No final de 2013, Paul Schrader escrevia na sua página de Facebook que o ano havia sido excelente para o cinema. Como o drama de qualidade, bem comportado (o cinema do papá?) estava agora na televisão, o cinema vira-se obrigado a exceder-se, a tornar-se ainda maior, mais gritante, cada filme um evento em si mesmo (o IMAX, o 3D, os orçamentos desmesurados). E falava de “stunt” performances [à la De Niro em Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980] como uma das vertentes desse desregramento. Concordando-se ou não com Schrader no resto, o aumento de interpretações excessivas (também conhecidas por over-acting) nos últimos tempos é inegável e as suas palavras tão exactas hoje quanto há um ano. Birdman (2014) será possivelmente o exemplo mais evidente, mas Whiplash (Nos Limites, 2014) é capaz de ser o melhor.
O enredo de Whiplash é muito simples. Demasiado simples, dirão alguns. Um jovem baterista de jazz obsessivo e com manias de grandeza, inscrito numa conceituada escola de música, enfrenta um professor exigentíssimo e autoritaríssimo, para quem as palavras mais prejudiciais da língua inglesa são “good job”. Uma trama simples e, até certo ponto, previsível – na medida em que a nota dominante (palavras nada inocentes) será obviamente o confronto -, mas estrutura suficiente para aguentar o jogo de massacre entre estas duas personagens – as outras, o pai, a namorada, acabam por ser meros figurantes desta história. Ou, numa analogia mais condizente, carril bastante para suportar a locomotiva desembestada em que Whiplash se vai tornando. Sensação dada pela montagem sincopada, jazzística, frenética e, sobretudo, pelas tais interpretações “nos limites”.
Boa parte dos elogios a Whiplash terão de caber a J.K. Simmons (o professor) e Miles Teller (o aluno), de uma entrega maníaca, correspondendo (ou ultrapassando) os intuitos do argumentista e realizador Damien Chazelle. Numa entrevista ao A.V. Club, Chazelle diz ter pedido a Simmos para que fosse “um monstro, uma gárgula, um animal” e o actor, pelos vistos, aproveitou a oportunidade com todo o prazer. Teller, de uma fragilidade feroz, acossado e marcado (um acidente de automóvel deixou-lhe umas cicatrizes no rosto, caracterização perfeita para esta personagem), não é menos fascinante. No entanto, o principal responsável por este filme desalmado, malsão e exuberante é Chazelle. O realizador tem sido acusado de apresentar o jazz como uma espécie de desporto de alta competição, para o qual é necessário repetir os mesmos gestos vezes sem conta, maquinalmente, marcialmente. De tirar todo o romantismo à música. Richard Brody escreveu na New Yorker que Chazelle presta um mau serviço ao jazz e ao cinema. Mas a ideia de que os génios escondem um “segredo” e prosperam em quaisquer circunstâncias, além de meio delicodoce, é mais estafada do que qualquer uma de Whiplash.
A “mensagem” do filme – de que a arte exige dedicação absoluta – não é especialmente simpática, nem muito salutar. Porém, parece certeira (ou sê-lo-á, necessariamente, nalguns casos). De resto, Chazelle não esconde as implicações dessa dedicação: o jovem baterista só é bem sucedido quando abandona a namorada, a “vida normal”, os valores liberais e bem-pensantes (e, reconheça-se, racionais) da classe-média, de que o pai, escritor falhado e professor contentado, é o modelo. Pegando no exemplo de Charlie Parker, referido amiúde no filme, se Bird era um génio, um saxofonista revolucionário e brilhante, auto-destruiu-se com tal sofreguidão que o médico legista escreveu na sua certidão de óbito que devia ter uns sessenta anos. Tinha 34.
Whiplash é sensacionalista, como um antigo série B, levando o lema “sangue, suor e lágrimas” demasiado à letra, tão intenso que ameaça esgotar-se e esgotar o espectador a cada pancada na bateria. Não me lembro de ficar assim exausto ao ver um filme, pelo menos, desde Toata lumea din familia noastra (Everybody in Our Family, 2012) de Radu Jude. É bom sinal? É sinal de grande cinema? Não sei, mas é difícil de desprezar.