Choramos a morte de Oliveira, mas festejamos o seu cinema. O À pala de Walsh reúne a equipa para recordar alguns dos filmes mais importantes do senhor cinema português.
Foi no ano de 2008, aquando da minha breve passagem pela Cinemateca Portuguesa, que um certo jovem cineasta português se preparava para fazer 100 anos. Casa em peso organizada para prestar a homenagem mais do que merecida ao sr. cinema português, Manoel de Oliveira. Recordo um ou dois fins de tarde, na minha típica timidez, no gabinete do então director, João Bénard da Costa. Ele a fumar cigarros em cadeia, eu a medir todas as palavras e a Rita Azevedo Gomes a compor o trio. A tarefa, a mais importante que se podia imaginar: a revisão das provas do que viria a ser um dos mais belos catálogos editados pelo museu do cinema, Manoel de Oliveira 100 anos, livro que acompanharia o ciclo integral das suas obras até à data. Tão entretido estava a ler todas aquelas prosas sobre o mestre e outras tantas fotografias de uma vida tão preenchida que nem me apercebi que a data do início do ciclo estava a chegar. Nesse dia a Cinemateca enfeitou-se para receber Manoel de Oliveira. Lembro-me de que pela primeira vez me passou pela cabeça que, vindo ele para a estreia e tendo eu trabalhado no catálogo, devia aproveitar a oportunidade de lhe dirigir uma palavras. No corredor da entrada da Cinemateca apresentaram-mo e eu, aproveitando que ele mirava a exposição de fotografia que tinha sido montada para o evento, aproximei-me do seu ouvido, visto que já ouvia mal, e disse-lhe a coisa mais parva que podia ter dito a alguém a quem muito se admira. Foi qualquer coisa como “parabéns pelos seus filmes, é incrível, parece que as grandes obras, como é a caso da sua, em vez de envelhecerem, rejuvenescem”. Olhou para mim, meio surpreendido e disse-me que tinha razão, certamente mais por tacto do que por realmente concordar comigo.
Seja como for essa ideia do rejuvenescimento cerca-me agora que deixamos de ter Manoel de Oliveira. Dos primeiros planos de Douro, Faina Fluvial (1931), pateados pelo público de então, a O Velho do Restelo (2014), que a televisão nacional hoje exibe em jeito de homenagem, fica claro que além da profunda coerência de uma vida tornada cinema, os filmes de Oliveira irradiavam juventude. Juventude no sentido em que o seu mundo se lançava num diagnóstico social, cultural, espiritual, mágico, poético da cultura portuguesa que hoje é perfeitamente premónitório dos novos falsos quinto-impérios por vir. O estereótipo da populaça que o via como um cineasta velho, porque lento e demasiado complexo, longe de saber que falava de qualidades intrínsecas ao cinema, apenas evidenciava o que evidente era: Manoel de Oliveira era infinitamente superior ao público que para ele esteve disponível. Como com os grandes artistas, de resto. Ainda hoje é com uma certa mágoa que leio nas entrelinhas das múltiplas e merecidas homenagens que teve ao longo destes últimos anos a excitação pela curiosidade meio parva de que tínhamos o cineasta mais velho em actividade no planeta. Como se só a idade justificasse o posto. Nada de mais errado e imerecido. Manoel de Oliveira não se celebrava por ir a caminho dos 107, celebrava-se porque era só um dos melhores cineastas do mundo. E era português.
Em todos nós, penso, houve um momento em que surgiu a ilusão de que Manoel de Oliveira nunca morreria. Talvez até nem ilusão seja porque, como dizia um amigo meu a propósito de outro vulto da cultura nacional que nos deixou há dias, Herberto Hélder: morreu aquele que não morrerá. Oliveira não morreu, o seu cinema fica, fica-nos.
E o mestre filmou até ao fim. Oliveira no final da sua vida duvidava se além do instinto que comanda o homem haveria algo mais que o responsabilizasse pelas suas acções. Se esse algo mais existe, resta agora estar à altura do mestre. E vê-lo, incansavelmente, apaixonadamente, até ao fim.
Carlos Natálio
Quando Oliveira fez 100 anos – e parece que já foi há tanto tempo… –, Serralves organizou uma retrospectiva completa da sua obra, naquela que foi uma oportunidade, para mim, de conhecer muitos dos seus filmes. Não digo que gostei de todos – como muitos que sempre ignoraram e, acto contínuo, ridicularizaram a obra de Oliveira virão agora a terreiro lamentar esta “perda extraordinária” para a “cultura portuguesa” (os mesmos que, sem tempo para pensar, tal qual nunca dispuseram tempo para apreciar os seus filmes, já conjecturam a sua trasladação para o Panteão…).
Lembro-me particularmente, todavia, de Benilde ou a Virgem Mãe (1975), filme no qual se reflecte o cruzamento, sempre complexo, sempre interessante, sempre problemático, que Oliveira procurou entre cinema e teatro (com tudo o que isso implica: texto, representação, espaços de filmagem, modo de filmar, enfim, mise en scène) e a abordagem ao mistério da fé que um Portugal salazarista, porque ignorante e entrevado, só adensava. “Para os crentes, o natural é o sobrenatural”, diz o Padre no filme. Na sua imortalidade, Oliveira e a sua arte também possuirão sempre, como no Estranho Caso de Angélica (2010), para crentes e não crentes, algo de sobrenatural.
Recordando César Monteiro, talvez o mais importante não seja “esticar o cineasta”, mas, sim, dar a ver os seu filmes e contextualizá-los. Ver, ver, ver.
Francisco Noronha
No jogo de reflexos, sombras e rodopios que é Os Canibais (1988) o cinema de Manoel de Oliveira terá tido um dos seus picos: é um filme tão total que devora as outras artes, da ópera (todo o filme é cantado) à pintura. Devora até o próprio cinema, com imagens que evocam certas atmosferas do mudo, fora autores posteriores. Se o humor está presente ao longo de todo o filme, a última parte leva-o a um extremo de subversão. A contenção aparente de uma história romântica no cenário bem delimitado de um palácio, de gestos ensaiados e emoções escondidas dá lugar a uma sucessão de excessos e horrores que culmina numa dança de paroxismos que é uma ilustrativa imagem de liberdade criativa.
Da meticulosa reconstrução de época aos elementos que a desconstroem (desde a abertura com os carros que trazem os actores-personagens), do romantismo elevado de palavras ao horror mostrado de imagens (e, sempre, o humor provocador), Os Canibais é uma viagem alucinante (e ainda há que diga que o cinema de Manoel de Oliveira é lento!), uma fantasia retorcida, que pode ter saído de um conto do século XIX, pode ter sido escrita como uma ópera, mas ainda bem que foi, além disso tudo, um filme. Um filme intemporal do mestre Manoel de Oliveira, talvez um dos filmes mais arrojados de sempre do cinema português.
Helena Ferreira
Disse Michel Piccoli, numa entrevista, em 2007: “[Manoel de Oliveira] é um grande farsante. E tem uma elegância, uma sabedoria de viver que é muito secreta. Ele nunca fala dele próprio. Gosta de contar histórias.” Lendo isto, nada me ocorre de mais elegante, secreto e farsante do que o vermelho desta rosa do Vale Abraão (1993). Que fantasia tão sagrada e profana nesta cor. Que morte tão imaginária, a de Manoel de Oliveira, entre o profano dia das mentiras e a sagrada Sexta-feira da Paixão de Cristo. Caminhará ele agora nesse Mistério, como fazia com José Régio, descodificando plano a plano La règle du Jeu (A Regra do Jogo, 1939) de Jean Renoir? Dá-nos um sorriso, conjecturar.
Vale Abraão, pródigo na sua duração, é o tempo de vida desta rosa escarlate, a arquitectura de um não-movimento – “o movimento é distractivo, e o pensamento requer muita atenção”, assim revelava Oliveira aquilo que pretendia com o seu cinema, fazer-nos pensar. E pensar esta rosa é, tão simplesmente, iludirmo-nos, extrair-lhe o aroma e cravar-lhe o dedo no centro, à procura do nosso centro, como Ema elabora. Mas, assim, não são todos os nossos sentidos convocados a ludibriar o “pensamento”? Lá está, Manoel de Oliveira, o farsante.
Inês Lourenço
Nesta homenagem a Manoel de Oliveira, em que supostamente cada um deveria escolher o seu filme favorito (ou simplesmente um filme) do cineasta portuense, faço batota. Pego antes num documentário realizado por Paulo Rocha, Oliveira – O Arquitecto (1993). Faço-o, não porque me fosse impossível escolher um Oliveira de que gostasse, mas porque simpatizo bem mais (muitíssimo) com a figura do que com o seu cinema. Da mesma maneira que gostei muito de Aniki-Bobó (1942), A Caça (1964), Os Canibais (1988), A Caixa (1994) e Viagem ao Princípio do Mundo (1997) (provavelmente os filmes mais “acessíveis”), detestei A Carta (1999) e O Princípio da Incerteza (2002), por exemplo. Houve ainda outros que me deixaram perfeitamente indiferente. E outros ainda de que aprendi a gostar bastante como Vale Abraão e Inquietude (1998) (depois de os ver umas três ou quatro vezes). Mas Manoel de Oliveira jamais foi um dos meus cineastas.
Contudo, o homem sempre me pareceu interessantíssimo, inteligentíssimo, cultíssimo. Era um prazer enorme ouvi-lo falar, lê-lo. Lembro-me bem de ver este documentário na televisão e principalmente do momento em que se ouve uma mota barulhenta e Oliveira pára de falar, indignado, quando estava a meio de mais um dos seus estimulantes pensamentos (um pormenor delicioso que Rocha deixou ficar na montagem). Aos 80 e tantos anos, que teria à altura da rodagem, não estava bom para a idade, estava bom para alguém com menos 30, estava óptimo. E continuaria assim quase até à morte. A longevidade, a saúde, o trabalho contínuo nas últimas décadas, um justo prémio pelo homem bom que era, por todos os anos que esteve sem conseguir filmar. Havia também um lado “gaiato” em Oliveira, como se percebe na sua malandrice com a belíssima Leonor Silveira ou com João Bénard da Costa, com quem perfaz um duo cómico genuinamente divertido em Oliveira – O Arquitecto, numas cenas meio encenadas em que os dois se fazem rir um ao outro.
Não fico triste com a morte de Manoel de Oliveira. Apesar dos baixos, teve os altos que todos gostaríamos de ter: viveu com a mulher amada a seu lado até fim, a fazer aquilo que gostava, na sua cidade querida. Fico triste que ele (e Bénard e outros que entretanto se foram) já não esteja por aí.
João Lameira
Em 1956, Manoel de Oliveira tinha quase cinquenta anos. Acabado o seu curso sobre a côr na Alemanha, pega na sua câmara, vai para o seu Porto natal, e filma analogamente António Cruz a pegar na sua paleta, nas suas tintas, pincéis e telas e a desbravar essa mesma cidade. Analogamente porque a aventura e a paciência dos dois são as mesmas, mesmo que um esteja à frente da câmara e o outro atrás. O trajecto é filmado da maneira mais natural possível: um pintor chega de comboio e passeia pelo Porto; pelo caminho contamina-se dos fumos, cheiros, sons e vistas necessários à criação. E assim é cantada uma cidade, dos atropelos a caminho do trabalho à ociosidade muito necessária tanto de quem trabalha como de quem não trabalha em frente a um coreto; das grandes avenidas percorridas por eléctricos às ruelas e quelhas esquecidas por que muito poucos querem passar. Sobre o filme, Manoel de Oliveira admitiu a João Bénard da Costa ter sido feito “contra o Douro. O Douro é um filme de montagem, o Pintor (1956) é um filme de êxtases. (…) é uma obra fundamental na minha carreira, na mudança da minha reflexão sobre o cinema. É a primeira vez que eu volto as costas a um cinema de montagem.”
Trata-se portanto de um filme importantíssimo. Não só por marcar um ponto de viragem na obra de Oliveira (que o Acto da Primavera (1963) viria confirmar definitivamente) mas também por problematizar e sintetizar preocupações contemporâneas expostas por criadores e pensadores a propósito da representação da pintura no cinema. Desconheço se Manoel de Oliveira viu Van Gogh (1948) e Guernica (1950), de Alain Resnais e Robert Hessens ou se leu Peinture et cinéma, um artigo de André Bazin e talvez seja pouco importante. A verdade é que aventurando-se em panorâmicas e zooms dentro das telas de António Cruz, Oliveira preserva a ambiguidade e a versatilidade das pinturas que filma. Porque, como escreveu Bazin, “é desfigurando a obra, quebrando as suas molduras, atacando-se a sua própria essência que o filme a obriga a revelar algumas das suas virtudes secretas.” De resto, já sabemos que Oliveira sempre problematizou e sintetizou, é esse o labor e o peso nos ombros da melhor ficção. Sabendo que visto, nem tudo se filma; sabendo que filmado, nem tudo se usa.
A maior parte do trabalho de um artista faz-se percorrendo esses caminhos árduos pacientemente em busca de inspiração, que ao contrário do que muita gente pensa, não está na cabeça, mas ao virar da esquina: mulheres a estender a roupa que depois é acariciada pelas brisas da tarde; a luz que dá o peso e a eternidade às coisas; os fumos de comboios a rasgar o horizonte; as conversas e situações estranhas que nem a mente mais mirabolante consegue inventar; o belo rebuliço que é a vida. Não é coisa que atravesse só O Pintor e a Cidade, mas toda a obra de Manoel de Oliveira, que se insiste em ver mal e pelas razões erradas. Dito excessivamente controlado, excessivamente encenado; mas é o trabalho que se tem de fazer para ficarem gravados aqueles instantes milagrosos e cheios desses gestos e olhares que dão ao cinema a sua razão de ser e tornam todos os planos dum filme indissociáveis entre si.
A descida de Leonor Silveira com uma vela ao som do Clair de Lune e o assombroso travelling por baixo das laranjeiras. A despedida de Ema e da Ritinha, interpretada por Isabel Ruth. Os bailes e as loucuras de amor do Francisca (1981). Diogo Dória a cavalo casa adentro. João Bénard da Costa a guiar Leonor Silveira pelo mundo que está dentro do Espelho Mágico (2005). “Eu descobri no Pintor e a Cidade que o tempo é um elemento muito importante. A imagem rápida tem um efeito, mas a imagem quando persiste ganha outra forma”, diz Manoel de Oliveira. Outra maneira de dizer que as coisas duram o que têm de durar. Nem mais nem menos. O que resta é agradecer com um obrigado a plenos pulmões e esperar encontrá-lo no próximo filme revisto ou visto pela primeira vez. Por não me atrever a tratá-lo doutra maneira, escrevo, “Até sempre, sr. Manoel”.
João Palhares
Não é nada fácil escolher um filme de Manoel de Oliveira. Havia vários que gostava de trazer aqui – também alguns que ainda não vi, porque é por eles que salivo mais, sempre. Fundamentalmente, não quero fazer isto com pompa. Ouço agora na televisão Maria de Medeiros a homenagear Oliveira com uma palavra simples, mas que me parece atingir o coração da pessoa e do cineasta: atrevido. Oliveira era atrevido. Eu respeitava, com a tal pompa talvez em excesso, esse atrevimento. De há dois ou três anos para cá prometi a mim mesmo que só ia continuar a descobrir a sua obra em sala. Não apenas porque esta permanece por editar, em toda a sua extensão, em DVD – faltam no mercado home cinema nacional títulos como Benilde ou a Virgem Mãe e Amor de Perdição – mas também porque Oliveira só cabe na grande tela. Ele é dos últimos cineastas a pensar o cinema no quadro. Nesse sentido, é um discípulo directo de Griffith e de Chaplin. Um mudo ainda. Um primitivo em pleno século XXI. David Bordwell escrevia há pouco tempo sobre o seu magnífico O Gebo e a Sombra (2012) para assinalar esse gesto precioso e raro na gramática do cinema contemporâneo: o de trabalhar o tempo e a duração plano a plano, fazendo da harmonia de elementos da mise en scène (actores, décor, luz) o locus fundamental do seu cinema. Era aí que estava ontem como hoje o seu sublime atrevimento.
O filme que trago aqui foi o penúltimo que consegui ver em sala. O atrevimento do mestre levou-o – imagine-se! – ao MOTELx. E foi aí, nesse contexto tão particular, que me deixei devorar pelas luzes e sombras, os prateados magníficos e a escuridão antiga, de Os Canibais. É uma ópera macabra, com o lastro dos contos fantásticos da literatura do século XIX (Poe sobretudo), que atrai e trai a Morte com uma souplesse espantosa – a mesma que fez Manoel de Oliveira dançar à vida. E nele se concentra o doce veneno que espicaça o atrevimento, de novo essa palavra que, ainda não o disse, me leva não só a Chaplin mas mais directamente a Buñuel, para mim o cineasta mais decisivo para se compreender uma das facetas mais inspiradas da obra de Oliveira. É por Buñuel, pelo seu terror (um terror terrorista reflectido no espelho…) à burguesia, que Oliveira me conquista por inteiro, em filmes como A Caça, O Passado e o Presente (1972), Benilde ou a Virgem Mãe e os mais recentes Singularidades de uma Rapariga Loira (2009) e, em certa medida, O Estranho Caso de Angélica (2010) – para não citar o mais óbvio, e talvez por isso menos memorável, Belle toujours (2006). Há um gestus aqui que faz troça da morte e dos valores sagrados de uma classe empedernida de pessoas. Oliveira é incisivo e decisivo a partir as convenções. Fê-lo até ao fim. Canibalizou sempre as más tentações de se tornar “contemporâneo”, renunciar ao primitivo e deixar de ser um dos mais modernos cineastas do nosso tempo. Um brinde a ele! Terno e eternamente.
Luís Mendonça
Singularidades de uma Rapariga Loura é um caso particular de humor, coisa rara (?) em Oliveira, aliás sub-reconhecida! Sarcástico, ácido, corrosivo, perspicaz e acutilante, este é um filme que nunca perde o espectador, que o agarra desde o primeiro segundo até ao fim, que concilia a magistral inteligência na adaptação à actualidade de um conto de Eça e o comentário politico-social (“sou tão pobre como os bancos” diz a certa altura Macário), equilibrando o desespero (das personagens) tão comum ao nosso autor com o sua característica perversão (sempre na forma feminina). O que é mais admirável no cinema de Oliveira é, apesar da crença popular-infantiloide em torno de Aniki Bóbó, a sua perversidade – daí que o seu filme anterior, Belle toujours, fosse a maravilha que era – e este filme é um dos seus exemplos mais fulgurantes. “O Brando Movimento do seu Leque Chinês”, frase perfeita na descrição do filme; é este leque chinês, que vai e volta, torce e retorce, em movimento perpétuo contínuo, roçando a face de rapariga loira, que olha através das plumas azuis; é este leque que impregna em cada segundo que Catarina Wallenstein aparece uma sensualidade recatada pelas cortinas da sua janela, e é entre sucessivas ondas de pano e pluma que surge uma cabeleira Loura e um olho, que nos olha, a nós espectadores, como que nos hipnotizando na sua infinita pureza e perversidade. Quando um leque faz um filme é porque temos uma obra-prima.
E depois há um travelling que não existe: foi Oliveira que o inventou. Nesse instante o mundo desaba e só existem uns metros de película e uma tela na nossa frente, e depois chega a arpa. Toca. O mundo volta e o filme continua, para depois vir Luís Miguel Cintra declamar Caeiro em plano afastado, tendo em primeiro um jogo de cartas. Quem faz isto, quem faz cinema assim, chama-se Oliveira e nunca será igualado. Desde o início no comboio, em que as personagens, à boa moda oliveiriana, nunca se olham nos olhos e libertam as suas falas, completamente desconexas no meio que as rodeia – a actualidade, feita de computadores, e barulhos de carros por janelas abertas – percebemos que Oliveira é um cineasta do passado com os olhos postos a-diante, daí que não se actualizem as falas de Eça, mas se actualize o meio envolvente. Estou em crer que essa foi a candura que o seu cinema sempre teve, um anacronismo entre técnica e tom, um olhar quase imberbe (poder-se-ia dizer um olhar do mudo, um olhar primitivo sobre o cinema) que originava filmes de deliciosos contrastes: entre o moderno e o antigo numa aura de fábula ou de conto, repudiando (felizmente) noções enjoativas de novo-realismo (independentemente das leituras revisionistas). O que se vê é literatura filmada, é ficção tal e qual; acreditar depende de nós e não da verosimilhança. E no fim um comboio parte em plano geral, toma uma curva e desaparece do quadro, vai-se o comboio ficam-nos os carris. E a paisagem. Sigamos!
Ricardo Vieira Lisboa
Oliveira foi o único que nos fez acreditar na imortalidade. Foi menino de modos e Mestre de espírito, deu corpo à crença de que o cinema dá saúde e fome de mais cinema, sem limite, centenário adentro. Nunca o tempo seria suficiente. Não é um hoje emblema português por ter sido um grande cineasta, mas por ter sabido perguntar através do cinema que elevação há em ser português. De todos, foi o único realizador que viveu o mudo até ao sonoro, o preto-e-branco até à cor, a película até ao digital e continuou, partilhando-se, no inesgotável fôlego de sempre perguntar, em primeiro plano, pelo seu lugar nisto tudo. Quis saber o que era afinal Portugal. Resistiu ao fascismo: preferiu passar décadas sem filmar a comprometer politicamente o seu cinema. Cumpriu-se em liberdade. Foi simultaneamente o mais clássico e o mais experimental dos cineastas, sem daí vir nenhum conflito. Ora construindo imagens cifradas de signos e alegorias, onde se vislumbram mistérios só seus que nunca havemos de deslindar, ora dando literalmente corpos, rostos e dimensões humanas às figuras fundadoras que todos conhecemos achatadas nas páginas dos cadernos de história. O Passado e o Presente, título seu, poderia ser ainda a insígnia sumária gravada na porta de entrada para o seu cinema, atraente buraco de luz e de negro onde caímos no permanente movimento entre o passado e o presente. Filmes da distensão histórica, pronta a relativizar as medidas do tempo e a clarear o dia de hoje à luz de um ontem longínquo. Cada pedaço participa no todo, a duração adensa a imersiva busca – e assim que Oliveira começa a alongar os planos, todos os que não souberam vê-lo, gritaram em coro sobre um cinema de tédio e de exageros. O cineasta resistiu, subiu igual a si próprio e os boatos foram caindo, até que hoje todo um país o celebra com dois dias de luto nacional e horas de atenção em horário nobre. Talvez vá voltando a acreditar em Portugal como este nosso acreditava. Assumido discípulo de Bresson e da crença na fixidez do plano, como o mais laborioso pintor barroco, construía ‘‘painéis’’ : como chamava João Bénard da Costa a séries como a ‘‘tetralogia dos amores frustados”, iniciada em 1971 com O Passado e o Presente e prolongada com Benilde, Amor de Perdição e Francisca, até 1981.
De facto, muito mudou: o último Oliveira que vi foi o prodigioso Vale Abraão, numa sala cheia da Gulbenkian (era o ciclo Harvard na Gulbenkian) e não faltavam jovens sem medo dos 230 minutos da versão de autor que ali se ia passar. Leonor Silveira, a primeira das leonores-musas de Oliveira (a segunda seria Leonor Baldaque), esteve presente na homenagem e descreveu a experiência com o seu Mestre, em quem demorou a confiar até aprender como nem sempre perceber fazia parte da alquimia deste processo minucioso. “Rir no plateau era expressamente proibido’’, confidenciava, descrevendo a disciplina austera de um cineasta, que opõe o tom grave dos filmes a uma persona pública algo clownesca.
Foi exactamente pela ocasião da estreia de Vale Abraão em Paris, em 1993, que Alain Bergala promoveu um diálogo entre dois titãs de estilos tão opostos como Manoel de Oliveira e Jean-Luc Godard (e fica para piada cinéfila que nem o mais célebre cineasta francês se tenha aguentado na sala ao longo de toda a duração do filme). Disputando concepções de cinema, numa coisa concordariam plenamente: que toda a obra é maior do que o artista. É nessa irredutível verdade que guardamos como tesouro nacional o corpo de 32 filmes do único cineasta que viveu jovem até aos 106 anos. Mil vozes disseram ‘‘é o último filme’’ e mil vezes ele as calou com mais. E, determinadíssimo, ainda deixou um filme para ser visto só depois da sua morte (Visita ou Memórias e Confissões). Justamente, entrou na eternidade como o gigante que foi. Perante tudo o que nos ensinou, não há palavra maior do que um Obrigada. Devemos-lhe tudo.
Sabrina D. Marques