua cabeça. Um desses filmes é a curta de Georges Méliès Le livre magique (1900), onde, página sobre página, as figuras do livro no filme saltam para a realidade do filme e vice-versa. Noutro instante, a mãe projecta a sua angústia – o seu horror de ser mãe – numa história de polícias que passa no noticiário. A televisão é o reflexo catalisador dessa sensação que, num crescendo, vai tomando conta de The Babadook: a de que o chão nos foge dos pés à mesma velocidade com que a realidade se evade da nossa cabeça para dar lugar a um papão que não queremos “deixar entrar”. O filme, esse, entra em nós como poucos. Se não o viu agora, não o pode perder em estreia comercial no dia 16 de Outubro pela mão da Alambique Filmes. (LM)
Der Samurai (2014) de Till Kleinert
Quem esteve na primeira sessão do filme ficou a saber, logo na apresentação, as duas coisas mais importantes que há para o compreender. A primeira é que após terem “inventado” o terror por via do expressionismo, o cinema alemão nunca mais quis saber do terror para nada. A segunda é que Der Samurai contém uma dança improvável que normalmente poucos têm vontade de dançar (pelo menos, conscientemente). Em pouco mais de dois minutos o jovem Till Kleinert apresentou de forma sucinta e nada menos do que brilhante o seu “filho”. Quando dá uma festa para os seus amigos e faz de DJ , explica ele, a sua preocupação é que todos gostem da música, que dancem, que se divirtam. Mas também quer ir preparando os convidados, em crescendo, para aquele momento da festa em que estão já todos tão à vontade que ele pode pôr aquela música, a sua preferida que infelizmente ninguém gosta de dançar. O seu filme, segundo ele, e com toda a razão, parece-me, é esse convite para dançar esta dança estranha que ninguém quer dançar.
Se a apresentação de Kleinert é brilhante é porque não podia ser mais certeira, na medida em que todo o filme é, ambientalmente, sonoramente, a preparação para essa dança. Uma dança a dois, onde o doppelganger é um travesti de espada de samurai em punho que percorre, em vestido de noite, a população onde Jakob vive e pela qual tem por missão manter a ordem enquanto jovem polícia. Se o terror real ocupou os alemães ao ponto de eclipsar quaisquer esforços da ficção, a obra de Kleinert mostra como o horror germânico se situa actualmente por dentro, no corpo, do qual só nos podemos “ver livres” se tirarmos a rolha à garrafa, i. é., se cortarmos a cabecinha. Mas a psicanálise é também individual. A primeira longa metragem do germânico parece tão genuína precisamente porque funciona como uma espécie de iniciação sua ao terror, que é como quem diz, o sítio onde começa todo o terror: no espaço de crescimento que põe em dualidade a ordem e a transgressão, a hetero e a homossexualidade, o gregarismo da figura da autoridade e a solidão do “lobo” (o homem e o animal ou grosseiramente, a razão e o instinto). Tudo isto está nesta dança do ego com o alter ego, levando à morte e à erecção como bem manda essa evidência que diz que ser adulto é do domínio da “repressão”, da extirpe do terror originário em cada um de nós. Curiosidade? Satisfaçam-na para depois se poder voltar à ordem, ao policiamento. (CN)
Society (A Sociedade dos Amigos do Diabo, 1989) de Brian Yuzna
(Atenção aos spoilers)
O primeiro filme realizado por Brian Yuzna é uma sátira viscosa sobre como os ricos se alimentam (literalmente? Bem, é ver para crer…) dos pobres. Uma canibalização sociológica que faz de Society uma janela entreaberta para “a sociedade” onde vivemos. No início, o protagonista vê ou quer acreditar que vê uma mega-conspiração “alienígena”, mas não: tudo é terreno e humano aqui, ainda que haja humanos de primeira e humanos de segunda – mas onde está o espanto se não foi e é sempre assim? Quase parece que Bill tinha visto o filme mais marcante do ano de 1988: They Live (Eles Vivem, 1988) de John Carpenter. Contudo, as máscaras aqui são menos subtis: não é preciso óculos escuros especiais para se tornar relativamente evidente o fosso que o separa da sua família “plastificada”. A descoberta deste mundo “para lá das aparências” faz o essencial da história deste filme que Yuzna queria que fosse representativo do seu gosto pelo expressionismo e o surrealismo.
Um ano antes da série Beverly Hills, 90210 (1990-2000) ter ido para o ar, Yuzna dava a descobrir o segredo sujo da nossa sociedade: a alta sociedade, nas manobras (cunhas, cunhas, cunhas) e desígnios (status, status, status), é menos limpa do que podemos pensar. Os minutos finais lembram-nos que Yuzna havia sido o produtor de Re-Animator (O Soro Maléfico, 1985), pelo que o segredo terrível “por trás das máscaras”, a tal “sociedade” que bem poderá ser um espelho reflector dos males escondidos na “nossa sociedade”, teria de envolver alguma forma de metamorfose corporal. É na aberrante fusão de classes num corpo único que o que era paranóia na cabeça de Bill estala no absurdo mais desconcertante, porque aqui a raça pura é uma podre aristocracia económica que canibaliza “a outra espécie de gente”. Yuzna ganha o filme quando atinge os píncaros do surrealismo corpóreo, mas, no geral, parece ter vista curta na exploração de todas as potencialidades, inclusivamente formais, desta parábola política sobre a alta sociedade como alta viscosidade. (LM)
Extraterrestrial (2014) de Colin Minihan
Não tendo visto Grave Encounters (2011), a obra que gerou o sururu em torno dos “irmãos viciosos”, os canadianos Colin Minihan e Stuart Ortiz, aquilo que me chamou a atenção para este Extraterrestrial foi isto. Um trailer breve, com ataque constante aos sentidos da visão e audição. Ao ver o filme percebe-se que o exercício de estilo, fragmentário, próprio de uma appetizer que suporta a tensão nos seus menos de dois minutos de duração, pouco se aguenta se puxado para os 100. Tal verifica-se sobretudo por possuir uma ambição desproporcional aos seus meios. Tenta ser um War of the Worlds mas mantendo a pequena fabricação de uma série como X Files (veja-se o genérico inicial), reutiliza os cliché da found footage como tique ou certificado de veridicidade de terror contemporâneo, ambiciona criar o grande a partir do pequeno sobretudo através dos efeitos visuais um tanto cheesy da fotografia de Samy Inayeh, jogando com o vermelho como a cor do espaço alienígena, fechando a ameaça nos planos apertados que pedem algo mais visível além do parco poder de sugestão, compondo assim o interior da nave que se assemelha e muito a um sistema de esgotos pleno de nhanha e pouco iluminado.
Os Vicious Brothers também no registo não conseguem ser consistentes. Há algo no filme que tenta ser sério e criar uma ameaça grave, mas há algo no filme que não consegue fugir, que quer ser meta-referencial, irónico, outro tique da “era da suspeita” em que caiu o terror contemporâneo (e que tem como sombra a ameaça de passar a ver todo o horror como comédia, toda a seriedade como jogo). Quando os jovens entram na casa, mais um cliché (desde Romero nestes termos, mas no fundo uma derivação de Browning ou de Murnau) um deles diz, qualquer coisa do género (perdoem-me os mais precisos, cito de memória): “I thought this was going to be a cabin in the woods, a total shithole”. Este cutucar do filme de Drew Goddard mostra bem como Extraterrestrial não quer levar tão longe a paródia quanto podia, parte nele quer levar-se a sério. Vendo o filme num fim, à la fois, Spielberg e anti-Spielberg, fica-se com a ideia de que nem decidindo por um dos lados da barricada se conseguia muito mais. O que realmente empurra o filme para uma dimensão maiorzinha é a supervisão sonora de Sean Mulligan que alterna entre peças ambientais de sintetizador, momentos carpenterianos e reciclagem de canções pop que, lá está, volta e meia desencantam o pós-modernismo irónico desta invasão alien. (CN)
It Follows (2014) de David Robert Mitchell
Diante deste It Follows não há como não referir três pontos que me parecem fundamentais para melhor absorver aquilo que é a segunda incursão de Mitchell na longa metragem [é dele The Myth of the American Sleepover (2010)]. A saber: (1) como trabalhar a homenagem do cinema de género, absorvê-la sem a esconder nem rejeitar, mas também sem nunca cair no à moda de nem na referência inútil e vazia; (2) como inverter os valores morais (e moralistas) dos típicos slashers dos anos 70 e 80 numa actualização simbólica da valoração do sexo como mecanismo de progressão social e crescimento individual; (3) como traduzir pela câmara o que não se vê num constante exercício de olhares (o nosso e o das personagens) e foras-de-campo. Estes três aspectos, em particular o segundo, são aquilo que faz de It Follows um objecto singular.
Demoremos-nos então um pouco mais em cada um deles. Não gosto de fazer fórmulas e olhar para os filmes como combinações de outros, mas poderíamos dizer que esta obra de Robert Mitchell é o resultado da soma aritmética entre The Thing (Veio do outro mundo, 1982) e Halloween (As Noites de Halloween, 1978), porque, por um lado, o universo do subúrbio americano está presente de forma vistosa (as mesmas casas de tijolo, as mesmas relvas verdes, os mesmos passeios calmos) e a Mitchell interessa esse lado referencial; por outro, a assombração que invade a vida destes jovens tem o poder de constantemente mudar de forma, assumindo por vezes a identidade de alguns dos amigos da protagonista. E aqui se compreende a questão da homenagem e o amor que o realizador deve ter ao cinema de Carpenter (note-se apenas a banda sonora, caso restem dúvidas). O que interessa, no entanto, passa por nos apercebermos que, ao contrário de uma mensagem puritana de muitos dos filmes de teen horror, aqui as personagens não são condenadas pelo sexo, aliás, é pelo sexo que possivelmente se salvam da criatura (ela deixa de te seguir se a “passares” a outro e não ao mesmo…) numa parábola sobre as DST – o que revela ainda mais uma certa sensação de filme fora do seu tempo (ou então talvez não). Mas talvez seja a câmara, num constante jogo entre o que se mostra e o que fica por mostrar, que mais nos agarra. É que a assombração só é visível por aqueles que estão infectados e nós, espectadores sãos, ficamos muitas vezes de fora, a olhar o nada e temendo-o ainda mais. (RVL)